29.10.13

A velhice é antes do fundo do corredor

Texto de Marta Couto, in Público on-line

Se cada um de nós se imaginar velhinho, talvez perceba porque é que tratar os velhinhos por "velhos" pode ser o resumo de um país que nem sequer sabe usar diminutivos

Uma das canções mais bonitas — e tristes — da história da música começa a dizer "hope there's someone who'll take care of me". É verdade que Antony and The Johnsons consegue comover o ouvido mais ateu mas também não deixa de ser verdade que isto é — e sempre foi — uma das grandes preocupações da humanidade. O que há-de ser de nós em velhinhos? Enquanto ainda andamos distraídos — e realmente preocupados — a pensar no que será de nós amanhã, a velhice fica lá algures bem ao fundo do corredor e parece-nos distante em dioptrias.

Olho para a minha avó. (A sorte de ter uma avó e de lhe percorrer as rugas à procura de histórias por ouvir.) A minha avó nunca teve medo da idade, como nunca teve medo da vida, e tem a sorte de estar lúcida e acompanhadíssima de amor. A minha avó cuida-se, como sempre gostou de se cuidar, está capaz de uma autonomia rara e não depende dos outros para nada. Pese embora a raridade, custa-me olhar à volta e ver como o país trata de tantos "avós". Para começar, a tendência de falar deles como quem fala dos "velhos". Não, não se incomodem, eu ainda sei que a palavra consta do dicionário, mas ouvir frases como "olha aquele velho" ou "a velha foi lá a casa hoje" é como assistir a alguém que puxa bem do fundo do brônquio aquela expectoração viscosa que vai disparar para o chão. Enoja-me.

Como todos já fomos mais novos, um dia, todos nós havemos de ser velhinhos. Parece-vos infantil o diminutivo, é? Estou a amaciar a palavra "velhos" com um paninho, será? Pois que esteja, eles merecem-me, pelo menos, essa deferência. Comecemos por ser elegantes com eles, pode ser? Continuemos por ouvir as histórias que eles nos repetem à exaustão. Já as ouvimos no Natal anterior. Nos outros, também. E depois? Havemos de poder deixar de as ouvir, aproveitemos as repetições até à inconsciência absurda da lucidez. Façamo-los sentir mais novos. Pois que usem os telemóveis — e que lhes sejam úteis à solidão — assim tenhamos nós que perder uma tarde da nossa ocupação dois ponto zero a explicar que o verde é o botão que atende e o vermelho é onde se desliga. Ouçamos os conselhos que têm para dar, assim fiquemos a perceber que neles havemos sempre de ter cinco anos: "Agasalha-te do frio".

A minha avó gosta de me oferecer "croissants" e, se isso a deixa feliz, eu vou deixar que ela me inunde de "croissants" de todas as vezes. Não, não porque tenha fome, nem para dizer que sim com ela. Para aplaudir de pé que ela ainda tenha força nas pernas para os ir buscar, energia para os guardar, e celebrar o facto dela estar acompanhada de amor suficiente que nem a saúde consiga derrubá-la.

Há quem diga que na velhice voltamos a ser pequeninos e que havemos de ser, para os pais, os pais que eles foram para nós. Se cada um de nós se imaginar velhinho, talvez perceba porque é que tratar os velhinhos por "velhos" pode ser o resumo de um país que nem sequer sabe usar diminutivos.