Raquel Martins e Sérgio Aníbal, in Público on-line
Em entrevista ao PÚBLICO, o antigo vice-presidente do Instituto de Segurança Social, Miguel Coelho, defende que o equilíbrio do sistema só é possível se afectar quem já está a receber pensões.
O antigo vice-presidente do Instituto de Segurança Social, Miguel Coelho, defende, em entrevista ao PÚBLICO, que a reforma da Segurança Social não pode passar apenas pelas pensões de velhice e tem de abranger outras prestações sociais para que haja resultados num horizonte de cinco a dez anos.
Professor na Universidade Lusíada, o especialista alerta que o equilíbrio do sistema só é possível se afectar quem já está a receber pensões. No livro que lançou recentemente sobre a situação actual e as perspectivas de reforma, defende que uma reforma depende de um entendimento alargado entre os actores políticos, sob pena de o calendário político se sobrepor aos interesses da população.
No seu livro diz que o peso crescente das despesas sociais no PIB e a incapacidade de reduzir os níveis de desigualdade permitem concluir que o sistema de Segurança Social está esgotado. O problema está no sistema em si ou na forma como a economia e a sociedade têm evoluído?
Um bom sistema público de Segurança Social deve, em cada momento, procurar responder às necessidades da sociedade e, de forma sustentada, assegurar as condições mínimas de dignidade àqueles que são mais desfavorecidos. Este modelo, datado e que surgiu tardiamente face ao resto da Europa, está obviamente esgotado.
Porquê?
Por várias razões. Desde logo, o sistema é extraordinariamente complexo, com dificuldade de articulação das diferentes prestações e na concretização do próprio quadro legal, e não é equitativo. Trata situações iguais de forma distinta.
Quer exemplificar?
Por exemplo, há um tratamento diferente entre um indivíduo que recebe uma pensão de sobrevivência e trabalha e entre outro que recebe uma pensão de sobrevivência e uma pensão de velhice. Enquanto o segundo é penalizado pelo novo esquema de pensões de sobrevivência, o primeiro, ainda que o rendimento global seja equivalente, não é afectado.
Mas isso não decorre das decisões políticas que vão sendo tomadas?
O grande problema é que, nos últimos anos, o sistema tem apenas resultado de decisões políticas. Em Portugal, tomam-se as decisões políticas e depois arranja-se um suporte técnico para essas mesmas decisões. O sistema tem sido construído parcelarmente. Hoje, por exemplo, discute-se a questão das pensões e incide-se muito nas pensões de velhice do sistema previdencial. Se olharmos para esta componente, ela representa 8.100 milhões de euros de despesa por ano. A despesa total do sistema de Segurança Social é de 23.000 milhões. Estamos a falar de 35% da despesa total do sistema.
As decisões políticas não têm ido no caminho certo?
Por norma, toma-se uma decisão política em função de duas componentes: a necessidade de responder a problemas financeiros imediatos e a determinados grupos de interesse ou áreas sociais, que procuram ver defendidos os seus interesses.
Foi o que aconteceu com o recente aumento da idade da reforma?
A decisão de aumentar a idade da reforma faz sentido. Poderemos discutir os tempos de aplicação dessa medida e os termos em que essa alteração é feita. Esta alteração resultou de uma necessidade de poupança imediata. Embora ache que a poupança não será tão grande como a prevista, há aqui um apagão de um montante de despesa durante 2014. Esta medida faz sentido, mas a aplicação imediata é criticável. Há um quadro de expectativas dos trabalhadores e das empresas que foi completamente posto em causa por uma decisão tão imediata e tão brusca.
A Segurança Social, pelas suas características, deveria ficar de fora da resolução de problemas orçamentais de curto prazo?
Não. É possível promover alterações no sistema, com efeitos imediatos na despesa, coerentes com uma revisão integral do sistema. Há um conjunto de medidas relativamente simples que permitiriam imediatamente reduzir despesa.
Que medidas são essas?
Dou o exemplo das pensões mínimas. Politicamente é muito apelativo falar da protecção das pensões mínimas como o exemplo de protecção social. Mas há centenas de milhares de reformados que recebem pensões mínimas e que não são pobres. Recebem porque em determinado momento isso fazia sentido e era uma forma de trazer as pessoas para o sistema. Hoje já não faz sentido. Essa pensão mínima deveria ser atribuída sob condição de recurso, isto é, àqueles que verdadeiramente necessitam. Na Segurança Social há casos de indivíduos que têm pensões mínimas, que incorporam o tal complemento social, e que, simultaneamente, recebem pensões de outros sistemas de valor superior a 5000 euros.
Que outros sistemas?
Por exemplo, da Caixa Geral de Aposentações (CGA). Estamos a falar de casos anteriores a 2007, quando não havia unificação de pensões. Mas pode acontecer também ter uma pensão de França e, simultaneamente, uma pensão mínima.
Mas são muitos casos e montantes significativos?
Estamos a falar de uma despesa superior a mil milhões de euros por ano. Se admitirmos que todos os anos atribuímos um valor correspondente ao complemento social de 100 milhões de euros e que 40% dessas pessoas não têm direito à pensão, teremos uma poupança de 40 milhões de euros todos os anos. Outra questão tem a ver com as transferências de verbas para as IPSS. Hoje transferimos 1400 milhões de euros para as IPSS, sem garantia de que os beneficiários indirectos destas transferências são efectivamente pessoas que, em circunstâncias normais, seriam apoiadas pelo Estado.
Como é que se faria esse controlo?
Há duas formas. A primeira seria sujeitar a condição de recurso os utentes das IPSS apoiados pelo Estado. A segunda seria criar uma espécie de cheque IPSS, em que o Estado atribuía à pessoa que verdadeiramente necessita um cheque que poderia ser descontado em serviços numa IPSS.
Actualmente não há controlos?
Existe um conjunto de acordos de cooperação com as IPSS. Por exemplo, nos lares de terceira idade, há um conjunto de vagas protocoladas. Se essas vagas forem preenchidas, o Estado paga um montante fixo. E as vagas podem ser preenchidas por quem precisa ou por quem não precisa. O modelo está formatado para beneficiar aqueles que têm mais dinheiro em detrimento dos que têm menos dinheiro, porque aqueles que têm mais dinheiro podem ter uma comparticipação familiar muito superior aos outros.
O Estado não consegue fiscalizar?
Não, não consegue. O que acontece não ultrapassa os limites da lei, o quadro legal é que está ultrapassado. Se hoje falamos de cheque ensino, porque não falar de cheque terceira idade. Seguramente que o dinheiro desta forma seria atribuído a quem mais necessita.
Essa mudança poria em causa a sobrevivência de algumas instituições.
Sou um grande defensor da economia social, mas não vejo na economia social o papel messiânico que se lhe quer dar como resolução de todos os problemas. E não é despejando dinheiro em cima dos problemas que se resolvem os problemas.
Essa era outra forma de conseguir poupanças?
Não está apenas em causa a redução de despesa, há também a eficiência com que se faz esta despesa. É possível fazer mais e melhor com o dinheiro que existe.
As sugestões que faz teriam o impacto orçamental necessário?
Esse impacto vai ser cumulativo ao longo dos anos. Não há nenhuma forma de fazer cortes de dimensão significativa para resolver o problema do défice sem destruturar o sistema. A opção é: podemos ou não fazer isto de uma forma mais gradual? Quanto tempo temos? É possível fazer uma reforma com impacto visível daqui a quatro ou cinco anos, construindo um modelo harmonioso e coerente. É óbvio, e voltamos à questão das pensões, que o sistema de pensões está desequilibrado. Mas tenho de ter um equilíbrio entre os compromissos que assumi no passado e as minhas capacidades presentes. Ninguém põe em causa que há necessidade de fazer alguma redução para determinados níveis nas pensões em pagamento, mas tem de haver um processo gradual que permita uma adaptação do próprio visado a essa nova situação. Além disso, o valor de corte devia ser considerado como uma dívida contingente ao beneficiário. Receberia no futuro, caso as condições económicas o permitissem e caso estivesse vivo.
Mas isso não aumentaria a dívida?
Depende. Sendo uma dívida contingente o seu valor na realidade pode ser próximo de zero, depende da probabilidade de essa dívida vir a ser paga no futuro.
Faz sentido falar em dívida contingente e adaptação aos cortes quando se trata de pessoas que já não trabalham?
Teremos que equilibrar a necessidade de ver alinhados alguns benefícios com o que é o valor a que as pessoas teriam direito, com as circunstâncias particulares de uma população envelhecida que não pode mudar de vida. Um período de transição mais alargado, garantindo ainda alguns direitos e a probabilidade de vir a receber o dinheiro no futuro é o equilíbrio possível.
Está a que qualquer solução de corte na despesa terá de afectar as pensões em pagamento?
O equilíbrio do sistema de Segurança Social não é possível sem que haja alguma alteração nas pensões em pagamento. A questão é qual o montante e reduzir esse corte ao montante mínimo essencial, mas também deveremos fazer essa alteração no prazo máximo possível para evitar esta situação abrupta para muitos dos pensionistas.
Essas condições não estão a ser preenchidas pela Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES)…
É uma medida que coloca o corte como definitivo, no sentido em que o valor não é recuperado pelo pensionista, e é imediato. Estamos a falar de uma alteração de um momento para o outro da pensão. E não sei se este corte com esta dimensão será verdadeiramente o necessário, se conjugarmos isso com outras medidas que poderiam ser tomadas. A questão da pensão mínima por exemplo e as próprias pensões de sobrevivência. Há aqui vários aspectos que, somados, tornariam num horizonte de cinco anos o sistema muito mais sustentável.
Mas no seu livro defende uma alteração mais profunda. Fala de um sistema mais flexível, amigo do crescimento económico. O que quer dizer com isso?
O que defendo para as pensões em formação é a possibilidade de se transitar imediatamente, para trabalhadores abaixo dos 50 anos, para um sistema do tipo sueco com quatro pilares. Um primeiro pilar é de capitalização nocional. Parte do desconto vai para uma conta corrente e é capitalizado de acordo com determinados factores, nomeadamente o crescimento económico e a produtividade, e a partir de determinada idade a pessoa tem o direito de transformar essa contribuição numa pensão, que é paga em função das entradas de recursos dos outos trabalhadores. Há um segundo pilar de capitalização pura em que a pessoa é obrigada a descontar para um sistema de capitalização como se de um fundo de pensões se tratasse. O terceiro pilar é facultativo e passa por aplicações em planos de poupança reforma ou fundos de pensões da responsabilidade exclusiva do trabalhador. O quarto pilar é um complemento social, pago pelos impostos, que garantiria um montante mínimo de pensão, se a soma do pilar um e do pilar dois ficasse abaixo de um determinado nível.
Isso implicaria um aumento da taxa social única (TSU) e uma alteração da sua repartição?
A questão da repartição da TSU é um dos aspectos essenciais, mas acho que a médio prazo era possível não aumentar os descontos.
Como é que compensaria a quebra das receitas?
Temos um fundo de estabilização de 12.000 milhões de euros. O fundo é uma almofada do sistema, não é algo intocável. Poderia servir para fazer face a esta transição. A reforma do sistema de Segurança Social é muito mais do que uma reforma do subsistema das pensões de velhice. Era possível, conjugando aqui várias medidas, distribuindo-as no tempo, mas sempre com base num plano e num trabalho técnico profundo, fazer essa reforma num horizonte temporal de cinco a dez anos.
Há no discurso político vontade para fazer uma reforma assim? Tem-se falado sobretudo no plafonamento.
Isso obriga a um entendimento profundo entre os diversos actores políticos. Se não houver esse entendimento numa base alargada, vamos sistematicamente deixar que o calendário político se sobreponha aos interesses da população.
Uma das questões de que fala no seu livro é que a máquina da Segurança Social é pesada e pouco transparente. A reforma também tem de passar por aí?
Seguramente que sim. Esta reforma tem de passar antes de mais pela simplificação do quadro legal. Não é possível administrar um sistema que é de uma complexidade tal que é inoperacional. Depois tem de passar pela estrutura do ministério: defendo a fusão de um conjunto de institutos, embora ache que não há gente a mais na Segurança Social. Podemos dizer que era preciso gente com outras competências em algumas áreas. Há ainda a questão do próprio sistema informático que, resultado desta complexidade do quadro legal, tem alguma dificuldade em responder às necessidades dos serviços e dos beneficiários.
No final deste ano, deveriam terminar medidas temporárias, como a CES. Como é que, no futuro, se consegue garantir igual nível de poupança?
Sem um plano global, o que vai acontecer no próximo orçamento é uma nova discussão sobre um conjunto de medidas avulsas para garantir que não há um aumento da despesa. A saída da troika não nos reduz as responsabilidades, aumenta-as, até porque há obrigações ao nível do défice. Para 2015 teremos um desafio ainda maior e não temos instrumentos para além dos habituais. Quanto mais tempo se adiarem estas reformas, menos grau de liberdade teremos. Esta foi a grande oportunidade perdida, porque se tivéssemos feito a reforma do sistema em 2011, seguramente em 2015 e 2016 começávamos a ver os primeiros resultados dessa reforma.
Não tem grande esperança em relação à solução duradoura que está a ser preparada pelo Governo?
Se o mandato do grupo de trabalho for encontrar uma solução equivalente, vamos continuar com os mesmos problemas. Se se vai dedicar a uma reforma global, então há caminho a percorrer, sendo certo que os resultados não serão visíveis a seis meses, nem a um ano, nem a dois.