5.6.20

“É preciso contrariar a ideia de que os pobres vão ficar mais pobres depois da crise”

Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia), RR

Ligado à Pastoral Social, Cáritas e Comissão Nacional Justiça e Paz, José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Católica, fala da “vitalidade” com que as instituições da Igreja têm conseguido responder aos pedidos de ajuda, para evitar “que o poço se torne ainda mais fundo”. Confia na “mobilização dos serviços públicos” para responder à crise e diz que os bispos foram “exemplares” na colaboração com as autoridades de saúde.

Médico de formação, José Manuel Pereira de Almeida é vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, secretário da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, assistente da Cáritas e da Comissão Nacional Justiça e Paz e padre no centro de Lisboa. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, conta que também na sua paróquia os pedidos de ajuda aumentaram “mais de 50%” e fala da capacidade de resposta que as instituições sociais da Igreja têm tido para apoiar quem precisa.

Sobre o “Ano Laudato Si”, convocado pelo Papa, diz que não podia ser mais oportuno, porque é urgente uma economia “para as pessoas e não para o lucro”, e acha que a sociedade, em geral, “precisa de uma formação ética mais aprofundada”. Fala, ainda, do entusiasmo com que se retomaram as celebrações comunitárias, e dos desafios que a pandemia trouxe, não só em termos de pastoral social, mas também de acompanhamento espiritual.

É pároco em Santa Isabel. Como é que foi voltar a celebrar com fiéis, em comunidade, desde o último fim de semana?
Foi uma experiência esperada, e como as coisas que se esperam muito e são muito desejadas e correm bem, foi um grande entusiasmo.
Nós pedimos autorização para poder celebrar no espaço público à frente da igreja, é um pequeno largo, já destes rearranjados, e que teve a possibilidade de, no horário habitual das missas, acolher o número de fiéis que viessem, sem outras restrições.
Porque mesmo correspondendo aos dois metros à volta de cada pessoa, ou de cada família, temos uma área possível de acolher um número de pessoas maior do que os que habitualmente vêm numa celebração grande em Santa Isabel, em que a igreja, que não é pequena, fica cheia. Correu muito bem, com grande entusiasmo das pessoas, mas também dos padres, quer o padre João Euleutério quer eu, porque não é fácil estar dois meses e meio a celebrar sem fiéis.

Este tempo de confinamento foi um tempo de “proximidade na distância”. Sobre a capacidade de resposta da Igreja, com recurso a transmissões online, pela internet e pelas redes sociais, o que é que fica de ensinamento e de aprendizagem, de mudança na comunicação com as comunidades crentes?
Creio que aprendemos muita coisa. Pode ser que não se dê ainda conta agora dos ensinamentos que recolhemos desta experiência, para que quando se voltar à normalidade - o que quer que isso seja - não volte tudo a ser como era dantes, que haja coisas novas.
Por exemplo, a valorização da Igreja doméstica: muitas vezes enaltecida, sob o ponto de vista mais abstrato do que no concreto, desta vez as experiências das famílias nas casas, quando correu bem, correu muito bem. Claro que também há dificuldades e a questão da relação em permanência de todos os membros da família implica, eventualmente, situações de conflito. Mas, até o conflito é chamado a ser lugar de crescimento de humanidade, de aprendizagem na resolução pacífica dos conflitos.
Por outro lado, creio que os nossos bispos foram exemplares no que diz respeito à relação com a autoridade de saúde, que em Portugal é a Direção Geral da Saúde, no adequar as circunstâncias. Aliás, antecipámo-nos, naquele terceiro domingo da Quaresma, para que em Portugal, como tem sido até agora - e espero que em Lisboa os últimos acontecimentos não desmintam – haja um comportamento em que se procura cuidar dos mais vulneráveis da forma como temos sabido cuidar no Serviço Nacional de Saúde. Claro que quando se diz os mais vulneráveis, sob o ponto de vista de saúde, também é importante recordar todas as situações em que os pobres ficaram mais pobres, e há que recorrer a todos os meios para ajudar. Isso aconteceu na paróquia de Santa Isabel - e estou convencido que em todas as comunidades - os voluntários continuaram a sair à rua e a levar alimentos a quem mais precisava, para que a dificuldade por que passam seja minorada, tanto quanto de nós depende. E depende muito.
"Estamos todos conscientes que a situação não é fácil. Mas estou confiante na capacidade de mobilização dos serviços e responsabilidades públicos e também da comunidade cristã"

A crise social e económica agravou-se com a pandemia. Também sentiram isso na sua paróquia, os pedidos de ajuda aumentaram?
Aumentaram. Não digo tanto as pessoas abrangidas pela conferência vicentina, que distribui os bens do Banco Alimentar e da comunidade, enquanto tal, mas num grupo de proximidade que nós chamamos “Família a família”, que no fundo é outra componente da Cáritas paroquial e que apoia famílias insuspeitas de situação de carência, no sentido daquilo que se chama habitualmente a “pobreza envergonhada”. Essas situações sim, aumentaram entre nós, atrevia-me a dizer mais de 50%.

Todas as instituições solidárias dizem que estão a receber mais pedidos de auxílio, e muitos são de pessoas que sempre trabalharam, mas que agora, sem esses rendimentos habituais, estão a pedir ajuda às instituições pela primeira vez na vida. Isto também é um desafio para as instituições católicas?
Absolutamente, e creio que estamos capazes de responder. Eu acompanho quer a Cáritas diocesana de Lisboa, quer a Cáritas Portuguesa, e suponho que os programas que, entretanto, foram desenvolvidos pretendem responder a essas necessidades.
Curiosamente, as paróquias até agora - pelo menos essa é a experiência em Lisboa - têm procurado, tanto quanto delas depende, conseguir responder e deixando para uma segunda etapa o pedido de apoio à Cáritas do Patriarcado.
Na Cáritas Portuguesa sente-se do mesmo modo: algumas cáritas diocesanas ainda não se socorreram dos projetos existentes a nível nacional. Portanto, não temos até agora grandes números para poder dizer à comunicação social, com segurança, se estamos em 40% a mais... calculamos que é mais ou menos assim, mas isso supõe que há muito de subsidariedade neste sistema, o que não é mau de todo, pelo contrário, é sinal da vitalidade da proximidade e da solicitude.

Nestes meses de pandemia voltou a falar-se de “novos pobres”, e de “fome”, em vários setores. Isabel Jonet dizia, quinta-feira na Renascença que voltou a haver barracas em Lisboa. A situação social não permite distrações em termos de ajuda pública?
É claro, e creio que estamos todos conscientes disso, que a situação não é fácil. Mas estou confiante em termos da capacidade de mobilização dos serviços públicos, das responsabilidades públicas a este propósito, e também da comunidade cristã.
O Encontro Nacional da Pastoral Social, que deveria realizar-se em outubro deste ano, foi adiado para o mesmo mês de 2021. Que alternativas de reflexão podem existir neste espaço de tempo?
Foi-nos proposto pelo Papa o “Ano Laudato Si”, o que reflete a urgência da necessidade de reflexão sobre as questões abordadas pela encíclica, utilizando esse binómio: ouvir e responder ao grito da terra, ouvir e responder ao grito dos pobres.
Creio que, de uma maneira ou de outra, as situações em que nos encontramos também permitem uma extensão da reflexão, com os meios informáticos, à distância, que temos ao dispor. Agradeço, aliás, à Renascença, a possibilidade de a missa das 11h00, em Santa Isabel, ter sido sempre transmitida, desde o III Domingo da Quaresma, ao Domingo da Ascensão.

Este ano especial “Laudato Si” liga-se ao projeto “A Economia de Francisco”, em que a Universidade Católica Portuguesa está envolvida. Que desafios traz este novo paradigma para a instituição?
A Universidade Católica Portuguesa e as outras instituições que se mobilizaram a este propósito têm sido um lugar onde emerge a reflexão proposta pelo Papa: a Economia é para as pessoas e não para o lucro, portanto é preciso trazer as pessoas para o centro. Perceber que as pessoas são mais importantes do que os números.
Até a raiz da palavra economia diz respeito à “lei da casa”, para que as pessoas vivam melhor na casa comum que é a nossa. É um desafio permanente, em termos de outra maneira de entender a economia, mas não estamos sozinhos, há 50 jovens (portugueses) que participam neste encontro de Assis. Mesmo depois de ter sido adiado, em março, têm continuado os seus encontros e a sua reflexão, isso tem sido muito oportuno.
"Esta ideia de que, depois da crise, os pobres vão ficar mais pobres tem de ser contrariada por todos os meios existentes. E há muitos modos de corrigir as desigualdades, para que o poço não se torne ainda mais fundo, como tudo indica"

É também assistente da Comissão Nacional Justiça e Paz, que emitiu recentemente uma nota a apelar à responsabilidade social das empresas, para que dividendos e prémio empresariais sejam canalizados para quem mais precisa. É importante despertar as consciências para a necessidade de perceber que nem tudo o que é legal é legítimo?
Essa foi uma das frases da mensagem, há coisas que podem ser legais, mas não legítimas, sob o ponto de vista ético. Esta ideia de que, depois da crise, os pobres vão ficar mais pobres tem de ser contrariada por todos os meios existentes. E há muitos modos de corrigir as desigualdades, para que o poço não se torne ainda mais fundo, como tudo indica.

Uma das questões mais faladas tem a ver com a “indignação” perante as notícias que dão conta de “prémios de gestão ou distribuição de dividendos”, em particular no Novo Banco, em contraste com os sacrifícios que a sociedade portuguesa atravessa. É um setor que precisa de maior ética?
A sociedade, em geral, precisa de uma formação ética mais aprofundada, ou seja, deixámo-nos contagiar com uma forma de encarar as coisas com um certo indiferentismo, corremos o risco de nos habituarmos à ideia de que as coisas são como são. Ora, elas só são como são se nós não fizermos diferente, se não procurarmos esta árdua tarefa de ler a realidade e de a confrontarmos com o que é desejável, o que é preferível, no que diz respeito a sermos verdadeiramente atentos ao bem do outro, porque é bem e não porque eu ganho alguma coisa com isso. É uma formação que se tem de fazer, desde a mais tenra idade.

A atual situação trouxe muitos desafios à Igreja, em termos de pastoral social, mas também de acompanhamento espiritual. Com muitas restrições nos velórios e funerais, este tempo que passou deixou muitas feridas abertas neste campo. A Igreja podia ter feito mais para acompanhar as pessoas nestes momentos difíceis?
Da minha experiência pessoal, creio que as coisas correram da melhor maneira possível, no sentido de que eram poucas pessoas, mas nunca deixei de acompanhar, nunca se deixou de poder celebrar a vida, tão ameaçada nestes tempos.

Claro que a saudade tem menos espaço para se poder exprimir, por trás de máscaras. Também vamos aprendendo o tipo de explicitação dos nossos sentimentos e da partilha das nossas emoções. Dizem-me que há famílias muito feridas, com situações mais asséticas, quase de comportamentos cristalizados. Não foi essa a nossa experiência em Santa Isabel.

Muitas pessoas ainda não encontraram um sentido para o que está a acontecer. Estamos perante uma crise não só económica, mas também espiritual, uma crise de sentido e de esperança. Qual deve ser o papel da Igreja Católica?
Algumas pessoas com quem tenho conversado, sempre com limites, vivem situações como as que refere. Precisamos de acompanhamento, não para ensinar quem não sabe – como se nós soubéssemos -, mas para aprendermos uns dos outros como se faz este caminho, no meio da incerteza. A Igreja Católica tem um lugar, fundamentalmente de cuidado, do acolhimento, do não julgar, do partir, com confiança, porque essa confiança está na base da nossa experiência de fé.