9.11.20

Morreram 1047 idosos em lares com covid-19. O que é preciso para acabar com os “depósitos de velhos”?

Natália Faria, in Público on-line

Importar o conceito das nursing homes. Apostar na disseminação do cohousing, onde os idosos vivem em vez de se limitarem a esperar pela morte. Financiar de acordo com a qualidade do serviço prestado. Dar benefícios fiscais às famílias que cuidam dos ascendentes em casa. Não faltam sugestões para modificar a dramática realidade dos lares de idosos em Portugal que a pandemia pôs a nu.

Maria Júlia, uma antiga vendedora de pronto-a-vestir por catálogo, sempre foi dona do seu nariz. Durante anos, pagou religiosamente as quotas para ter direito a ingressar n’O Lar do Comércio, em Matosinhos, por lhe parecer que aquela instituição particular de solidariedade social — porque lhe permitia entrar e sair quando lhe apetecesse, fosse para ir ao cabeleireiro ou para jantar fora — seria o ideal para passar os seus últimos anos de vida sem se tornar um fardo para os filhos. Quando, em meados de Março, o novo coronavírus entrou como um tornado pela instituição adentro, Maria Júlia já contava 93 anos, dos quais os últimos 15 passados no lar.

“A minha mãe é perfeitamente autónoma e muito determinada. E eu nunca a tinha visto tão aflita como na noite em que me ligou a suplicar que lhe desse os números de telefone da polícia e dos bombeiros, porque todos os idosos cujos testes tinham dado positivo, e na altura eram cerca de 80, estavam fechados à chave numa ‘enfermaria’. Foram simplesmente abandonados e, se acontecesse alguma coisa, não tinham sequer como fugir”, recorda a filha, Manuela Costa e Almeida, ao P2.

O país vivia o pico da primeira fase da pandemia e O Lar do Comércio, em Matosinhos, como o de Reguengos de Monsaraz, em Évora, destacaram-se como tristes exemplos do que correu (e continua a correr) mal na gestão da pandemia dentro dos lares de idosos. Até à meia-noite do dia 05 de Novembro, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) contava 1047 mortos entre os residentes em lares (393 no Norte; 197 no centro; 412 em Lisboa e Vale do Tejo; 34 no Alentejo; 11 no Algarve)​, o que perfaz cerca de 38% do total de vítimas mortais da pandemia. São números que não surpreendem Manuela, uma antiga professora de Artes, que ainda hoje não digeriu bem aquilo por que viu a sua mãe passar. “Os funcionários trabalhavam sem máscara e enfiados em sacos do lixo, daqueles pretos, porque o material de protecção que tinha sido enviado pela câmara para o lar estava no gabinete da directora técnica e não era distribuído.

“Quando os primeiros seis utentes tiveram um teste positivo e um enfermeiro do lar sugeriu que fossem isolados, a directora o que lhe disse foi: ‘Não, isto é para juntar, que é para ir tudo embora’. O enfermeiro ficou de tal forma estarrecido que acabou por meter baixa e, quando regressou ao trabalho, foi despedido”. Depois das várias queixas apresentadas, por Manuela Costa e Almeida e outros familiares de utentes, a autarquia accionou os serviços de socorro. “Puseram uma carrinha para que toda a gente fosse testada e perto de 80 ‘deram positivo’, entre os quais a minha mãe.”

E o pesadelo prolongou-se por semanas a fio. “Os infectados foram empurrados para uma espécie de enfermaria, onde tinham uma cama e uma cadeira, sem ninguém lhes explicar nada ou sequer lhes dar tempo para levarem alguns objectos pessoais: roupa interior, dentaduras, óculos, escova, pasta dos dentes. Como o espaço não tinha casa de banho, aquelas pessoas, entre as quais a minha mãe, estiveram três semanas sem tomar banho. Sem dentadura, muitos não conseguiam comer, e a medicação tanto era dada às sete como às dez, tal como o pequeno-almoço”, relata Manuela Costa e Almeida, que só sobreviveu àquele período sem perder a sanidade porque, por um feliz acaso, a sua mãe, quando foi arrastada para aquele local, tinha o telemóvel e carregador enfiados dentro do bolso do roupão, o que permitiu que as duas fossem falando.

“A directora chamava aos idosos ‘velhos’ e ‘caquécticos’, não tinha respeito. Quando calhava de morrer alguém, a reacção dela era do género: ‘Há por aí sacos pretos para despachar a encomenda?’. Isto são coisas que eu própria ouvi, porque antes da pandemia as visitas podiam entrar e sair sem marcação e eu costumava ir lá ao domingo almoçar com a minha mãe”, retoma Manuela Costa e Almeida, segundo a qual acontecia ser a sua mãe, que nunca sentiu necessidade de pedir licença para pôr um pé à frente do outro, a acudir aos que estavam em pior situação.

“Lembro-me de uma utente, com 50 anos e de cadeira de rodas, que chegava a esperar três horas para lhe mudarem a fralda com fezes. Ouvi-a eu muitas vezes queixar-se que sentia o corpo todo a arder e nada. Chegou a fazer duas tentativas de suicídio. E era a minha mãe que, à noite, porque os utentes jantavam às seis da tarde e ficavam sem comer até ao dia seguinte, lhe preparava umas sandes, já que tinha micro-ondas e frigorífico no quarto que lhe permitiam guardar alguns mantimentos e preparar essas pequenas refeições”.

A violência sobre os idosos, que a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados descreveria mais tarde como configurando “uma grande violação dos direitos humanos”, é anterior à pandemia, que só neste lar matou 24 pessoas, e terá, segundo Manuela Costa e Almeida, coincidido com a chegada da directora técnica, que o Ministério Público acabou por constituir como arguida. “Até então, o lar era um excelente sítio para se viver: tinha dois médicos, a parte da enfermagem também corria bem, e tinha cabeleireiro, uma biblioteca, terapias várias, tudo o que era necessário”, recorda. Se calhar foi por isso que, quando foi ultrapassada a primeira vaga pandémica, Maria Júlia respondeu com um categórico “não” ao pedido da filha para que mudasse de instituição. “Ela tem 93 anos, não há-de viver muitos mais, e nos lares que vimos não lhe era possível fazer o que fez até ao início da pandemia: entrar e sair quando lhe apetecia e viver autonomamente”, contemporiza a filha.

As “antecâmaras da morte”

O país contava, em Setembro, cerca de 99 mil utentes institucionalizados nas 2520 instituições residenciais para idosos existentes no país, segundo as contas feitas pelo Instituto de Segurança Social a pedido do P2. Daquelas, 1673 pertencem à chamada rede solidária (misericórdias e instituições particulares de solidariedade social, com quem o Estado estabelece acordos de cooperação) e 847 à rede lucrativa. E o retrato do que se passa dentro das portas de boa parte destas instituições é, como sustenta Teresa Rodrigues, professora na Universidade Nova de Lisboa e autora do ensaio Envelhecimento e Políticas de Saúde, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, de fazer corar de vergonha qualquer responsável.

“São verdadeiros armazéns de idosos, que funcionam como uma espécie de antecâmara da morte”, sintetiza, recordando a interpelação de um holandês que, há muitos anos, se lhe confessava intrigado pelo facto de “os idosos do Sul da Europa” quererem tanto ficar em casa dos filhos e resistirem a ser institucionalizados. “O que ele dizia era: ‘Só me faltava agora ir viver para casa do meu filho, não poder ver a televisão que quero, à hora a que me apetece’. Lá tive que lhe explicar que, além da matriz familiar, o problema é que as nossas ofertas em termos de instituições são péssimas”, relata, para acrescentar que aos lares que oferecem garantias de dignidade é difícil aceder: ou escasseiam ou “pressupõem um desafogo económico que poucas famílias conseguem suportar”.

“Conheço vários casos de famílias que se quotizaram para dar os suplementos [financeiros] necessários à reforma do idoso para conseguirem tê-lo num lugar que lhes desse um mínimo de garantias. E estamos sempre a falar de mil e tal euros [por mês], no mínimo, porque nalguns lares chega-se aos quatro mil euros. Mas mesmo nestes os idosos são todos misturados, com pessoas completamente lúcidas e activas ao lado de pessoas com doenças incapacitantes; e são todos estimulados da mesma maneira: quando é para ver televisão, são todos obrigados a ver o mesmo programa, que a uns pode interessar muito e a outros nada. É tudo muitíssimo deprimente”, reforça.

A falta de margem para que cada um possa escolher ver a televisão que lhe apetece ou não ver de todo é um exemplo, mesmo que tido por aparentemente pouco importante, da chamada “violência institucional”, sobre a qual a jurista Marta Carmo, técnica da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, se detém longamente no relatório Portugal Mais Velho, que teve o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e que procurou escrutinar os problemas levantados pelo inexorável processo que já pôs Portugal no pódio dos países mais envelhecidos do mundo.

E como se materializa esta violência institucional? “Na falta de condições de higiene, na inobservância ou mesmo violação dos direitos das pessoas, no desrespeito pela intimidade e reserva da vida privada, dada a aglomeração de pessoas no mesmo espaço, na falta de formação profissional dos cuidadores”, concretiza o relatório, que aponta também como violenta “a despersonalização que advém do controlo administrativo da vida diária dos utentes”.

“Há uma infantilização dos idosos que os despersonaliza”, decifra Marta Carmo ao P2. Apesar de perceber a necessidade de alguma uniformização de procedimentos, a técnica lembra que “ter de jantar às seis para alguém que ao longo da sua vida nunca jantou antes das dez da noite é não ter em conta as necessidades individuais de cada um”. Parece um pormenor, mas não é, se considerarmos que estas instituições deveriam trabalhar no sentido de “estimular as pessoas e permitir-lhes recuperar alguma autonomia, sempre que possível”. Não admira, assim, que, para muitos idosos, a notícia de que vão para um lar seja encarada como uma condenação. “Quando se entra, já não se sai vivo”, sintetiza a jurista, para admitir que nos lares talvez se vivesse melhor “se o país não pensasse na institucionalização dos idosos como algo que tem de dar lucro e a encarasse mais na óptica do dever de assegurar uma velhice digna para toda a gente”.

Quando ouve falar dos lares como “casas da morte”, como ouviu e leu tantas vezes desde que a pandemia escancarou as portas de uma realidade que o país teimou em ignorar durante tantos anos, João Ferreira de Almeida, o presidente da ALI – Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso, assume-se indignadíssimo. “A evolução no perfil dos idosos institucionalizados foi medonha. E para muito pior. Por razões sobretudo económicas, as famílias hoje esticam até ao limite a altura em que põem o seu familiar num lar e os idosos, quando chegam, já vêm tão velhos e tão doentes que as pessoas ficam à espera de quê? Que usemos uma varinha mágica para lhes restituir saúde e vitalidade?”, questiona, para apontar casos recentes que envolveram utentes da sua instituição: um morreu passados quatro meses depois de ter ingressado no lar e outro morreu logo um dia depois de ter entrado com co-morbilidades e a glicemia acima dos 470. “Entrou no lar no dia em que teve alta médica e, logo no dia seguinte, teve de voltar ao hospital, onde acabou por morrer. Contra isto, o que é que podemos fazer?”
Uma secretaria de Estado para os idosos

Na óptica do representante dos lares lucrativos, o poder político tem de se deixar de quezílias partidárias e encarar o envelhecimento populacional. Afinal, durante quanto tempo mais poderá continuar a fechar os olhos ao problema um país que, daqui a 40 anos, somará 307 idosos por cada 100 jovens, segundo as projecções do Instituto Nacional de Estatística, que estima que, em 2060, os portugueses com 65 e mais anos de idade representarão 32,3% da população? Demais a mais, “os idosos do futuro terão menos pessoas para tomar conta deles”, como enfatiza Teresa Rodrigues, “porque têm menos filhos e tenderão a viver mais nas cidades, onde a rede comunitária é mais frágil do que aquela que encontramos nas aldeias ou nos centros mais pequenos”.

E há outra idiossincrasia portuguesa que agrava aquilo que, se nada for feito, poderá revelar-se uma catástrofe demográfica, acrescenta a investigadora: “A taxa de actividade profissional feminina em Portugal é significativamente superior à de muitos outros países europeus. E as mulheres, que são as principais cuidadoras dos idosos, neste momento já não têm tempo.”

Neste cenário, o que fazer então? “Há desde logo”, atalha António Tavares, o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP), “que forçar a vontade política para enfrentar isto, promovendo sessões parlamentares em que sejam ouvidas as instituições e a sociedade civil”. Dessa discussão, acredita o provedor, há-de surgir como “evidentíssima” a necessidade de diálogo entre os ministérios da Saúde e da Solidariedade e Segurança Social, cujos desacertos eram já notórios ainda a procissão de infectados dentro dos lares ia no começo. Na altura, enquanto os lares se debatiam com a falta de tudo, de orientações a luvas, viseiras e gel desinfectante, e o país despertava para a crua realidade da desprotecção dos idosos institucionalizados, o sector social chegou a pedir a Marcelo Rebelo de Sousa que pusesse termo aos “tristes espectáculos de descoordenação” entre os dois ministérios.

“Precisávamos de ter uma secretaria de Estado para os idosos, com um papel igual ao da Secretaria de Estado da Juventude”, sugere ainda António Tavares, num contributo adiantado para o debate que se há-de impor.

Se fosse chamado a contribuir para o tal debate, o director do Programa Gulbenkian Desenvolvimento Sustentável, Luís Jerónimo, nem precisava de perder muito tempo a estudar a matéria, tão clara lhe parece a necessidade de, por exemplo, criar benefícios fiscais para as famílias com ascendentes a cargo. “Temos benefícios fiscais relativos às prestações de quem paga para ter um ascendente num lar, mas alguém que cuide do pai ou da mãe em casa não tem benefícios em sede fiscal”, lembra. E, do mesmo modo que as pessoas podem beneficiar de flexibilidade do horário de trabalho e da justificação de faltas quando têm filhos menores de 12 anos, “o mesmo deveria passar-se com quem tem ascendentes ao seu cuidado”, preconiza.

Do lado dos privados, João Ferreira de Almeida aponta ainda a necessidade de reforçar o financiamento às instituições que se substituem ao Estado nos cuidados aos idosos. “Se o Estado delega no sector social, tem que suportar o custo dessa delegação de responsabilidades. E está a pagar pouco, muito pouco. Daí que numa grande maioria dos lares, e não é só em Reguengos de Monsaraz ou n’O Lar do Comércio, a carta de pessoal esteja muito abaixo do que está definido na portaria”, enuncia. E depois põe-se a fazer contas por alto. “O custo de um idoso em lar andará nos 1100 ou 1200 euros mensais. No caso da rede solidária, a comparticipação da Segurança Social ronda os 400 euros. O restante é assegurado com a reforma do próprio idoso, e o que falta tem de ser a família a suportar”.

Por isso é que os privados não conseguem cobrar mensalidades abaixo dos mil euros, segundo o presidente da ALI, para sublinhar a sua tese de que, para quem cumpra os requisitos legais, “a actividade é cada vez menos lucrativa”. E porque mesmo esses mil euros estão muito acima das possibilidades de muitas famílias é que os lares clandestinos se propagam como cogumelos no território nacional. “A oferta clandestina explodiu porque é o que as pessoas conseguem aguentar em termos de orçamento familiar, quando não conseguem pagar um privado licenciado e não encontram vaga no sector social”, desculpabiliza.

Em ano de pandemia fecharam 67 lares

Entre a “inexistência de licenciamento”, a “insuficiência de recursos humanos”, a alimentação escassa, “deficiências graves” nas instalações e a prestação de cuidados de higiene e conforto “inadequados”, a Segurança Social encerrou 606 lares desde 2015, “incluindo 67 no decorrer do corrente ano”, adiantou ao P2 o ISS. Mas “os que fecham hoje abrem amanhã”. E o pior, na perspectiva do representante dos lares privados, é que “o Estado vai fechando os olhos a muitas falhas detectadas, porque depende dos lares do sector social para garantir uma resposta que não consegue dar. “Ainda há dias soube de um lar do sector social na margem Sul do Tejo que tem duas funcionárias à noite para cuidar de 118 pessoas. E, no turno da manhã, tem seis, quando deveria ter 15...”

Quanto aos médicos e enfermeiros, a Portaria 67/2012, que define as condições de organização e funcionamento das estruturas residenciais para idosos, obriga à contratação de um enfermeiro por cada 40 residentes. O rácio baixa para um enfermeiro por cada 20 idosos quando haja pessoas “em situação de grande dependência”. Quanto a cuidados médicos, a portaria limita-se a enunciar que o lar tem de proporcionar acesso a cuidados de saúde. A maioria dos lares tem médicos e enfermeiros a trabalhar “à hora” ou em regime de prestação de serviços. “Vão lá fazer uma ‘perninha’. E, durante a primeira vaga da pandemia, muitos desses profissionais foram requisitados pelo SNS e deixaram simplesmente de aparecer nos lares”, recorda António Tavares, da Misericórdia do Porto, sublinhando o que considera ter sido “uma das grandes deficiências” no combate à propagação do coronavírus nos lares.

E porque é que os surtos continuam a fazer vítimas dentro dos lares? “Não é tanto pelas visitas, mas por causa do entra-e-sai dos funcionários, que nem sempre cumprem a disciplina no uso dos equipamentos de protecção individual”, aventa João Ferreira de Almeida. “Depois da pausa que tivemos, as instituições deviam ter-se preparado melhor, mas muita gente não acreditou que a segunda vaga viesse com tanta força e facilitou-se um bocadinho”, admite, por seu turno, António Tavares.

Por saber que muitos lares, com ou sem pandemia, funcionam há anos “aquém das condições mínimas e com pessoal abaixo do exigido por lei” é que o provedor diz que o sector precisa de uma entidade reguladora. “Hoje é a Segurança Social que faz o licenciamento, a inspecção, a auditoria, o financiamento, a contratação: está tudo misturado, e faz falta essa entidade reguladora e atenta ao que se passa nas instituições”. Quanto ao deve e haver do financiamento, Luís Jerónimo admite que uma resposta rápida ao problema dos incumprimentos seria indexar o financiamento à qualidade do serviço prestado por cada instituição. “Se o financiamento fosse orientado não em função do número de camas, mas da qualidade do serviço, o Estado iria incentivar a qualidade das instituições”, sugere.

O director do programa Desenvolvimento Sustentável da Gulbenkian lembra, porém, que não há qualidade possível com trabalhadores que se arrastam toda uma vida a ganhar “pouco mais do que o salário mínimo nacional”, numa função sujeita a forte pressão e onde a formação, sendo “absolutamente essencial, quase nunca existe”. No referido relatório Portugal Mais Velho surge, aliás, bem sublinhado o alerta de que, sem formação, os cuidadores não podem estar preparados para aquilo que as doenças incapacitantes implicam. “Se um cuidador não sabe que uma pessoa com demência tende a ser mais agressiva, pode encarar os comportamentos de agressão como um ataque pessoal e não ser capaz de reagir de forma adequada, mostrando-se igualmente agressivo.”

Das nursing homes ao cohousing

A melhoria dos cuidados aos idosos não passa só por aqui. Para João Ferreira de Almeida valeria a pena equacionar a criação em Portugal daquilo a que além-fronteiras se chama as nursing homes. O que são? “Uma espécie de lares medicalizados”, explica, acrescentando que os cuidados continuados não respondem a esta necessidade porque são distantes dos locais onde os familiares se encontram, por um lado, e porque são temporários, podendo a permanência das pessoas prolongar-se “por um mês, três meses ou um ano”.

Asseguradas estas nursing homes, que poderiam até aproveitar muitas das infra-estruturas dos actuais lares, as restantes estruturas de acolhimento residencial ficariam livres para se aproximarem mais da lógica do cohousing ou da chamada “habitação colectiva sénior”, que funciona como uma espécie de “república” estudantil, com regras e serviços de apoio partilhados.

O ex-presidente da Câmara do Porto Nuno Cardoso, que preside agora à Hac.Ora Portugal Senior Cohousing, uma associação sem fins lucrativos criada em 2018 para começar a preparar o terreno para que os novos idosos possam envelhecer melhor, menos sozinhos e de forma mais activa, aplaude de pé. “Precisávamos de reformar os equipamentos antigos que temos e vocacioná-los para ficarem como centros de cuidados continuados, que basicamente é o que eles são”, constata, para acrescentar que, entre os quase dois mil associados da Hac.Ora, não faltam interessados em começar a arquitectar uma velhice mais sadia e autónoma, mas também mais acompanhada.

“Há um processo que marca muito as famílias, que é a saída dos filhos, que esvazia a casa. E o que me parece lógico é que, algum tempo depois, as pessoas pensem em mudar para uma casa mais confortável e mais pequena, porque, à medida que se reformam e envelhecem, já não conseguem manter a casa limpa nem cortar a relva ou consertar a persiana. As pessoas ficam sozinhas, quase aprisionadas dentro de casa. E a ideia do cohousing permite criar equipamentos compostos por estas casas mais pequenas, arquitectonicamente adaptadas ao envelhecimento, com o seu espaço íntimo e autónomo, mas com a vantagem de garantirem uma vida em comunidade, com serviços de cozinha comuns, para almoços ou jantares partilhados, com salas de convívio, lavandarias de uso colectivo, com ou sem piscina, com todo o tipo de equipamentos que as pessoas quiserem.”

O conceito, que surgiu na Dinamarca, nos anos 70, parece tão utópico como as cooperativas habitacionais que, no pós-25 de Abril de 1974, também foram beber inspiração aos países nórdicos e que, meio século depois, permitiram que se erguessem “200 mil casas para agregados que dificilmente teriam acesso de outro modo à sua habitação”, como recorda Guilherme Vilaverde, presidente da Fenache (Federação Nacional das Cooperativas de Habitação Económica). “Em termos teóricos, é uma belíssima solução”, concede João Ferreira de Almeida, lembrando que no estado norte-americano da Florida “há cidades e vilas em que a larga maioria dos habitantes são idosos que, depois dos filhos criados, venderam a casa que tinham em Nova Iorque ou Chicago, onde faz muito mau tempo no Inverno, e foram viver para o sol”.

E não teríamos potencial para promover modelos parecidos no Alentejo, por exemplo? “Temos condições de clima espectaculares, não é por acaso que tantos estrangeiros escolhem viver em Portugal, e seria um nicho de mercado muito interessante para o país, até em termos económicos. E poderia dar resposta ao despovoamento de muitas zonas”, admite Teresa Rodrigues, que não desdenha a possibilidade de ver aldeias despovoadas a serem “repovoadas com idosos que até vivam em casas separadas, mas onde existam depois infra-estruturas básicas de apoio e disponham de um enfermeiro ou um médico que garanta acesso a cuidados de saúde em casos de emergência”.

A prova de que a utopia poderá estar prestes a sair do papel é que, na Lei de Bases da Habitação, o cohousing ou a habitação colaborativa já surge matriciada como “uma solução integrável na panóplia de novas políticas de habitação”, congratula-se Vilaverde. E tanto o presidente da Fenache como a investigadora Teresa Rodrigues dizem conhecer grupos de casais que procuram soluções habitacionais adequadas à velhice e que dispensem a passagem por lares.

“Conheço um grupo de amigos, todos com os filhos crescidos e a viver já fora de casa, que estão a pensar seriamente passar a viver todos num mesmo condomínio que lhes ofereça soluções e serviços de apoio partilhados”, aponta a investigadora. “Ainda há dias me reuni com um grupo, entre os 65 e os 75 anos, já na fase da reforma ou pré-reforma, que está à procura de um terreno onde possam construir um edifício no qual possam viver todos juntos, apesar de cada um na sua casa”, descreve Vilaverde, para quem o principal obstáculo não é a falta de vontade, mas a ausência de regulamentação específica. “Isto não é um aparthotel, também não são habitações convencionais nem são lares de idosos. É uma coisa diferente de tudo o que existe e que é preciso regulamentar. Quando este passo for dado, vamos ter listas de espera”.

Mesmo sem legislação, a Santa Casa da Misericórdia do Porto tem estado a trabalhar num projecto, a construir em frente ao Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, que combinará zonas comuns e privadas “para um público menos suportado pela Segurança Social”. “Se a pandemia nos deixar, vamos avançar para o ano com este projecto-piloto, destinado a uma classe média que está a querer acautelar a sua velhice e que poderá alugar os seus espaços de forma vitalícia, dispondo de casas de banho, quartos e salas privativos, onde podem receber a família ou fazer uma festa e viver autonomamente, no fundo usufruindo ao mesmo tempo de zonas comuns de lazer, enfermagem, alimentação, lavagem da roupa e engomadoria, apoio nutricional e psicológico (se quiserem), acesso à Internet …”, enumera o provedor, dizendo querer responder assim aos idosos do futuro, “que viveram boa parte das suas vidas em democracia e que serão mais exigentes em termos de qualidade e conforto”.
“Não estou sozinho”

Mais adiantada, a Câmara de Lisboa aliou-se à Santa Casa da Misericórdia para criar uma “residência assistida”, no Bairro Padre Cruz, cuja filosofia mistura as vantagens de um lar com as do cohousing. “São 30 apartamentos — seis para casais e 24 individuais —, com casa de banho, sala e cozinha, onde cada utente vive autonomamente, com mobília que ele próprio pode escolher, e entra e sai quando quer, sabendo que está inserido numa estrutura que o protege do isolamento e o pode ajudar, se e quando necessário, a ir à farmácia, a confeccionar uma refeição, a fazer a higiene pessoal ou a chamar o 112 se partir o braço durante a noite”, descreve Sandra Elvas, directora daquela residência assistida, cujos ocupantes pagam 10% do que recebem de reforma.

É um sítio sobre o qual Luís Delgado, um dos residentes, diz: “Tenho a minha casa, mas não estou sozinho.” E não estar sozinho significa, para este imigrante de 68 anos que reside há nove em Portugal, fazer as suas refeições no refeitório quando lhe apetece conviver, ou em casa, se o que quer é sossego. “Foi uma nova família que arranjei. Mas aqui ninguém atrapalha ninguém, porque cada um tem o seu espaço. Há pessoas de todas as idades e todos se dão com todos. Há uma senhora de 92 anos que às vezes me pede para a acompanhar, quando precisa de sair, e também acontece ir ajudar outro vizinho com as compras”, exemplifica, assumindo-se felicíssimo por, com uma insuficiência cardíaca grave que o obriga a trazer consigo um desfibrilhador, ter escapado a um lar de idosos convencional. “Da maneira que vejo as pessoas nos lares, isso metia-me um medo terrível”, diz.

A perspectiva de acabar num lar também é algo capaz de tirar o sono a Manuela Costa e Almeida, que, aos 67 anos, vê aproximar-se a idade em que viu a mãe ingressar n’O Lar do Comércio. “Tento não sofrer a longo prazo e, se calhar por isso, e porque tenho o tempo preenchido com dois filhos e três netos, é que ainda não me sentei no sofá para me perguntar o que é que vou fazer com a minha vida quando não estiver capaz de fazer o que faço hoje”, adia.

Habituada a uma vida ocupada, entre outras coisas pelo voluntariado que foi fazendo com as crianças hospitalizadas no Instituto Português de Oncologia, rentabilizando os conhecimentos que adquiriu enquanto professora de Artes, diz que um lar “está fora de questão, porque ia definhar de um dia para o outro”. E se fosse num sistema de cohousing? “Com um espaço para os meus trabalhos e liberdade para me meter num comboio e ir fotografar um sítio qualquer? Isso, se calhar, já conseguia fazer...”