9.11.20

"A globalização tem grandes vantagens mas não se pode esquecer quem fica para trás"

Joana Petiz, in Dinheiro Vivo

Defensor do comércio livre, o advogado e ex-deputado lamenta que haja um complexo com as grandes empresas e a geração de riqueza. Defende alívio fiscal e diz que cabe aos governos criar condições para não deixar ninguém para trás na globalização.

Já passou pelo governo, já esteve na estrutura de liderança do CDS, hoje dedica-se sobretudo ao Direito. Em plena crise pandémica e na semana das eleições americanas mais importantes para o mundo, Adolfo Mesquita Nunes acaba de lançar o seu primeiro livro. E não é sobre nada disto que escreve. "A Grande Escolha - Mundo Global ou Países Fechados" foca-se na globalização e nas razões que invoca para ser mantida e defendida.

"A Grande Escolha", de Adolfo Mesquita Nunes

Antes de mais, uma passagem rápida pelos Estados Unidos. Que influência poderão ter estas eleições na globalização?

Neste momento ainda não sabemos quem será o presidente, e eu espero que seja Joe Biden. Não tanto por achar que vá reverter o protecionismo de Donald Trump, já que o protecionismo económico tem raízes mais profundas na América e mesmo Obama já tinha este tipo de políticas (e Biden tem sido pouco claro sobre isso). Mas pela forma de os EUA se relacionarem com a China - e aí há grande diferença. Trump é um isolacionista, Biden defende algo parecido com o que eu defendo no livro sobre esse relacionamento com a China, um grande bloco do mundo livre, para poder lidar multilateralmente com a China, em vez de ter relações bilaterais. Isso, de facto, pode influenciar globalização ao obrigar a China a ter políticas de reciprocidade que ainda não tem. Por isso digo no livro que a China não participa no mercado global como agente da globalização, embora beneficie muito com ela.

Existe ainda algum receio daquilo que vem de Pequim. Esse sentimento pode piorar com esta pandemia?

A ideia do protecionismo, seja na dependência da China ou de qualquer outro país, é prévia à pandemia. A Economist fez há tempos uma capa sobre Slowbalization... Já estava a haver esse abrandamento e a pandemia reforçou a ideia. Diz-se que a globalização potenciou o contágio da pandemia, mas se é verdade que os vírus circulam mais depressa num mundo aberto, ela também torna mais rápida a inovação, a informação, os medicamentos, a comida, os telemóveis, os computadores, etc. Prescindir desta rápida circulação de todos estes bens neste momento seria uma péssima forma de combater a pandemia. Antigamente, as pandemias demoravam mais a chegar mas chegavam e dizimavam muito mais do que esta, porque as condições do mundo eram muito inferiores. Lanço o desafio de ir ao supermercado e tirar do carrinho todos os produtos importados ou com componentes importados - e verá o que resta. A verdade é que passámos pelo confinamento e vivemos esta pandemia sem que se interrompessem as cadeias de valor global. Se fôssemos um país com vocação para a autossuficiência e tivéssemos fechado fronteiras, provavelmente tínhamos tido ruturas de alimentos e de bens essenciais.

Esta pandemia deu-nos uma ideia do que seria perder o que se conquistou na globalização? Temos todo o mundo a trabalhar em conjunto pela vacina... é uma vantagem da globalização?

Claramente. Em janeiro a China divulgou o genoma do coronavírus e logo a seguir o mundo inventou testes para o detetar que distribuiu por todos os países e em abril já milhares de investigadores procuravam a receita para a vacina ou a cura, usando técnicas, ferramentas e máquina produzidas com componentes de várias partes do mundo. Se cada país as produzisse por si, nunca teríamos tido esta velocidade de resposta. Não quero menorizar o sofrimento de muita gente que passa situações de grande dificuldade e vulnerabilidade - e falta muita coisa neste momento, mas nada do que nos falta existia antes nem existiria se vivêssemos num mundo de países isolados e não interconectados.

Há nisso um papel da digitalização e da Inteligência Artificial (IA): será essa a revolução industrial dos nossos tempos, que vai mudar o mundo que conhecemos?

Há quem fale numa nova era das máquinas no sentido em que as máquinas, com IA, não apenas nos ajudam mas substituem. Isso coloca a questão do emprego e se vamos continuar a tê-lo ou seremos substituídos por máquinas, o que cria um grave problema social. O que procuro mostrar no livro é que a automação cria muito mais emprego do que aquele que destrói - e demonstro-o com estudos e dados, a História mostra-o. O grande desafio é que não é líquido que o emprego aqui destruído seja aqui criado e por isso as nossas políticas têm de ir no sentido de criar condições para que o emprego nesta nova economia seja criado aqui.

Porque isso pode criar maior desigualdade...

Claro. Mesmo que o mundo esteja menos pobre, que as pessoas tenham do ponto de vista médio melhores condições de vida, problemas laborais geram uma sociedade mais injusta, com menos confiança e mais virada para o populismo. É urgente termos políticas de qualificação de novas gerações, reconversão profissional ao longo da vida - que é o parente pobre do discurso político mas uma das maiores revoluções que temos de fazer. Porque hoje a disrupção acontece durante a nossa vida útil. Antes demoravam uma geração, hoje uma pessoa pode ter duas disrupções no seu período de vida útil.

E isso tende a acelerar.

Tende e temos de criar instrumentos de reconversão e previdência social para reagir. E precisamos de ter inovação e desenvolvimento (I&D) no setor privado, que é algo em que Portugal se posiciona muito mal. Porque empresas com boas componentes de I&D serão as que criarão os empregos do futuro, mais bem pagos e capazes de tornar a nossa economia mais competitiva.

Diz que "é nossa obrigação melhorar a globalização". Isso passa por exemplo por reconhecer que há economias e globalização de primeira e de segunda, como a realidade dos países africanos face à dos europeus?

Desde que, a seguir à II Guerra Mundial, as economias começaram a interconectar-se que o crescimento do mundo não parou de aumentar. Com interrupções e crises, mas do ponto de vista geral, o mundo vive hoje muito melhor do que em 1950. O cidadão médio do mundo é hoje 4,4 vezes mais rico; em Portugal é avassalador: somos dez vezes mais ricos do que nessa época, quase três vezes mais ricos do que em 1980, no tempo dos nossos pais. E o que o Banco Mundial realça é que a globalização tem sido determinante para a melhoria da qualidade de vida dos países em desenvolvimento, eles são os principais beneficiados da globalização. Mas há países que resistem a participar da globalização - e África está cheia de exemplos - por motivos plutocráticos, de corrupção, modelos políticos, muitos países continuam a resistir. E faço a comparação entre Ásia e África: Ásia era mais pobre nos anos 70, na nossa geração não se tem bem noção disto, e abre-se à globalização, portanto começa a ter crescimento extraordinário, industrialização recorde, enquanto África continua na pobreza. Muitas vezes também por culpa de países europeus, do Japão e dos EUA, que têm políticas agrícolas muito protecionistas e impedem África de entrar no comércio global.

Seria por aí a solução para África, pela agricultura?

Tem de ser desde logo por uma opção política dos seus regimes de abrirem ao comércio internacional. Vários estudos mostram que assim que um país abre a sua economia passa a ter economia mais forte, mais produtiva, com mais know how e qualificação dos seus recursos humanos. Mas o mais importante nesta onda de crescimento é que todas as regiões do mundo estão melhor do que no início do século. O que significa que foi possível a todas crescer sem que nenhuma tivesse de perder.

Também um longo período de paz ajudou a isso.

É verdade, mas a economia não é um jogo de soma zero, ou seja, para alguém crescer e enriquecer, outro não tem de empobrecer. A riqueza e a sua criação são ótimas e não significam que empobrecem outros. Paul Krugman, um insuspeito de ser liberal, faz uma boa compilação de estudos que mostra como o comércio internacional é relevantíssimo para a qualidade de vida dos países mais pobres.


Mas parte desta globalização faz-se à boleia de deslocalização de fábricas, por exemplo, com baixos preços de mão-de-obra nessas regiões.

Porque é que os países em desenvolvimento melhoram a qualidade de vida com o comércio internacional? Porque há essa deslocalização e quando empresas estrangeiras entram oferecem melhores salários e formação do existe nesses países e as pessoas começam a entrar numa cadeia de valor global e a ter mais know how. E isso aumenta salários. O que está já a acontecer na China, por exemplo, é que o preço da mão-de-obra aumentou bastante. Eram muito baixos e à conta da globalização, do investimento, subiram. Ou seja, sem que fosse preciso fazer uma lei sobre o assunto, tem havido um movimento de reshoring: há empresas a regressar por razões várias, incluindo que a China começa a perder essa vantagem competitiva. Mas é claro que há desafios. A deslocalização é muitas vezes entendida como fator de perda de emprego, e há estudos que mostram por exemplo que a deslocalização de fábricas americanas para a China causou perda de emprego nesse setor mas a criação de emprego é mais do que compensada por causa da competitividade que a economia ganha noutros setores. Portanto, não temos de prometer às pessoas que a automação ou deslocalização não as vão afetar - isso é impossível, é uma promessa vã - mas antes garantir que acontecendo isso há instrumentos para aproveitar as oportunidades criadas. Porque do ponto de vista líquido há mais criação do que destruição de emprego.

No livro, fala da evolução que a globalização trouxe, nomeadamente pela fatia de população mundial que passou a linha do limiar da pobreza. Mas é honesto tirar estas conclusões quando estamos a falar de 2 dólares por pessoa por dia?

Essa é a referência do Banco Mundial para pobreza extrema. E o número de pessoas que saíram da pobreza extrema nos últimos 20 anos é extraordinário. Eu também não me satisfaço, não podemos dar-nos por satisfeitos porque hoje menos de 10% da população mundial viver em pobreza extrema, mas em 1980 eram 44% abaixo desse limiar. Estamos a falar de valor com paridade do poder de compra. Mas procurei não ficar por esse valor e fui ver o que se passava com a classe média e o que acontece é que à data da pandemia tínhamos a maior classe média de sempre. E as estatísticas mostram que em 2030 teríamos mais 5,3 mil milhões de pessoas nessa classe, ao passo que teríamos menos mil milhões na pobreza. E estar na classe média vai muito além do dinheiro, é tudo o que temos hoje de bens e serviços à nossa disposição.

Acesso a saúde, educação...

Saúde, educação, medicamentos, viagens, eletrodomésticos, tratamento veterinário, alimentos sem glúten... Muitas vezes, de forma gratuita, temos acesso a coisas que eram inimagináveis há 30 anos e não valorizamos quando comparamos com a geração dos nossos pais ou avós. Conto no livro que o meu avô se lamentava muito da morte precoce de uma irmã por uma doença hoje banal...

Um dos benefícios focados é precisamente essa tendência de crescimento da classe média, pela redução da pobreza. A pandemia pode pôr em risco essa evolução?

Não é a pandemia, é a reação das economias, a forma como os Estados reagem à pandemia. Quando tivemos confinamento assistimos ao açambarcamento. O protecionismo é isso, é cada país açambarcar os seus produtos e não comercializar com mais ninguém, impor barreiras, restrições à exportação. Isso é fatal para os países mais pobres, nomeadamente os africanos, mas também para os mais vulneráveis, como Portugal. Se não exportarem para cá, não resistimos. E não se pense que poderíamos produzir tudo o que precisamos aqui: não temos população suficiente nem escala suficiente para produzir tudo o de que precisamos numa economia global. Na crise de 2010/2011, vários países fizeram restrições à exportação alimentar e o que aconteceu foi que os preços do milho e do trigo subiram brutalmente. Aliás, o economista-chefe da FAO a propósito da atual crise, já veio pedir para não se travar o comércio internacional, porque isso levará à fome. O protecionismo é essencialmente um imposto sobre os mais pobres, porque é aumentar o preço dos produtos. Por isso é que o comércio internacional é bom para os mais pobres: embaratece os produtos e cada pessoa fica com mais rendimento disponível para gastar noutras coisas. E há exemplos que dou no livro, já nesta pandemia, sobre o que restrições às exportações podem provocar: a Suíça, produtor de ventiladores, teve de parar produção porque havia restrições de alguns países europeus de material que era essencial para construir os ventiladores na Suíça. A nossa capacidade de resposta sai brutalmente afetada e com protecionismo, aí sim, iniciaremos um caminho de empobrecimento do mundo.

O sistema político está a precisar de ser revisto nesta lógica de globalização? Está desadaptado dos desafios do momento (emprego, formação ao longo da vida, salários)? E a que ponto é que isso justifica, a par dos descontentes da globalização, o crescimento do populismo?

As crises económicas são sempre momentos em que as sociedades se confrontam com o fracasso e procuram ver onde falharam e estão mais abertas a novos modelos. Somando a isto a componente pandémica, cultural e psicológica deste momento de grande vulnerabilidade, é propício a olhar para modelos que nos oferecem respostas muito imediatas e certas e abraçá-las. E o protecionismo pode ser a resposta tentadora.

A ideia de que se fechássemos fronteiras podíamos ter tudo a funcionar cá dentro e estaríamos seguros.

Exatamente. No livro, vou procurando acompanhar a Irlanda e os países escandinavos que, sendo distintos, têm enorme abertura económica, têm economias propícias a fazer negócios do ponto de vista do ambiente e fiscalidade e conseguem ter políticas de combate às desigualdades muito mais fortes e eficazes. Nós temos de nos concentrar também na criação de riqueza. E este discurso não é popular, recebe muito mais aplausos discutir e apresentar políticas de redistribuição de riqueza do que políticas de criação de riqueza. Mas o que os modelos escandinavos e irlandês mostram é que é preciso criar muita riqueza para se conseguir uma política ótima de redistribuição de riqueza. Infelizmente, em Portugal, discute-se muito pouco a criação de riqueza.

Defende que Estados menos intervencionistas contribuem para criar riqueza. Como é que isso se conjuga com a necessidade de proteger os mais pobres?

Este livro é sobre como a globalização é um instrumento extraordinário de criação de riqueza e depois digo que cabe a cada país encontrar as suas políticas e mecanismos para melhor a distribuir. Aí haverá depois divergências entre pessoas mais à esquerda ou à direita, mais liberais ou socialistas. E deixo isso para depois: o que me parece importante é ter mecanismos de criação de riqueza. Mas na área dos salários, do emprego, da habitação e da fiscalidade, há reformas que podem ser feitas por governo seja de esquerda ou de direita que são essenciais para garantirmos que essa criação de riqueza se faz ao serviço de todos e não apenas de alguns, dos vencedores. A globalização tem ótimas vantagens mas há pessoas que ficam para trás e não podemos esquecê-las - até porque não é inevitável que fiquem.

Há aqui um paradoxo: queremos estimular o consumo mas odiamos quem gasta dinheiro e ainda mais se for muito. O Adolfo defende que não se deve taxar a riqueza, nem os salários, nem outros rendimentos, nem empresas ou taxar o mínimo possível... Então onde é que se vai buscar dinheiro para a tal redistribuição?

Uma precisão: o que eu digo é que do ponto de vista da taxação de rendimentos não podemos cair em taxações confiscatórias, como as que defende Piketty, de 90% da riqueza. Porque mesmo que espoliássemos todas as fortunas do mundo hoje e as dividíssemos pelos mais de 7 mil milhões de pessoas, ficaríamos apenas ligeiramente melhor e no próximo ano não teríamos mais ricos para ir espoliar, íamos ao segundo patamar e acabávamos todos na pobreza. O que digo é: é justo que quem tem mais pague mais, é justo que haja sistemas fiscais nos quais uns contribuem com mais mas há limites e se isso começa a ter níveis confiscatórios deixamos de gerar riqueza. Passamos a distribuir pobreza em vez de multiplicar riqueza. Quanto às empresas, os países escandinavos e Irlanda mostram como uma baixa fiscalidade empresarial é essencial ao crescimento económico e criação de emprego. De cada vez que nos lamentamos de uma grande empresa estamos a fazer mal à nossa economia. As grandes empresas pagam mais, está estudado, empregam mais mulheres e têm uma componente de capacidade de I&D que coloca o mundo mais atualizado. A baixa de impostos sobre as empresas, ao contrário do que se pensava, não tem provocado o que se receava - que se baixarmos os impostos sobre empresas não se gera receita fiscal e depois não há o que redistribuir. A arrecadação fiscal tem aumentado apesar de os impostos sobre empresas na OCDE estar a diminuir.

Deve taxar-se mais o consumo do que rendimentos?

O que procuro mostrar no livro é que do cabaz fiscal, os impostos sobre rendimentos, sejam individuais ou coletivos, são dos que mais efeito negativo têm - ou positivo, se estiverem bem desenhados -. No crescimento económico. É onde devemos concentrar atenção para criar mais e melhor emprego. Portugal tem elevados custos fiscais sobre a criação de emprego e os aumentos salariais e demonstro-o no livro. O Estado fica com uma parte muito significativa do aumento salarial que uma empresa pode dar, o que significa que a empresa está a fazer grande esforço que o trabalhador não recebe por inteiro. Portanto há um claro desincentivo ao aumento salarial.

Neste Orçamento do Estado (OE) para 2021 devia haver mais medidas nesse sentido de alívio fiscal?

É um OE do qual não se vê rasgo nem caminho. É um OE que tem uma preocupação de dizer que a realidade não vai alterar-se, que se vai congelar a realidade para proteger as pessoas, mas não há nele ou a acompanhar o discurso sobre o OE uma visão sobre como vamos sobreviver e pôr a economia a funcionar, como apostamos nos setores que estarão mais dinâmicos, conseguir criar condições para que as empresas criem, mantenham e aumentem emprego. Esse discurso não vejo e gostava de ver, além do discurso necessário sobre como financiamos o nosso SNS.

A primeira medida para as empresas neste OE é o não aumento de impostos.

Há uma cultura antiempresarial por parte da maioria que governa e sempre que se fala em grandes empresas a reação é epidérmica, e é negativa. E há muitos à direita que também têm essa reação. Mas nós precisamos é que as pequenas empresas se tornem médias e as médias se tornem grandes. Caso contrário não vamos conseguir dar melhor emprego. Uma sociedade com problemas laborais é uma sociedade doente, em recessão iminente.

Esses problemas laborais também alimentam populismos?

Sim. Crises económicas e financeiras são espaços propícios a isso. Um dos subtítulos que pensei para este livro e acabou por ficar na contracapa é "um livro para quem desconfia de soluções simples para problemas complexos". Vivemos de facto num tempo em que deixámos demasiado espaço livre aos populistas. O apelo que faço, que é o final do livro, é que os defensores de uma economia de mercado, com liberdades de circulação e de uma sociedade aberta - isto vai da esquerda à direita - têm de responder a este desafio e defender sem adversativas este modelo que estamos a viver. O modelo que construímos e que é o que permitiu maior progresso na História da humanidade. E não estamos a conseguir porque dentro de cada partido há estas duas tensões: quem defende um mundo mais fechado e quem defende um mundo mais aberto.

O nosso sistema político está desadequado da realidade e dos desafios do momento?

A divisão entre esquerda e direita continua a fazer sentido, mas a grande questão do nosso tempo é como é que reagimos a esta enorme vertigem, enorme velocidade, disrupção e abertura permanente ao novo, ao estrangeiro, ao que nos desafia e interpela. E há dois tipos de resposta: os que querem proteger-nos disso, construir muros e parar a evolução com as mãos; e os que defendem que esta vertigem é para ser vencida adaptando-nos rapidamente, criando instrumentos. A primeira é uma solução derrotista, só vencemos se nos isolarmos de tudo o resto. E o que acontece nos partidos tradicionais é que estas duas respostas convivem (estou naturalmente a simplificar... há matizes). Portanto os defensores do mundo global têm constantes adversativas por causa desse debate interno, enquanto os populistas defendem coerentemente e sem obstáculos a sua sociedade fechada. O sistema político não dá resposta a esta questão e por isso é comum encontrar hoje uma enorme similitude entre entre partidos de extrema-direita e extrema-esquerda no que é o seu imaginário - não nas referências históricas mas na forma de olhar para o mundo - e o mesmo acontece nas áreas do centro.

Uma Europa pouco solidária ajuda ao crescimento desses movimentos e afastamento do sistema político?

Eu recuso esse pressuposto de uma UE pouco solidária. É evidente que há coisas onde a UE não está bem, que podem ser melhoradas - eu sou desde logo crítico do centralismo de Bruxelas e das burocracias. Mas comparar o papel da UE do ponto de vista de financiamento, institucional, de suporte das nossas economias, com ajudas que nos chegam de outros países e achar que esses são mais solidários do que a UE é uma consideração que me recuso a aceitar. E acho que é um grande problema das nossas sociedades e digo-o no livro: os defensores deste modelo de liberdades económicas aceitam permanentemente o discurso de que a culpa é de outros, nomeadamente da UE - e isso abre espaço aos populistas. É possível defender a UE sem adversativas sendo crítico de alguns dos seus aspetos. Não posso é aceitar que se diga que é pouco solidária. Muitas vezes damos por adquirido o que a UE nos dá, esquecendo-nos do que seria se não fizéssemos parte da UE. Digo aliás muitas vezes: com muitas críticas que possa fazer ao euro, se não fosse a UE, tendo em conta a habilidade dos nossos governos teríamos tido políticas muito mais erradas do que as que seguimos nas últimas décadas.

Apresenta este livro como não técnico ou económico e a verdade é que quem ler "A Grande Escolha" encontra aqui muito mais ideologia política do que economia. É um passo para o regresso à vida política? E dando-o neste momento, seria pelo CDS?

Em 2018, quando ainda podíamos viajar, eu estava em Londres numa livraria e fiquei estupefacto com os escaparates dedicados a política, que estavam dominados por livros críticos do capitalismo, da globalização, das liberdades de circulação. E pensei: estamos a perder a batalha cultural - que é, politicamente, muito relevante. Não foi aí que me lembrei de escrever o livro, mas isto é intervenção política. E espero que possa ser útil e preencher esse espaço ideológico de sustentação de um modelo que eu considero o melhor. Eu não sinto que ao escrever o livro me estou a afastar da intervenção política ou que esta só possa ser feita de forma partidária. Do CDS tenho como política não falar neste momento, sobretudo até que exista um conselho nacional em que possa dizer o que tenho a dizer sobre o partido.

Mas pode reentrar na participação política ativa?

Eu não saí da política. Mas uma coisa é fazer da política vida profissional, outra participar ativamente na discussão política - e isso é que quero fazer e daí este livro. E muita gente discordará dele, tenho a certeza, à direita e à esquerda, não tenho pretensão nenhuma de ser unanimista.

O que responde a quem o acusa de não ser verdadeiramente de direita por defender um mundo aberto e livre?

Eu sou um defensor firme da democracia liberal, das liberdades de circulação, económicas, políticas e cívicas. E sou um defensor da economia de mercado. O meu espaço político é claramente o da direita. Que defensores da democracia iliberal que se derretem com populistas ou com ditadores só porque eles enervam à esquerda... é a vida. Essas pessoas podem ser donas do espaço do iliberalismo, mas não são seguramente donas do espaço da direita. E iliberalismo é coisa com que não me identifico e com que tenho pouco a partilhar. Não aceito que defensores de democracias iliberais sejam guardiões da direita e se julguem no exclusivo de catalogar quem é e não é de direita.