Natália Faria, in Público on-line
As gerações que cresceram como “filhos únicos” ou com poucos irmãos já não sonham constituir famílias com mais de dois filhos. A maioria dos portugueses, aliás, não tenciona passar dos 1,69 filhos em média. E não, não é por causa dos entraves financeiros ou laborais. É o ideal de família que está a mudar.O ideal de família está a encolher cada vez mais. Mesmo que não houvesse entraves financeiros e a instabilidade laboral não espreitasse a cada esquina, os portugueses não desejariam passar dos 2,15 filhos em média, segundo o Inquérito à Fecundidade, apresentado esta quinta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). É um valor abaixo dos 2,31 filhos que os portugueses em idade fértil declararam desejar quando, em 2013, se fez o último inquérito deste género.
Mas é no embate com a realidade e respectivas dificuldades que mais se nota o progressivo encolhimento das famílias. Entre os filhos que já tiveram e aqueles que ainda pretendem vir a ter, os portugueses não tencionam passar dos 1,69 filhos em média, contra os 1,78 registados seis anos antes, o que coloca o país em velocidade ainda mais acelerada no inelutável processo de envelhecimento. Aliás, entre 2013 e 2019, a percentagem de pessoas em idade fértil sem filhos aumentou quase dez pontos percentuais. Ao longo do mesmo período, o número médio de filhos dos portugueses desceu de 1,03 para 0,86.
E estas são tendências que tenderão a agravar-se à medida que cada vez mais “filhos únicos” chegam à idade de serem pais. “Assiste-se a uma certa normalização das descendências pequenas e mesmo das de filho único, que decorre do facto de as gerações de filhos únicos estarem na idade de ter filhos, tendo já tido tempo de perceber que não se morre por ser filho único e que há outras formas de ter relações sociais que não só através das relações familiares”, observa a socióloga Vanessa Cunha, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
“O projecto de ser pai ou mãe não está aqui em causa, o que está em causa é a passagem do primeiro para o segundo filho ou terceiro filhos”, acrescenta, por seu turno a demógrafa Maria João Valente Rosa, que coordenou a equipa do INE, para concluir que, mesmo que entrasse numa robusta maré de saúde financeira, o país “dificilmente regressará ao patamar dos 100 mil nascimentos por ano que se perdeu em 2011”.
Por um lado, porque “em períodos de fecundidade reduzida chegam ao período fértil cada vez menos mulheres”. Por outro, porque as maternidades tendem a ser cada vez mais tardias, o que pode, dadas as limitações biológicas, comprometer a passagem ao segundo ou terceiro filhos. O inquérito mostrou, aliás, que 59% dos homens tiveram filhos mais tarde do que desejavam e o mesmo se passou com 45% das mulheres. Pior: 36% das mulheres e 48% dos homens adiaram por cinco ou mais anos o projecto de serem pais. Porquê? “Sobretudo por causa da dificuldade que os jovens têm em conseguir autonomia, estabilidade profissional e recurso económicos”, responde Vanessa Cunha, para lembrar que muitos dos que estão agora em idade de ter filhos viram os seus projectos familiares hipotecados pelas sequelas da última crise.
Por outro lado, e voltando às razões pelas quais a maioria dos agregados familiares dificilmente voltará a compor-se de mais do que uma, no máximo duas, crianças, a proporção dos que responderam “sim” à pergunta sobre se pensam ter filhos os próximos três anos baixou dos 46% para os 43%. E se em 2013 a pouca vontade de experimentar ou repetir a parentalidade poderia ir buscar explicação às sequelas da crise social e financeira (que começara dois anos antes, e que elevou o desemprego para uns recordistas 16,2%), em 2019 o mesmo não se verificou, porquanto os inquéritos foram feitos entre Setembro de 2019 e Fevereiro de 2020, numa altura em que o desemprego não ultrapassava os 6,5% e a disrupção pandémica não passava pela cabeça de ninguém.
É a vontade que pesa
Se calhar porque o inquérito foi feito numa altura de relativo desafogo financeiro é que as questões financeiras não surgem tão evidenciadas nas decisões de ter ou não filhos ou mais filhos. “Quando se perguntou às pessoas quais os motivos para quererem ter um filho ou mais filhos, o que lhes vem em primeiro lugar à cabeça é quererem ser pais ou mães. O segundo motivo prende-se com ter um cônjuge com o perfil certo e a estabilidade do emprego surge apenas em quarto lugar. Ou seja, o que salta à vista é a questão da vontade ou da ausência dela”, enfatiza Maria João Valente Rosa.
Pouco surpreendida por esta “tendência de fundo”, que, na verdade, repete aquilo que começou “nos países de língua alemã, como a Alemanha e a Áustria”, onde as famílias passaram de um ideal de dois para apenas um filho há mais gerações, está também Vanessa Cunha: “Era expectável que se repetisse aqui o que se observava em países com uma baixa fecundidade já muito consolidada e com uma normalização das fratrias pequenas.”
E na hora de decidir o avanço para o segundo ou mais filhos o que é que pesa mais na cabeça dos casais? “As elevadíssimas expectativas em relação à parentalidade e a instabilidade em termos de rendimento e de situação laboral”, enumera Vanessa Cunha. “Dos pais e das mães espera-se um investimento muito maior para o bem-estar dos filhos, já não basta que lhes satisfaçam as necessidades básicas, vestindo-os, calçando-os e juntando mais água ao feijão”, brinca a investigadora. E, dessa exigência em relação à parentalidade, resulta que muitas pessoas sentem que “não têm o tempo nem a dedicação necessários para serem bons pais e boas mães, sobretudo na transição para o segundo filho, e sobretudo numa sociedade em que, como na portuguesa, as pessoas dependem muito do trabalho para garantirem algum bem-estar económico, porque as políticas públicas de apoio à família estão muito orientadas para a resolução das situações de maior fragilidade social”.
Horários mais flexíveis e mais creches
Quanto questionados sobre as medidas de incentivo à natalidade capazes de os levar a ter mais filhos, os inquiridos apontaram em primeiro lugar a necessidade de “flexibilizar os horários de trabalho para pais e mães com filhos pequenos”, no domínio das condições de trabalho. Já no contexto dos serviços, o alargamento da rede e do acesso a creches, jardins-de-infância e ATL’s surgiu em primeiro lugar, ao mesmo tempo que, no âmbito dos rendimentos, as mulheres pediram aumento dos subsídios relacionados com educação, saúde, transporte, habitação e alimentação”, enquanto os homens privilegiaram maioritariamente a redução dos impostos para as famílias com filhos, incluindo o aumento das respectivas deduções fiscais. Quanto a outras medidas, destacou-se a reivindicação da atribuição de incentivos às entidades empregadoras com práticas de gestão que apoiem trabalhadores com filhos.
Na frente doméstica, o que resulta do inquérito é que os filhos continuam a sobrecarregar muito mais as mulheres. São elas quem lava e cuida das roupas (em 77,8% dos casos), quem prepara as refeições (65%), quem veste os filhos pequenos (65%), quem fica em casa quando eles ficam doentes (64%), quem os leva ao médico (56%) e os põe a dormir (45%). Apesar disto, as mulheres portuguesas não se queixam muito: numa escala de 1 a 10, o grau de satisfação com a divisão das tarefas nos cuidados aos filhos fixa-se nos 7,91 (7,25 no caso das tarefas domésticas). “As mulheres não sentem isso como penalização, porque reconhecem que o outro está mais ocupado com a esfera profissional ou com tarefas que não estão contempladas no inquérito, isto é, já não é aquela coisa do homem que chega a casa, enfia uns chinelos, e senta-se no sofá a ler o jornal ou a ver televisão”, interpreta Vanessa Cunha, notando que os homens também tendem a ser mais penalizados no mercado de trabalho quando procuram participar mais na esfera familiar. “Não há tanta contemplação para com os homens no seu papel de cuidadores”, enfatiza.
Por seu turno, Maria João Valente Rosa considera que a sobrecarga não é sentida como penalizadora pelas mulheres muito por causa das representações “do que é ser uma boa mãe e um bom pai”. “As mulheres, mesmo sobrecarregadas, podem estar satisfeitas porque vivem dentro de um modelo que lhes pede isso”, nota, para apontar a importância da escola na desconstrução destas assimetrias domésticas. “É preciso que sejam as escolas a desconstruir estes estereótipos porque mesmo as gerações mais novas manifestam níveis de desigualdade na partilha muito elevados, por causa dos modelos sociais que os condicionam. E isto não é uma guerra entre homens e mulheres, não são necessariamente os homens que impõem isto às mulheres, mas, muitas vezes, são elas próprias que sentem que uma maior partilha põe em cheque o seu papel. É, portanto, uma questão global de sociedade que tanto prejudica as mulheres que não conseguem afirmar-se na esfera profissional como os homens que procuram aproximar-se desse modelo mais igualitário”.
Mais “livres dos cânones sociais”: 10% declaram não ter vontade de ter filhos
Estão a aumentar os portugueses que não têm nem querem ter filhos: são já 10%, segundo o inquérito à Fecundidade de 2019 feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). E não, não é por causa da instabilidade familiar ou financeira, mas simplesmente porque nem têm vontade disso nem os respectivos projectos de vida passam pela parentalidade. “Essa tendência e mais acentuada noutros países e tende a aumentar em função da maior diversificação das nossas biografias pessoais”, interpreta a socióloga Vanessa Cunha, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Apesar de considerar que esta percentagem “é muito volátil, sobretudo entre as pessoas mais jovens”, podendo alterar-se em função, por exemplo, da condição perante a conjugalidade, a investigadora considera que as pessoas sentem-se “mais livres de construir os seus percursos de vida adulta, mais soltas dos cânones sociais” e “mais libertas das prisões domésticas". “Não tem tanto a ver com a falta de paciência para miúdos, mas por acharem, por exemplo, que não dispõem da dedicação ou empenho que as crianças lhes merecem ou que as sociedades em que vivemos são a antítese do sítio onde se devem colocar as crianças”, concretiza, apontando ainda as preocupações com a degradação do planeta como factor indutor da decisão de não se ter filhos.
A vontade de não ter filhos era no ano passado mais expressiva entre os homens (11%) do que entre as mulheres (8,4%). Se recuarmos seis anos, as percentagens eram de 9,2% e 7,3%, respectivamente. “Não é um aumento muito significativo. E é até baixo quando comparado com outros países europeus”, relativiza também Maria João Valente Rosa. No jogo de contrastes entre países, a demógrafa lembra, aliás, que enquanto em vários outros países europeus a população tende a dividir-se entre “os que não têm filhos e os que têm bastantes filhos”, em Portugal “a vastíssima maioria das pessoas avança para o primeiro filho, não passa é para o segundo”.