4.12.20

FMI não deixa margem para dúvidas. A pandemia está a agravar as diferenças entre ricos e pobres

Vitor Andrade, in Expresso

Os mais abastados podem optar por trabalhar menos durante a pandemia, enquanto os mais pobres têm de sair de casa para ter rendimento, expondo-se ao vírus. Com a testagem em massa, os pobres seriam os mais beneficiados, pois a sua taxa de mortalidade em consequência da covid-19 cairia em aproximadamente três quartos e a economia também sairia a ganhar

A pandemia e os esforços para a controlar têm afetado desproporcionalmente os pobres, tanto dentro dos países como entre eles.

Esta é a principal conclusão a que chegaram três analistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) num estudo publicado ontem ao final da tarde, e onde se refere taxativamente que, em todo o mundo, as infeções e mortes por covid-19 são mais numerosas nos bairros pobres do que nos mais ricos.

A explicação é simples: os mais abastados, garantem os responsáveis do FMI, podem reduzir seu risco de infeção porque têm a opção de trabalhar menos e limitar o tempo que passam na rua.

Allan Dizioli, Michal Andrie e John Bluedorn referem que o efeito daquelas escolhas é profundo. “As simulações do modelo de cálculo utilizado [no estudo] indicam que, enquanto pouco mais de 10% das famílias ricas chegam a ser infetados pelo vírus, mais da metade das famílias pobres seriam infetadas ao longo de um período de dois anos. Isso também se reflete na incidência de mortes: o modelo sugere que a probabilidade de membros de famílias pobres morrerem é cerca de quatro vezes maior. Esses números sugerem que recai sobre os pobres a maior parte dos custos da pandemia em termos de saúde”.

Aqueles analistas dizem que o próprio FMI, numa investigação recente, concluiu que há uma conexão mais precisa entre a riqueza e a saúde relacionada com a pandemia. “A análise baseada em modelos [económicos] mostra que a testagem mais ampla e rápida poderia fornecer informações vitais para conter melhor a propagação do vírus, com benefícios para todos, mas, em especial, os pobres. O nosso estudo vai além da maioria dos modelos epidemiológicos ao analisar o comportamento e as escolhas individuais baseadas no seu rendimento, em vez de enfocar apenas na questão da idade, do género ou de outros dados demográficos”.


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Assim, aqueles responsáveis, sublinham que o comportamento e as escolhas que deixam os mais pobres na linha de frente da infeção durante uma pandemia “costumam ser fruto da necessidade”.

Primeiro, porque muitos trabalhadores com baixos salários estão empregados em serviços considerados essenciais durante a pandemia (como supermercados e serviços de entrega) ou têm poucas opções de trabalho remoto.

Em segundo lugar, porque é maior a probabilidade de os bairros mais pobres terem uma densidade demográfica maior, o que favorece o contágio.

VACINAS TRAZEM ESPERANÇA

Há ainda uma terceira variável, segundo a qual as pessoas nas comunidades mais pobres também tendem a ter poucas reservas de emergência, o que limita a possibilidade de trabalhar menos horas para reduzir o risco de contágio (por exemplo, trabalhadores independentes na economia informal).

Os analistas do FMI admitem que até é provável que as vacinas comecem a ser disponibilizadas de forma gradual nos próximos meses e anos, “mas, nesse meio tempo, as taxas de infeção continuam a aumentar em alguns países a um ritmo mais veloz do que no início da pandemia. As quarentenas, o distanciamento físico e o uso de máscaras têm sido as ferramentas mais comuns para conter o avanço da pandemia. Contudo, testes baratos e rápidos podem ser outra arma nessa luta”.

Allan Dizioli, Michal Andrie e John Bluedorn adiantam que há duas medidas de caráter político que são essenciais e que podem ajudar a aliviar o grande impacto da epidemia sobre os pobres até que vacinas e tratamentos eficazes estejam amplamente disponíveis e sejam oferecidos a todos que necessitem.

Primeiro, o apoio ao rendimento das famílias mais pobres ajudará diretamente a proteger o consumo dessas pessoas contra o grande choque económico adverso.

TESTAR É CADA VEZ MAIS BARATO

Segundo, informações mais precisas sobre a propagação e a contenção da pandemia através de uma testagem ampla reforça a capacidade de identificar e isolar novos casos, reduzindo os riscos de infeção (os testes rápidos desenvolvidos recentemente são baratos – a Organização Mundial de Saúde conseguiu negociá-los recentemente a cinco dólares por unidade e com o aumento da procura e da produção, os preços unitários podem cair para um dólar ou até menos).

A simplicidade desses testes significa, aliás, que qualquer família ou empresa poderia usá-los (sem a necessidade de equipamentos médicos ou de avaliação por um laboratório), dispensando qualquer tipo de processamento ou registo centralizado.

Embora uma estratégia de testagem em massa possa não impedir todos os surtos, em geral poderia reduzir a propagação da pandemia e mantê-la sob controle, sobretudo quando combinada com o uso de máscaras, a lavagem correta das mãos e o distanciamento físico.

REDUZIR A TAXA DE MORTALIDADE

“O uso de testes para identificar e isolar casos positivos é ainda mais eficaz no controle da pandemia em países com uma proporção maior de famílias mais pobres. O nosso estudo mostra que, se metade dos infetados assintomáticos fosse identificada, as mortes seriam reduzidas em pelo menos três quartos no prazo de um ano. Os pobres seriam os mais beneficiados, pois a sua taxa de mortalidade em consequência da Covid-19 cairia em aproximadamente três quartos com avanços nos testes em massa, em comparação com uma queda pela metade no caso dos mais ricos”.

Independentemente da imposição de quarentenas, dispor de informações melhores através da testagem ampla “sem dúvida impulsiona a economia, pois reduz o risco de infeção nas interações com outras pessoas”.

O IMPACTO NO PIB

E concluem que quando nenhum infetado assintomático é testado e o vírus se propaga sem ser detetado, a queda no PIB da economia representativa é de 15% no primeiro ano. Quando os riscos de infeção são maiores, as pessoas optam por se afastar e reduzem a atividade económica tanto quanto possível.

“A perda cai para apenas 3,3% do PIB se 50% dos assintomáticos forem identificados através de testes e isolados para reduzir o contágio. Isso pode ser conseguido com um teste que tenha uma taxa de verdadeiro positivo (sensibilidade) de 80% se cerca de 60% de toda a população puder ser testada semanalmente”, referem ainda os responsáveis do FMI.

Por outro lado, garantem que “como os testes rápidos têm o potencial de evitar grandes perdas do PIB e os seus custos são comparativamente baixos e decrescentes, o retorno da testagem ampla da população combinada com o uso de máscaras é enorme. Essa abordagem também poderia reduzir algumas das desigualdades agravadas pela pandemia, ajudando as famílias pobres e mais vulneráveis a suportar melhor a crise”.