A 6 de Outubro de 1992 nascia a SIC, o primeiro de dois canais privados que abriam as comportas para a avalanche do cabo, da Internet e do streaming. O televisor passava de janela a espelho para o “Portugal real”. Trinta anos depois da revolução, há menos espectadores nos generalistas, mas ainda têm uma grande fatia do público. A receita? É a mesma.
A televisão a cores surge em Portugal entre 1976 e 80 na RTP, mas quando se fala do nascimento da SIC e, por conseguinte, da televisão privada, é como se o advento da cor se repetisse. Foi há exactamente 30 anos que a jornalista Alberta Marques Fernandes deu as boas tardes a um país que pela primeira vez viu uma emissão que não a da televisão do Estado. Foi como carregar num acelerador e passar do quase nada para, três décadas depois, um demasiado pulverizado digital. Hoje, a maior fatia do público continua ali em certos horários, sentada, a ver o país passar. A receber “amor”, como diz a apresentadora da SIC Júlia Pinheiro, numa “televisão espelho”, como resume a académica Felisbela Lopes. Porquê? Muito por “tradição e porque é o meio mais fácil: ligo o botão e há uma extensão da minha sala de estar”, completa a investigadora Catarina Duff Burnay.
“Estava a fazer [o programa de variedades de Filipe La Féria] Grande Noite na RTP”, recua o apresentador João Baião até Outubro de 1992. Olhava de fora para o advento das privadas. “As grandes memórias que tenho é da cor que a SIC trouxe à televisão portuguesa, tinha uma dinâmica diferente, os décors em cores quase berrantes. Tudo muito vivo, apelativo.”
Anos mais tarde, tornar-se-ia num dos rostos de um dos motes que simbolizavam a SIC — a “televisão em movimento” do produtor Ediberto Lima e do seu Big Show SIC — e de um tipo de programação que ainda ocupa horas a fio dos generalista: as matinés recheadas de música popular e de encontros com o “Portugal real”. Tal como a “cor”, essa é uma expressão em que inevitavelmente se tropeça nas conversas sobre o dealbar da televisão comercial. A outra é “emoção”.
O que mudou desde então? Logo a seguir estreia-se a TVI (20 de Fevereiro de 1993), apareceu o cabo (1994, com 26 canais a juntar aos quatro generalistas) e depois o zapping quase infinito entre canais temáticos e canais de notícias a emitir 24 horas (a SIC Notícias nasce em 2001). A Internet acelerou a História, o YouTube convidou o espectador a ser apresentador, as redes sociais aproximaram público e estrelas, o streaming tornou o consumo glutão e entupiu as condutas de produção e o TikTok mostrou que tudo continua a ser imagem em movimento, mas que o audiovisual talvez esteja envelhecido. Para Felisbela Lopes, especialista em televisão e professora da Universidade do Minho, “a televisão nos últimos 30 anos ficou anestesiada”.
E desde o primeiro grande reality show, o Big Brother da TVI em 2001, ainda mais. Quando as privadas só tinham um ano, o investigador do ISCTE José Rebelo identificava algumas tendências-chave: “relevo esmagador da novela”, a importância dos concursos e do desporto, uma cobertura jornalística em “febrilidade” em comparação com o que existia. Entretanto, despontou uma indústria das novelas portuguesas, encetada pela TVI e agora pasto também da SIC, e tenta-se fazer mais séries sobretudo na RTP — como a SIC fizera no seu arranque, a par dos telefilmes. Olhando para estas categorias e considerando os reality shows “novelas da vida real”, Felisbela Lopes, autora de Vinte anos de TV privada em Portugal, lamenta agora ao PÚBLICO: “A oferta não sai disto há 22 anos.”
José Eduardo Moniz, director-geral da TVI que, quando eclodem as privadas, era director-coordenador de informação e programação da RTP (1989-94), é mais ponderado: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Mas há coisas que manifestamente têm de ser revistas. Estamos a viver num modelo que implantei na TVI há 20 anos e que a SIC resolveu seguir.”
Daniel Oliveira, que com o fundador da SIC, do grupo Impresa e ex-primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão preside hoje à festa de anos da TV comercial, tem resposta pronta para a pergunta sobre se não se pode reinventar a televisão generalista. “A sociedade também não passou a dar relevo a outros temas”, diz ao PÚBLICO.
“Os géneros em que apostamos são aqueles que sentimos que são o que o público quer e complementamos com géneros de nicho”, explica o director-geral de entretenimento e de programas da SIC, que operou a mais recente guinada da guerra das audiências e mantém a estação na frente há 44 meses depois de 12 anos e meio de domínio da TVI. São gostos e escolhas comuns à televisão mundial, diz, e programas como Tabu, de Bruno Nogueira, Isto É Gozar Com Quem Trabalha, de Ricardo Araújo Pereira, ou as séries que produzem para a plataforma de streaming Opto e que por vezes mostram no canal principal são os tais nichos.
“Acho que a televisão não se reinventa nem tem de o fazer”, diz Catarina Duff Burnay, coordenadora do Mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade Católica. Há uma previsibilidade do alinhamento que não é necessariamente má, defende, acreditando que os canais generalistas ainda têm um “papel agregador” e são “um meio de ‘coesão nacional’ em volta de alguns temas e momentos importantes da sociedade portuguesa”, sejam eles comunicados pelas novelas ou pelos noticiários. Felisbela Lopes põe o dedo numa ferida. “Há uma falta de investimento, um medo de arriscar. O campo mediático não tem grande folga financeira e as televisões têm medo.” Há accionistas a satisfazer, anunciantes a cativar.
Em 1992, o número de emergência ainda era o 115, os números de telefone (fixo, que os telemóveis eram uma raridade só vista nos filmes) ainda não tinham nove dígitos e a música nova de Bruce Springsteen 57 channels (and nothin’ on) era uma alusão à hipnótica oferta do cabo cujo sentido os portugueses ainda não apreendiam completamente. Televisão era sinónimo de RTP e era “a nossa”, como dizia uma jovem interrompida a falar numa cabine telefónica por um jornalista da estação do Estado sobre se fazia, ou não, sentido haver mais canais. Primeiro veio a SIC, com objectivo central de aposta na informação, e logo depois a TVI, então focada no “humanismo cristão”.
O Telejornal de 6 de Outubro de 1992 mostra a redacção e as instalações da SIC em festa, celebrando também a chegada das câmaras da RTP. “Todos somos filhos ou sobrinhos da RTP, ou subsidiários do que ela deixou na nossa memória”, comenta Júlia Pinheiro ao PÚBLICO. Seria a primeira de milhentas vezes que o espectador ia ver a redacção, porque a SIC inaugurou o seu uso como cenário e pano de fundo — mais um sinal da intimidade e proximidade que o seu incontornável director fundador, Emídio Rangel, desejava, e que teria declinações tão diferentes quanto os programas pré-reality portugueses Na Cama Com... e All You Need Is Love, ou ainda os internacionais topless de Água na Boca e Playboy, bem como a informação incisiva dos seus blocos noticiosos ou inclusiva de Praça Pública.
Como espectador de 11 anos, Daniel Oliveira diz que foi “tomado por aquela explosão que a TV privada representou em Portugal”, temperada pela “irreverência, alegria, coisas que não estávamos habituados a ver. Uma linguagem desempoeirada, uma televisão muito próxima do Portugal real”. Em 1997, é convidado para colaborar com o programa Os Donos da Bola e entrava no mundo televisivo, agora para fazer. Sublinha “a forma como Portugal se viu espelhado na antena da SIC”.
O repórter da RTP que faz a visita inaugural à SIC termina a ida à concorrência com generosidade: “Afinal, a diversidade é uma coisa boa para todos — para eles, para nós, e sobretudo para si.” Antes, apontara na peça que houvera uma “grande campanha de imprensa nos jornais controlados pelos accionistas da SIC”, mostrando, entre outras, a primeira página do PÚBLICO com a afirmação: “Hoje é dia SIC”.
Era de facto dia SIC, mas na prática abria-se a era da televisão privada, que a TVI completaria meses depois. Com a revisão constitucional de 1989, a emissão televisiva passava a poder contemplar estações comerciais em Portugal e no final de 1990 Marques Mendes, então como porta-voz do Conselho de Ministros, anunciava para 1991 o concurso para as privadas. “Esta é a última reforma de fundo, estrutural, que no domínio da informação importava concretizar na sociedade portuguesa. Concretiza-se por esta via o direito à diferença em matéria de televisão no nosso país”, postulou.
Seguir-se-iam anos de entusiasmo e de grande vitalidade em todo o sector dos media, mais emprego para actores, jornalistas, técnicos, produtores e um sem fim de profissionais e grande mudança social, alicerçada algures entre os fundos chegados ao jovem membro da União Europeia e a televisão. O país europeu que mais via televisão (3h40 em média em frente ao ecrã em 1990, segundo o European Television Minibook de 1992 da agência de marketing Carat) tinha mais para ver. “E para quem tinha menos opções de lazer a televisão ganha ainda mais espaço”, constata Duff Burnay.
“Não sei se na altura achávamos que havia um certo cinzentismo na RTP, mas com o aparecimento da SIC, ou seja pela diferença, percebemos”, diz a académica. Júlia Pinheiro ri-se: “A televisão antes de 1992 era essencialmente muito chata.” Claro que havia Herman José ou Júlio Isidro, nomeia entre outros, mas era uma questão de forma de comunicar, “muito formal, não criava proximidade com o espectador”, diz o rosto do programa das tardes da SIC, Júlia. “A SIC foi a primeira a não ter medo da emoção.”
Via-se a vida privada na esfera mais pública, das Cenas de um Casamento ao Juiz Decide, com um novo tipo de programas que hoje estão por toda a parte, no cabo e no streaming. É difícil imaginar para quem cresceu no pós-parabólica e em pleno mundo Gmail e smartphone, mas havia uma força única, comum: um ecrã. Hoje e sobretudo fora dos centros urbanos, ainda se pode encontrar bolsas assim, mas que agora têm pelo menos mais uns canais para explorar. “O país mudou muito porque não se via. Quando começámos a espelhar isso na informação e no entretenimento as pessoas descobriram-se, viram-se em espelho. O fascínio aumenta e cria-se a proximidade”, remata Júlia Pinheiro, que começou na RTP, passou pela TVI e voltou à SIC.
O Big Show SIC é emblemático dos primeiros anos da SIC, apesar de só ter começado em 1995, e hoje, garante Baião, “é quase um programa de culto”. Foi a terceira escolha para anfitrião do programa que começou pelas tardes de fim-de-semana e ascendeu às noites de sábado para destronar o rei, Parabéns, de Herman José, na RTP1.
“No primeiro episódio, vestido de Charlot, vi-me metido no meio de uma arena, rodeado de gente e com música em altos berros e aquilo aconteceu naturalmente.” Aquilo era o seu estilo de apresentação sob uma realização saltitante num cenário circense. “Foi através dele que soube que tinha uma energia fora do comum”, diz hoje, aos 58 anos, quando ainda faz seis programas semanais em directo na SIC e teatro. Era também um exemplo do binómio da televisão comercial — apelar ao tal “Portugal real”, que dá número, e às classes mais abastadas, que dão publicidade de topo. “Sentimo-nos outsiders”, admite Baião, que diz que só conheceu Rangel numa festa fora do canal.
Chamavam-lhe pimba e foi um êxito-surpresa. “Havia muitos cantores que se recusavam a pisar o palco do Big Show. Achavam sobranceiro e magoou-me um bocadinho”, diz hoje Baião. Foi primeira página do PÚBLICO por ter tido mais audiência do que a festa-comício do PSD do Pontal, Herman tinha uma rábula sobre o Pig Showzito, o académico Nelson Traquina escreveu o livro Big Show Media. Paulo de Carvalho, Laura Pausini ou Ricky Martin passaram a ir ao programa.
Nessa altura, a TVI ocupava um lugar ténue. “Quando a TVI apareceu foi uma estação de televisão muito frágil”, recorda José Eduardo Moniz. “Na RTP enfrentávamos a concorrência da SIC mas, desde logo, considerámos que a TVI não era propriamente um adversário, era uma coisa muito confessional, muito segmentada, a programação era frágil, a informação era inconsistente.” A partir de 1998, rejuvenesceria às mãos de Moniz e Portugal encontrava mais um espelho. “A situação era simples: uma RTP muito institucional e em queda, uma SIC muito pujante, dominadora e com tiques de imperialismo.”
O caminho era algures entre as duas, “uma televisão que nos aproximasse muito das pessoas, que se afirmasse como genuinamente portuguesa”, contrastando com a SIC: “Afirmámos os valores portugueses face à entidade dominante no mercado, a TV Globo — e não a SIC”, diz o actual director-geral do canal.
“A televisão ditou algumas tendências na moda, nos nomes, na forma de estar, nos costumes”, reflecte Duff Burnay sobre as transformações operadas desde 1992. “O país que somos e em que nos transformámos deve muito ao que foi o jornalismo e o entretenimento criado pela televisão”, diz Felisbela Lopes, citando como mudaram os ritmos políticos.
“Chegámos numa altura que fazia um encaixe perfeito naquilo que o jornalismo da SIC pretendia ser: ao fim de um ano da segunda maioria absoluta de Cavaco Silva, que iria ter mais desgaste e problemas, quando a presidência de Mário Soares fica mais agressiva”, enumera Ricardo Costa, que seria o único a destacar na TV a gaffe do novo primeiro-ministro, António Guterres, sobre o PIB (“É fazer a conta”).
“Éramos a linha da frente”
Quando os jornalistas e apresentadores começaram a trocar os seus empregos na RTP, no Expresso ou noutros meios pela jovem SIC, “diziam-nos ‘Cuidado que aquilo vai falir’”, recorda Ricardo Costa, director de informação da SIC.
Nos anos anteriores, o jornalismo que ia até ao fim do mundo ou até ao fundo da rua da TSF, o surgimento de novos jornais como O Independente ou o PÚBLICO mudava as notícias em Portugal e dava mais poder de decisão aos portugueses. Na RTP, “a partir de 1989-90 começámos a preparar-nos”, recorda Moniz. “Eu próprio tinha sido convidado para a televisão privada e fiquei na RTP. Comecei a trabalhar para dotar a informação da empresa de um grau de credibilidade diferente, com dinâmicas novas e, extremamente importante, recrutando novos jornalistas.” Já antes, quando se separam a RTP1 e a 2, se criara concorrência dentro da empresa, recorda o actual responsável da TVI, que rejeita os “clichés tradicionais” sobre a estação pública. A actualização da RTP “não foi uma coisa revolucionária, foi reformista”, descreve ao PÚBLICO, garantindo que quando a SIC nasceu “a RTP dava cartas na sua informação”.
O que levou a SIC rapidamente à liderança foi a programação, defende Ricardo Costa, “mas a informação deu um contributo fundamental, brutal, de grande diferença de linguagem, de narrativa e de estrutura”.
O “buzinão” da Ponte 25 de Abril, protesto contra a subida das portagens e ponto negro do cavaquismo, “fez-se muito a reboque da cobertura da SIC”, lembra Felisbela Lopes. E quando o próprio Cavaco Silva, “pouco experimentado aos ritmos da televisão”, é questionado sobre se se “teria juntado ao buzinão e disse que sim, a partir daí foi impossível aumentar as portagens”. Objectivo: “tirar a maquilhagem”, diz Ricardo Costa, “do Portugal sentado, das inaugurações dos ministros”, completa Júlia Pinheiro.
Rosto de um dos programas emblemáticos do lançamento e jornalismo da SIC, Praça Pública, Júlia Pinheiro partilha o aniversário com o canal (este ano são 60). História simbólica de como o espectador percebera que ali era o protagonista, e vice-versa: “Estávamos sempre na rua. Teve tanto, tanto sucesso e foi um instrumento de tal importância para o cidadão comum que com frequência ligavam-nos para a redacção para dizer ‘há um incêndio’. Nós dizíamos: ‘telefone para os bombeiros’. ‘Ah, primeiro ligámos para vocês’. Éramos a linha da frente.” Hoje, o mesmo acontece com a CMTV, por exemplo.
Em Setembro de 1998, José Eduardo Moniz chega à TVI para mudar. “Fizemos uma informação muito ágil, muito incomodativa, dávamos voz a quem não a tinha e correndo o risco de injustamente nos acusarem de sensacionalismo.”
O corolário destes 30 anos parece ser também uma vitória para a informação na SIC. Mais do que as novelas ou os reality shows (e semanalmente Ricardo Araújo Pereira), o programa mais visto diariamente é o Jornal da Noite. Como se chega aqui?
“O Jornal da Noite da SIC é um produto muito consistente, tem os mesmos apresentadores há muitos anos, tem uma linha editorial muito estável e é um jornal que apostou muito nos segmentos longos”, diz Ricardo Costa. Por outro lado, o público mudou de comportamento quando chega a casa e para a concorrência dos videojogos ou do streaming, “a força do directo beneficia o desporto e a informação”. É uma âncora.
Um espelho com décadas
Hoje não se está Na Cama Com… Alexandra Lencastre mas há Quem Quer Namorar Com O Agricultor e a SIC não repetiu O Bar da TV ou Masterplan mas a TVI continua forte com o Big Brother, agora apresentado pela sua directora de entretenimento e ficção Cristina Ferreira. O cenário não parece assim tão diferente desses anos-chave de 1992 ou 2000 e evoca, como faz Francisco Rui Cádima num artigo recente na revista Media & Jornalismo, o outro lado do espelho da abertura da televisão comercial: “a desregulação selvagem da paisagem audiovisual portuguesa”, como escreveu no Diário de Notícias o ex-director do PÚBLICO e ex-director-adjunto do Expresso Vicente Jorge Silva, que vira nos anos seguintes uma “espiral incontrolável de vulgaridade” no ecrã.
“Como em tudo, há momentos de excesso quando se está a decidir e a testar novos formatos e novas fórmulas”, diz Daniel Oliveira, sem dar exemplos e mencionando apenas a “violência em determinados programas”. O “pontapé do Marco”, que abre noticiários e faz primeiras dos jornais depois de um concorrente do primeiro Big Brother ter agredido outra participante, será um desses momentos e também representa “o info-entretenimento” que deixou lastro, diz Duff Burnay, contaminando até a linguagem e formato da reportagem, atenta.
Nem a RTP se salvou e nos primeiros anos mimetizou, dentro dos limites do contrato de concessão e sob o espectro da sua própria privatização, um pouco as estratégias da SIC e da TVI, que entretanto deixou de ser um projecto da Igreja e ganha tal fôlego sob a direcção de Moniz (1998-2009), e que em 2005 assume a liderança nas audiências durante 12 anos e meio. A ficção nacional teve um papel determinante na afirmação da televisão comercial e vice-versa, e a TVI desatou esse nó de bater as novelas brasileiras. A sua informação tornou-se também mais agressiva, incontornável. Ricardo Costa é pragmático e comenta, generalizando: “A SIC abanou a estrutura das coisas, ao fim de uns anos o nosso jornalismo aburguesou-se.” Felisbela Lopes concorda. “A informação foi contrapoder numa fase inicial e depois foi-se esbatendo, não fez uma revolução.”
É perante os reality shows que “a RTP passou a ser mais alternativa”, crê Felisbela Lopes, e na última década “teve um papel determinante na ficção”, diz Burnay, sobretudo nas séries, e “as experiências que a RTP faz depois têm efeito cascata noutros canais”, além de estarem a chegar às plataformas de streaming internacionais.
Ainda assim, à noite nos dois privados há blocos de novelas que no seu conjunto juntam mais de dois milhões de espectadores. Nas tardes de fim-de-semana, RTP, SIC e TVI têm música e festa popular. Em 1992 ia-se em busca do sucesso ao Chuva de Estrelas, e agora lá está The Voice Portugal aos domingos à noite da RTP1, apresentado pela mesma Catarina Furtado — são formatos internacionais que a televisão paga permitiu trazer para o Portugal que via Casa Cheia na RTP. A Noite da Má Língua (1994-97) também voltou a estar no ar, mas em versão podcast.
José Eduardo Moniz admite, resume e promete: “Se olharmos para as programações elas são muito parecidas em muitos aspectos, compete-nos enquanto challengers [na luta pelo regresso à liderança das audiências] trabalhar caminhos alternativos e o espectador ficará a ganhar se tiver ofertas diferenciadas.” Que caminhos são esses? O segredo é a alma do negócio.
Tudo começou com “uma televisão espelho dos sentimentos: ir à televisão para o Ponto de Encontro, ir à televisão para pedir perdão [ao Perdoa-me]”, lembra Felisbela Lopes. “Era a vida real emocional dos portugueses” e Portugal ainda não saiu da fase “televisão espelho”. No cabo, essas fórmulas alimentam canais inteiros; no streaming, as principais plataformas têm reality e talent shows e novelas latinas entre os seus programas mais vistos. Há fórmulas imbatíveis e irresistíveis. A terceira fase da evolução televisiva, a hipertelevisão “em que os cidadãos podem ser co-produtores, com convergência de ecrãs, está na cabeça dos teóricos mas não existe na realidade — muito menos em Portugal”.
“Somos uma sociedade mais envelhecida muito ligada à televisão e o 'star system’ português constrói-se muito através da televisão, não me parece que vá desaparecer”, prevê Catarina Duff Burnay, também coordenadora da equipa portuguesa do Observatório Iberoamericano da Ficção Televisiva.
João Baião é apresentador num mundo diferente, com redes sociais, YouTubers, TikTokers e Netflixes. “Temos de perceber que Portugal não é só Lisboa e Porto e que há muitos sítios que não têm acesso aos outros canais”, recorda, num país em que só em Março de 1999 as ilhas do Corvo e das Flores receberam pela primeira vez o sinal da RTP1 e 2 em directo e só os ilhéus com TV Cabo tinham SIC e TVI. “Os generalistas ainda têm um papel muito forte na vida das pessoas — em instituições, pessoas hospitalizadas, reformadas —, e abrangem todas as faixas etárias. Hoje há muita cor, muita coisa, mas o público ainda dá muito espaço para crescer ao conceito da televisão generalista.”
Notícia corrigida às 7h23 de 6 de Outubro: horário em que mais portugueses estão com os generalistas
Chamavam-lhe pimba e foi um êxito-surpresa. “Havia muitos cantores que se recusavam a pisar o palco do Big Show. Achavam sobranceiro e magoou-me um bocadinho”, diz hoje Baião. Foi primeira página do PÚBLICO por ter tido mais audiência do que a festa-comício do PSD do Pontal, Herman tinha uma rábula sobre o Pig Showzito, o académico Nelson Traquina escreveu o livro Big Show Media. Paulo de Carvalho, Laura Pausini ou Ricky Martin passaram a ir ao programa.
Nessa altura, a TVI ocupava um lugar ténue. “Quando a TVI apareceu foi uma estação de televisão muito frágil”, recorda José Eduardo Moniz. “Na RTP enfrentávamos a concorrência da SIC mas, desde logo, considerámos que a TVI não era propriamente um adversário, era uma coisa muito confessional, muito segmentada, a programação era frágil, a informação era inconsistente.” A partir de 1998, rejuvenesceria às mãos de Moniz e Portugal encontrava mais um espelho. “A situação era simples: uma RTP muito institucional e em queda, uma SIC muito pujante, dominadora e com tiques de imperialismo.”
O caminho era algures entre as duas, “uma televisão que nos aproximasse muito das pessoas, que se afirmasse como genuinamente portuguesa”, contrastando com a SIC: “Afirmámos os valores portugueses face à entidade dominante no mercado, a TV Globo — e não a SIC”, diz o actual director-geral do canal.
“A televisão ditou algumas tendências na moda, nos nomes, na forma de estar, nos costumes”, reflecte Duff Burnay sobre as transformações operadas desde 1992. “O país que somos e em que nos transformámos deve muito ao que foi o jornalismo e o entretenimento criado pela televisão”, diz Felisbela Lopes, citando como mudaram os ritmos políticos.
“Chegámos numa altura que fazia um encaixe perfeito naquilo que o jornalismo da SIC pretendia ser: ao fim de um ano da segunda maioria absoluta de Cavaco Silva, que iria ter mais desgaste e problemas, quando a presidência de Mário Soares fica mais agressiva”, enumera Ricardo Costa, que seria o único a destacar na TV a gaffe do novo primeiro-ministro, António Guterres, sobre o PIB (“É fazer a conta”).
“Éramos a linha da frente”
Quando os jornalistas e apresentadores começaram a trocar os seus empregos na RTP, no Expresso ou noutros meios pela jovem SIC, “diziam-nos ‘Cuidado que aquilo vai falir’”, recorda Ricardo Costa, director de informação da SIC.
Nos anos anteriores, o jornalismo que ia até ao fim do mundo ou até ao fundo da rua da TSF, o surgimento de novos jornais como O Independente ou o PÚBLICO mudava as notícias em Portugal e dava mais poder de decisão aos portugueses. Na RTP, “a partir de 1989-90 começámos a preparar-nos”, recorda Moniz. “Eu próprio tinha sido convidado para a televisão privada e fiquei na RTP. Comecei a trabalhar para dotar a informação da empresa de um grau de credibilidade diferente, com dinâmicas novas e, extremamente importante, recrutando novos jornalistas.” Já antes, quando se separam a RTP1 e a 2, se criara concorrência dentro da empresa, recorda o actual responsável da TVI, que rejeita os “clichés tradicionais” sobre a estação pública. A actualização da RTP “não foi uma coisa revolucionária, foi reformista”, descreve ao PÚBLICO, garantindo que quando a SIC nasceu “a RTP dava cartas na sua informação”.
O que levou a SIC rapidamente à liderança foi a programação, defende Ricardo Costa, “mas a informação deu um contributo fundamental, brutal, de grande diferença de linguagem, de narrativa e de estrutura”.
O “buzinão” da Ponte 25 de Abril, protesto contra a subida das portagens e ponto negro do cavaquismo, “fez-se muito a reboque da cobertura da SIC”, lembra Felisbela Lopes. E quando o próprio Cavaco Silva, “pouco experimentado aos ritmos da televisão”, é questionado sobre se se “teria juntado ao buzinão e disse que sim, a partir daí foi impossível aumentar as portagens”. Objectivo: “tirar a maquilhagem”, diz Ricardo Costa, “do Portugal sentado, das inaugurações dos ministros”, completa Júlia Pinheiro.
Rosto de um dos programas emblemáticos do lançamento e jornalismo da SIC, Praça Pública, Júlia Pinheiro partilha o aniversário com o canal (este ano são 60). História simbólica de como o espectador percebera que ali era o protagonista, e vice-versa: “Estávamos sempre na rua. Teve tanto, tanto sucesso e foi um instrumento de tal importância para o cidadão comum que com frequência ligavam-nos para a redacção para dizer ‘há um incêndio’. Nós dizíamos: ‘telefone para os bombeiros’. ‘Ah, primeiro ligámos para vocês’. Éramos a linha da frente.” Hoje, o mesmo acontece com a CMTV, por exemplo.
Em Setembro de 1998, José Eduardo Moniz chega à TVI para mudar. “Fizemos uma informação muito ágil, muito incomodativa, dávamos voz a quem não a tinha e correndo o risco de injustamente nos acusarem de sensacionalismo.”
O corolário destes 30 anos parece ser também uma vitória para a informação na SIC. Mais do que as novelas ou os reality shows (e semanalmente Ricardo Araújo Pereira), o programa mais visto diariamente é o Jornal da Noite. Como se chega aqui?
“O Jornal da Noite da SIC é um produto muito consistente, tem os mesmos apresentadores há muitos anos, tem uma linha editorial muito estável e é um jornal que apostou muito nos segmentos longos”, diz Ricardo Costa. Por outro lado, o público mudou de comportamento quando chega a casa e para a concorrência dos videojogos ou do streaming, “a força do directo beneficia o desporto e a informação”. É uma âncora.
Um espelho com décadas
Hoje não se está Na Cama Com… Alexandra Lencastre mas há Quem Quer Namorar Com O Agricultor e a SIC não repetiu O Bar da TV ou Masterplan mas a TVI continua forte com o Big Brother, agora apresentado pela sua directora de entretenimento e ficção Cristina Ferreira. O cenário não parece assim tão diferente desses anos-chave de 1992 ou 2000 e evoca, como faz Francisco Rui Cádima num artigo recente na revista Media & Jornalismo, o outro lado do espelho da abertura da televisão comercial: “a desregulação selvagem da paisagem audiovisual portuguesa”, como escreveu no Diário de Notícias o ex-director do PÚBLICO e ex-director-adjunto do Expresso Vicente Jorge Silva, que vira nos anos seguintes uma “espiral incontrolável de vulgaridade” no ecrã.
“Como em tudo, há momentos de excesso quando se está a decidir e a testar novos formatos e novas fórmulas”, diz Daniel Oliveira, sem dar exemplos e mencionando apenas a “violência em determinados programas”. O “pontapé do Marco”, que abre noticiários e faz primeiras dos jornais depois de um concorrente do primeiro Big Brother ter agredido outra participante, será um desses momentos e também representa “o info-entretenimento” que deixou lastro, diz Duff Burnay, contaminando até a linguagem e formato da reportagem, atenta.
Nem a RTP se salvou e nos primeiros anos mimetizou, dentro dos limites do contrato de concessão e sob o espectro da sua própria privatização, um pouco as estratégias da SIC e da TVI, que entretanto deixou de ser um projecto da Igreja e ganha tal fôlego sob a direcção de Moniz (1998-2009), e que em 2005 assume a liderança nas audiências durante 12 anos e meio. A ficção nacional teve um papel determinante na afirmação da televisão comercial e vice-versa, e a TVI desatou esse nó de bater as novelas brasileiras. A sua informação tornou-se também mais agressiva, incontornável. Ricardo Costa é pragmático e comenta, generalizando: “A SIC abanou a estrutura das coisas, ao fim de uns anos o nosso jornalismo aburguesou-se.” Felisbela Lopes concorda. “A informação foi contrapoder numa fase inicial e depois foi-se esbatendo, não fez uma revolução.”
É perante os reality shows que “a RTP passou a ser mais alternativa”, crê Felisbela Lopes, e na última década “teve um papel determinante na ficção”, diz Burnay, sobretudo nas séries, e “as experiências que a RTP faz depois têm efeito cascata noutros canais”, além de estarem a chegar às plataformas de streaming internacionais.
Ainda assim, à noite nos dois privados há blocos de novelas que no seu conjunto juntam mais de dois milhões de espectadores. Nas tardes de fim-de-semana, RTP, SIC e TVI têm música e festa popular. Em 1992 ia-se em busca do sucesso ao Chuva de Estrelas, e agora lá está The Voice Portugal aos domingos à noite da RTP1, apresentado pela mesma Catarina Furtado — são formatos internacionais que a televisão paga permitiu trazer para o Portugal que via Casa Cheia na RTP. A Noite da Má Língua (1994-97) também voltou a estar no ar, mas em versão podcast.
José Eduardo Moniz admite, resume e promete: “Se olharmos para as programações elas são muito parecidas em muitos aspectos, compete-nos enquanto challengers [na luta pelo regresso à liderança das audiências] trabalhar caminhos alternativos e o espectador ficará a ganhar se tiver ofertas diferenciadas.” Que caminhos são esses? O segredo é a alma do negócio.
Tudo começou com “uma televisão espelho dos sentimentos: ir à televisão para o Ponto de Encontro, ir à televisão para pedir perdão [ao Perdoa-me]”, lembra Felisbela Lopes. “Era a vida real emocional dos portugueses” e Portugal ainda não saiu da fase “televisão espelho”. No cabo, essas fórmulas alimentam canais inteiros; no streaming, as principais plataformas têm reality e talent shows e novelas latinas entre os seus programas mais vistos. Há fórmulas imbatíveis e irresistíveis. A terceira fase da evolução televisiva, a hipertelevisão “em que os cidadãos podem ser co-produtores, com convergência de ecrãs, está na cabeça dos teóricos mas não existe na realidade — muito menos em Portugal”.
“Somos uma sociedade mais envelhecida muito ligada à televisão e o 'star system’ português constrói-se muito através da televisão, não me parece que vá desaparecer”, prevê Catarina Duff Burnay, também coordenadora da equipa portuguesa do Observatório Iberoamericano da Ficção Televisiva.
João Baião é apresentador num mundo diferente, com redes sociais, YouTubers, TikTokers e Netflixes. “Temos de perceber que Portugal não é só Lisboa e Porto e que há muitos sítios que não têm acesso aos outros canais”, recorda, num país em que só em Março de 1999 as ilhas do Corvo e das Flores receberam pela primeira vez o sinal da RTP1 e 2 em directo e só os ilhéus com TV Cabo tinham SIC e TVI. “Os generalistas ainda têm um papel muito forte na vida das pessoas — em instituições, pessoas hospitalizadas, reformadas —, e abrangem todas as faixas etárias. Hoje há muita cor, muita coisa, mas o público ainda dá muito espaço para crescer ao conceito da televisão generalista.”
Notícia corrigida às 7h23 de 6 de Outubro: horário em que mais portugueses estão com os generalistas