6.10.22

Três anos depois de anunciado, Observatório do Racismo continua no papel

Joana Gorjão Henriques, in Público online

Órgão para produção, recolha, tratamento e difusão de informação deveria ter sido criado em 2021. Governo explica atraso com dissolução do Parlamento e garante que processo está em curso. Peritos que estiveram em grupo de trabalho lamentam não ter feedback e sublinham importância da sua existência.

Não foi apenas uma falha: além de o Governo não ter seguido este ano, como planeado, com a abertura de 500 vagas no ensino superior para alunos de escolas de zonas desfavorecidas, há mais medidas emblemáticas do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 – Portugal contra o racismo (PNCRD 2021-2025) que continuam no papel.

É o caso da criação do Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia - que já em 2019 tinha sido proposto pelo grupo de trabalho criado pelo Governo para estudar a inclusão de uma pergunta sobre a origem étnico-racial da população no Censos 2021 e que consta dos orçamentos de Estado de 2020, 2021 e 2022. A meta definida no plano para a sua execução era 2021, mas até agora o Observatório não foi criado.

Questionada pelo PÚBLICO, a secretária de Estado para a Igualdade e Migrações - que tem a tutela do plano, sob alçada da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares,​ Ana Catarina Mendes - justifica assim o atraso: o observatório “não foi criado em 2021 na sequência do chumbo da proposta de lei relativa ao Orçamento do Estado para 2022, que originou a dissolução do Parlamento”. Lembra que o Orçamento do Estado aprovado este ano prevê a sua criação, mas “o processo encontra-se em curso”. Não adianta mais informação, apesar da insistência do PÚBLICO.

Participantes no processo da criação do observatório ouvidos pelo PÚBLICO dizem não ter tido feedback sobre quem está a orientar e qual o ponto da situação sobre este organismo e outras medidas do PNCRD.

Histórico do PS, e participante no grupo de trabalho do Censos que defendeu a criação do observatório, o sociólogo Rui Pena Pires disse que não tinha recebido informação sobre qual o ponto da situação, mas ​comenta que “é normal” haver atrasos “quando há mudança de equipa” - além de que houve uma pandemia entretanto, que atrasou vários projectos, acrescenta. “Espero que [arranque] ainda este ano”, afirmou.

Também Bruno Gonçalves, da associação cigana Letras Nómadas, membro do grupo de trabalho que elaborou propostas para o PNCRD, disse não ter feedback, nem sobre os passos que estão a ser dados, nem sobre quem está com a pasta - quando os contactos com a secretária de Estado impulsionadora do plano, Rosa Monteiro, eram regulares, acrescenta. Também a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Inocência Mata refere que quando Rosa Monteiro era secretária de Estado “sabíamos quem era o interlocutor”, “neste momento não sabemos quem é, nem quem é a tutela”.
Academia e terreno

O PNCRD surgiu depois de uma série de iniciativas e reivindicações de colectivos e é o resultado de várias propostas feitas por um grupo de trabalho criado pelo Governo em Janeiro de 2021, do qual Bruno Gonçalves e Inocência Mata fizeram parte. Tem mais de 80 medidas e 200 actividades.

Coordenado pela Secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros está na dependência da secretária de Estado da Igualdade, Isabel Rodrigues.

Rui Pena Pires, que coordena outro observatório, o da emigração, considera este organismo “fundamental” para a “monotorização das políticas públicas na área de combate ao racismo”, que “não se faz com medidas esporádicas”, por isso é necessário criar uma estrutura deste género.

A proposta que defendeu, na altura, era que tivesse uma grande autonomia das estruturas governamentais, eventualmente ligado a uma ou várias universidades, com o objectivo de promover estudos e recolher dados sobre o racismo para se conhecer a sua expressão em Portugal e avaliar e monitorizar as políticas públicas. “Existe um problema de racismo em Portugal, e ele merece ser estudado por um organismo que não se confunda com outros, nomeadamente com a Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), e que seja autónomo de estruturas como o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), porque o racismo não é exclusivamente ligado à imigração”, afirma.

Já Bruno Gonçalves lembra as dúvidas que surgiram no grupo de trabalho sobre o observatório: “Havia diferentes visões, sobretudo dos movimentos associativos que não queriam que fosse algo muito académico. Achamos que há um monopólio das academias nos observatórios: os académicos são importantes mas as vertentes no terreno também”, comenta.

Para este dirigente associativo “é importantíssimo” o observatório ir para a frente. “É meio caminho andado para que seja reflectido na sociedade que o racismo é um flagelo”, afirma. “É importante que o observatório possa funcionar como monotorização do plano” de combate ao racismo. “Havendo o observatório, há outra legitimidade para reivindicar a aplicação do plano que levou tantos meses a ser pensado”.

Inocência Mata lembra que um dos aspectos que o grupo considerou necessário foi a existência de um órgão independente com uma tripla função: recolher dados, tratar e difundir a informação, incentivar a investigação (como existe na área de estudos de género) e, por outro lado, estabelecer parcerias com instituições, autarquias, etc. “A ideia foi articular as várias vertentes para que o combate ao racismo não seja feito apenas ao nível do Estado. Achámos que esse observatório devia ter em conta uma vertente virada para a educação e investigação e uma articulação próxima com o Observatório das Migrações e das Comunidades Ciganas, com a CICDR e a provedoria de Justiça.”

A professora confirma que houve uma discussão no grupo por causa das diversas perspectivas porque havia quem defendesse que se deveria limitar ao estudo do racismo e não a uma intervenção social. Outros achavam que deveria ter uma articulação maior com a CICDR e com a Assembleia da República, nomeadamente propondo leis que “pudessem ser mais eficazes porque as que combatem o racismo são muito diluídas, é muito difícil uma pessoa ser condenada por racismo”, nota. “O observatório teria uma ancoragem institucional e muita investigação, o que é importante porque há uma grande lacuna em Portugal nesta matéria.”

Sobre o facto de o observatório não ter avançado comenta: “O poder não quer tocar em determinados assuntos que considera mais disruptivos.”

Medidas em suspenso e que avançaram

Há ainda outras medidas que ficaram em suspenso, como a alteração ao artigo 240.º do Código Penal que implica que quem exerça cargos e funções públicas, que seja docente ou jornalista possa vir a ser impedido de exercer a sua profissão se for condenado pelo crime de ódio - uma sanção acessória prevista num anteprojecto de diploma do Governo. Segundo o Ministério da Justiça, “os trabalhos do Governo nesta matéria, que foram interrompidos em resultado da convocação de eleições antecipadas, serão brevemente retomados”.

Também o concurso especial para apoio a projectos de investigação em matéria de memória da escravatura e do colonialismo, e presença histórica dos grupos discriminados, ainda não foi lançado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia - esta instituição garantiu ao PÚBLICO que até ao final do ano o iria fazer.

Sobre a execução orçamental de uma parte do plano - a presidência do conselho de ministros tinha um milhão de euros, mas a esta verba deveriam juntar-se as respectivas de cada área do Governo - a Secretaria de Estado para a Igualdade disse que a previsão orçamental do ACM e Comissão para a Igualdade de Género (CIG) é de 881 mil euros, e que 53% já estavam executados.

Das medidas da CIG deram como exemplos acções como formações, criação de gabinetes de apoio a vítimas migrantes de violência doméstica, um protocolo de cooperação para uma pós-Graduação sobre Mutilação Genital Feminina, na Escola Nacional de Saúde Pública, ou o apoio a projectos sobre mutilação genital feminina e casamentos infantis, precoces ou forçados. Do ACM os exemplos também passam pela formação e workshops, nomeadamente a forças de segurança, projectos de apoio ao associativismo imigrante, acompanhamento do programa OPRE (bolsas de estudo para o Ensino Superior dirigidas a pessoas ciganas, que existe desde 2016) ou apoio a uma tournée de música de Diego El Gavi, com seis workshops e concertos.