Rosália Amorim e Pedro Cruz (TSF), in DN
Gonçalo Matias, recém-nomeado presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, alerta para a crescente pobreza no país, um pesado sistema fiscal e ausência de políticas de longo prazo focadas no crescimento e na sustentabilidade da Segurança Social.
As pessoas não são números, mas os números ajudam a perceber o que está a acontecer com as pessoas. E há sinais de alarme que começam a tocar. Durante décadas, vivemos naquela ideia de que Portugal tinha dois milhões de pobres e esse número, tão repetido, acabou por se banalizar. Esta semana, fomos sacudidos com violência por um número novo.
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O número de pessoas pobres, no limiar da pobreza ou em risco de pobreza, ultrapassa neste momento os quatro milhões, quase metade da população portuguesa.
Quem nos revelou o número, que fica na cabeça, foi a Pordata, o portal da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que há mais de uma década transforma em números uma sociedade feita de pessoas. É presidente do conselho de administração e da comissão executiva Fundação Francisco Manuel dos Santos, Gonçalo Matias.
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Sem apoios sociais, diz a Pordata, 4,4 milhões de portugueses são pobres ou têm rendimentos abaixo do limiar da pobreza (554 euros mensais). Mesmo com os apoios, dois milhões de pessoas estão neste limiar, quase 20% da população. Estes números são para si uma surpresa?
Infelizmente, estes números não são uma surpresa. A Fundação Francisco Manuel dos Santos tem estudado, desde sempre e com muita atenção, a questão da pobreza. Já avançámos vários estudos sobre a pobreza, temos um observatório permanente sobre a pobreza e lançamos estes números com frequência na Pordata. Portanto, infelizmente, não é uma surpresa, era algo já esperado. Porventura, a surpresa será o facto de os números terem vindo a agravar-se. Houve um agravamento das pessoas em risco de pobreza durante a pandemia que já era esperado, mas mesmo relativamente aos outros países da União Europeia houve um aumento. Ou seja, se nos compararmos com aqueles de quem estamos mais próximos, há um agravamento da nossa situação e isso é preocupante, embora não nos surpreenda. É muito preocupante porque Portugal é um país muito exposto, as pessoas têm um risco de pobreza muito elevado, e a capacidade que têm de lidar com as situações de pobreza e sair delas é muito difícil. Algo que nós identificamos nos nossos estudos é, por exemplo, a dificuldade no funcionamento do elevador social. Há muita pobreza que é herdada, é pobreza que vem da família. Por outro lado, um outro aspeto muito preocupante em Portugal, e muito claro em comparação a outros países, têm a ver com o facto de muitos pobres trabalharem. Cerca de 20% dos pobres são trabalhadores e estes números mostram ainda um agravamento dessa tendência, o que significa que os salários são muito baixos, que há situações de disfunções familiares, e de dívidas que assolam as famílias. São situações que expõem mesmo aqueles que têm trabalho a situações de pobreza e isso é muito preocupante.
O número aumentou 12,5% em 2020, em comparação com 2019, mas é a primeira grande subida desde 2014. No seu entender, além da pandemia, o que explica este agravamento que ocorreu entre 2014 e 2021?
A pandemia explica muito do que se passou, mas não tem apenas a ver com isso, a pandemia só serviu como acelerador dessa situação. Isso tem a ver com a precariedade do mercado de trabalho e com a quantidade muito elevada de pessoas que está em risco de pobreza. Isto significa que qualquer abanão - e a pandemia foi um abanão -, provoca imediatamente a queda na situação de pobreza. Portanto, é também uma situação que devemos ter em conta, essas pessoas que estavam no limiar da pobreza sentiram o abanão da pandemia e caíram numa situação de pobreza. O que nos faz, aliás, antecipar o que aí vem, porque é verdade que passámos a pandemia e que foi um período com muitos apoios sociais que são o que permite tirar muita gente da pobreza formal. Durante a pandemia tivemos apoios sociais porque estavam justificados até perante a União Europeia, mas agora encontramo-nos novamente numa situação muito complexa - resultado da guerra e da questão energética -, e isso significa que as pessoas que se mantêm no limiar da pobreza podem cair. Há um receio muito fundamentado de que a situação se possa agravar.
Portugal definiu uma meta até 2030 de ter menos 765 mil pobres, meta que parece estar cada vez mais longe, tendo em conta o contexto que vivemos. Chegaremos à meta em 2030?
Na Fundação procuramos ter uma visão positiva sobre as coisas e a Pordata tem esta missão de dar os dados e clarificá-los. Mas temos também outros objetivos, porque o objetivo da Fundação é não só o melhor conhecimento da realidade portuguesa, mas também promover o debate livre sobre esse conhecimento e uma melhoria das condições de vida dos portugueses. Também olhamos para estes dados procurando encontrar neles algum elemento de esperança, mas dos estudos que temos feito, é muito claro que o combate à pobreza tem de passar pelo crescimento económico. Isso implica olhar para os fatores de crescimento económico, para os fatores de competitividade das nossas empresas, porque a ideia de que vamos tirar as pessoas da pobreza apenas através de apoios sociais é uma ideia que tem limites.
Ou seja, um Estado menos assistencialista e mais focado no crescimento, é isso?
Para nós é muito claro que só é possível distribuir a riqueza quando ela existe, é preciso criar crescimento, criar riqueza e depois distribuí-la para, depois, se tirar as pessoas da situação de pobreza em que se encontram.
Perante três indicadores considerados chave em que Portugal regrediu, a percentagem da população em risco de pobreza, a taxa de risco de pobreza e a desigualdade na distribuição de rendimento, o governo está a dar pouca atenção a esta questão?
Como diz, há três fatores muito importantes e nos quais Portugal piorou a sua posição relativa e isso, de facto, merece a atenção de todos enquanto sociedade, e não apenas do governo. Porque não é só a questão do aumento das pessoas em risco de pobreza e em situação de pobreza, é também o crescimento das desigualdades. As desigualdades são um mecanismo muito importante do nosso sucesso enquanto país, ou seja, o aumento das desigualdades acentua uma série de outros riscos, inclusive no plano da segurança, algo essencial para Portugal. Portanto, o crescimento das desigualdades coloca muitas dificuldades a vários níveis e é um indicador que todo o mundo civilizado usa para medir o sucesso das suas políticas públicas. Não tenho dúvidas de que o governo, e nós enquanto sociedade civil, temos de estar atentos a isto. O que posso dizer sobre as políticas públicas nesta matéria, é que não se devem centrar apenas nas transferências sociais. Ou seja, são muito importantes e permitem reduzir cerca de quatro milhões de pobres para cerca de 1,9 milhões - não quero menosprezar a importância das transferências sociais -, mas elas são necessariamente limitadas e temporárias. Porque se não tivermos crescimento económico, não vamos conseguir sustentar estes apoios sociais.
E que outras políticas públicas deveriam ser seguidas para colmatar esta situação?
Há um aspeto muito importante que tem a ver com a própria sustentabilidade do Estado Social. Por exemplo, temos um défice das contas públicas mais controlado nos últimos anos, mas se olharmos para os últimos 15 anos da economia portuguesa, vemos 15 anos de estagnação. Temos um problema crónico nas contas públicas, mas na minha opinião temos um défice mais grave que esse: o défice demográfico. Desde 2010 até 2017 estivemos sempre a perder pessoas e agora, felizmente, conseguimos estancar um bocadinho esse défice através da imigração e não pela via da natalidade. É muito importante que as políticas públicas não se concentrem na questão assistencialista, mas que se dirijam ao crescimento económico e à questão demográfica. Todos os especialistas concordam que o grande desafio do país neste momento, é o desafio do talento. Para podermos manter um crescimento económico compatível com as nossas necessidades sociais, para podermos tirar as pessoas da pobreza, temos de ter uma economia a crescer. Essa economia não cresce sem talento e, por isso, é absolutamente indispensável que o governo e as entidades públicas olhem para a questão demográfica e para a questão da atração e retenção de talento.
"O défice demográfico é de tal forma grave e estrutural para o país, que era indispensável um acordo entre partidos. Um acordo sobre demografia, natalidade, imigração, era muito importante. Até porque são temas muito propícios ao populismo, a discursos extremistas e depois os partidos acabam capturados por essas agendas."
Contemplará o Orçamento do Estado para 2023 as ajudas necessárias para as famílias face ao retrato que aqui foi traçado?
Acho que o Orçamento do Estado procura prestar a ajuda possível no nosso quadro económico e num quadro de contenção de dívida pública em que manifestamente Portugal se encontra. Portanto, não viria aqui defender um contexto ou decisão de irresponsabilidade no controlo das contas públicas. Mais importante do que olhar para a transferência que em cada momento é feita, é preciso pensar nas políticas de longo prazo que vão permitir a sustentabilidade de Segurança Social.
Mas há políticas de longo prazo?
Não. Acho que não e penso que isso é transversal a todos os governos. Reparem, temos ciclos curtos, apenas quatro anos, e só este período de tempo já é considerado um governo estável. Este tema das pensões, por exemplo, se a atualização das mesmas implica ou não uma redução de rendimento dos pensionistas a longo prazo. O governo reconhece isso, mas diz que esta medida é indispensável para garantir a sustentabilidade da Segurança Social. O que temos de estar a discutir, e a Fundação discutiu-o num estudo que lançou há dois anos, é precisamente a sustentabilidade da Segurança Social e não é em 2023 ou 2024.
Já que falou das pensões, foi ou não foi um "truque", como apelidou a oposição, o adiantamento de meia pensão em outubro e anúncio de um aumento mais curto para o futuro?
Uma coisa é a medida em si, outra coisa é forma como é comunicada e sobre esta última não me vou pronunciar. A medida em si, representa uma forma de reduzir o modo como a atualização das pensões é calculado, ou seja, o governo tem uma medida de contenção de atualização das pensões. Na prática, é uma forma de redução da atualização das pensões e dizer que as pessoas vão ganhar menos é inquestionável, mas de acordo com a explicação do governo é o necessário para garantir a sustentabilidade da Segurança Social. Acho que todos compreendemos isso, talvez uns gostem menos, mas penso que todos temos de compreender isso. Mas mais importante do que se houve truque ou não, se há perda de rendimentos em 2023 ou não, o importante é se isto é sustentável. Porque aquilo que queremos saber é se quando nos reformarmos, vamos receber pensão ou não. Quem nos está a ouvir e está preocupado com o ano de 2023 e 2024 que me desculpe, mas mais grave que isso é o pensamento de longo prazo e saber se teremos todos reformas daqui a dez ou vinte anos.
Em relação ao contexto que levou ao aumento do número de pobres, com a inflação, os elevados preços da energia e dos bens alimentares, o OE 2023 deveria ser mais benigno para os cidadãos?
O orçamento parte de um conjunto de pressupostos, mas parte de um equilíbrio. Há uma tentativa de equilíbrio entre os apoios sociais e a responsabilidade na contenção e diminuição da dívida pública. A divida pública, e não nos esqueçamos disto, é um stock que temos de muitos mil milhões de euros que, ainda por cima, sujeitos à inflação, podem colocar Portugal numa situação explosiva. Portanto, a contenção da dívida pública é um fator de responsabilidade, mas isto não significa que o governo não deva também pensar nas pessoas.
Mas acha que o fez neste orçamento?
Acho que fez o equilíbrio possível numa lógica de responsabilidade das contas públicas.
O IRS deveria ter tido uma redução transversal, em vez da revisão de escalões que foi feita?
Acho que todas estas políticas devem ser medidas à luz de algo maior, não é só olhar para o próximo ano e ver o que vai acontecer. Por exemplo, aquilo que disse que seria o maior desafio de Portugal nos próximos anos, é o desafio do talento e isso está diretamente ligado com a questão fiscal. Há muitos jovens que saem do país, porque entendem que não têm condições para ficar num sítio onde não consideram que o sistema fiscal lhes seja favorável. Muitas pessoas qualificadas poderiam querer vir para Portugal e acabarem por não vir porque o sistema fiscal não lhes é favorável, e o mesmo se diga de investidores, empresas e etc. A questão fiscal é essencial e mais importante - e sei que isto gera em algumas pessoas uma sensação de injustiça -, do que pensar num alívio fiscal generalizado que pode não ter um efeito concreto, é pensar a política fiscal de modo que assegure benefícios, por exemplo, aos mais jovens. Se me perguntar se era possível não ter feito isso e descer 0,1% a toda a gente, acho que não, e acho que é preciso acentuar os benefícios fiscais aos mais jovens, porque são esses que estamos a perder. São esses que temos de reter e que vão ser indispensáveis ao crescimento do país.
Poderia ter-se ido mais longe para incentivar a natalidade em Portugal?
A questão da demografia não pode ser olhada apenas pela perspetiva da natalidade. É necessário olhar para a questão demográfica também da perspetiva da atração da imigração, até porque só ela permite controlar o défice no curto prazo. As medidas de natalidade demoram muito tempo a produzir efeitos. Aliás, conseguimos controlar o défice demográfico em 2018 e 2019, porque conseguimos atrair pessoas, mas a natalidade não funciona assim. Por outro lado, a questão da natalidade não se resolve só a despejar dinheiro sobre o assunto, por exemplo, este mês de outubro, quem tem filhos vai receber 50 euros por criança. Certamente ajuda, mas não é isso que vai fazer com que as pessoas queiram ter mais filhos. A questão da natalidade tem de ser olhada de forma transversal e muito séria, não é no Orçamento do Estado que isso se vai resolver, é através de políticas. Políticas que tenham a ver com a integração no trabalho, com as licenças de parentalidade, e com a possibilidade de ambos os pais partilharem de forma mais flexível as suas licenças. Portanto, tem muito mais a ver com a conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, do que propriamente com o cheque que possa sair do Orçamento do Estado.
É preciso um pacto entre os vários partidos para que este tipo de políticas sejam transversais às várias legislaturas?
Acho que o défice demográfico é de tal forma grave e estrutural para o país, que era indispensável um acordo entre partidos. Um acordo sobre a política demográfica do país, quer sobre a questão da natalidade, quer sobre a questão da imigração, era muito importante. Até porque são temas que são muito propícios ao populismo, são muito propícios a discursos extremistas e depois os partidos acabam por ficar capturados por essas agendas. Acabam por ficar perdidos na forma como lidam com essas agendas e com as respostas que dão, acabam por dar respostas muito imediatistas sobre aquilo que se julga que as pessoas querem ouvir naquele momento. Era indispensável que os partidos responsáveis pelo arco da governação pudessem chegar a um acordo sobre isso.
Em Portugal há cada vez mais ricos e os ricos são cada vez mais ricos, mas também há cada vez mais pobres. Qual é o caminho para o equilíbrio?
Essa é uma questão muito estruturante da nossa sociedade e da forma como olhamos para ela. Acho, e não é uma opinião pessoal, os nossos estudos refletem isso, que a criação de riqueza é indispensável para que as pessoas saiam da pobreza. A solução não é acabar com os ricos, a solução não é criar-lhes obstáculos, certamente taxá-los porque isso faz parte do sistema fiscal. Contudo, o sistema fiscal não pode ser um obstáculo à criação de riqueza, não pode ser um elemento que afugenta os investidores. Os criadores de riqueza não estão aqui concentrados no nosso retângulo e proibidos de sair. Aliás, a maior parte deles estão fora e o que queremos é atraí-los para cá e que aqueles que cá estão não se vão embora. A solução passa por atrair riqueza, investidores, e crescimento económico e, depois, ter políticas adequadas para a sua distribuição.
Por exemplo?
É importante que haja criação de emprego e que gere criação de empregos qualificados que paguem salários justos e, de preferência, acima do salário mínimo. E isso é muito importante, até porque se olharmos para os números, vamos perceber que muitos dos pobres são desempregados, mas muitos também estão empregados e a ganhar salários muito baixos. A forma de resolver isto não é de forma estrutural, penso eu, através de transferências sociais ad aeternum, mas sim criar um sistema económico robusto, dinâmico, que dê emprego às pessoas que paguem acima destes limiares. Como é que alguém em situação de pobreza sai dela? Tem de arranjar um emprego com um salário bem pago, não há outra forma.
O acordo para a política de rendimentos e competitividade, que foi assinado entre os parceiros e o governo, dará a estabilidade necessária a famílias e empregadores?
O acordo foi importante e, sem dúvida, é algo de que o governo se pode orgulhar. Mas é um acordo difícil de conseguir e que tem muitas concessões de ambos os lados. A questão do salário mínimo é importante para sair da situação de pobreza, ou seja, não podemos ter um salário mínimo que coloque as pessoas em risco de pobreza se alguma coisa acontecer. Os nossos números também revelam que Portugal é um dos países da Europa em que as famílias mais têm dificuldades em lidar com situações inesperadas. É importante que as nossas famílias não estejam no limiar na pobreza, que não estejam quase penduradas naquela linha em que acontece qualquer coisa e caem em situações de pobreza. Nesse aspeto, a questão do salário mínimo é importante, assim como este horizonte de o aumentar em linha com outros países europeus que nos são próximos. No entanto, não é possível crescer o salário mínimo abaixo, por exemplo, do crescimento da produtividade. Não se faz subir salários por decreto. Até posso subir o salário mínimo para o valor do Luxemburgo, mas a seguir as empresas vão-se embora ou fecham porque não têm capacidade para serem competitivas. E com isto não estou a dizer que o problema é só dos trabalhadores, também é um problema da gestão. Aliás, nos nossos estudos identificámos que a gestão em Portugal é muito pouco qualificada. Temos uma esmagadora maioria de PME em que, muitas vezes, a sua gestão é pouco qualificada e, por vezes, bem menos qualificada que os próprios trabalhadores. Não estou a pôr as culpas só nos trabalhadores ou só no Estado, aqui há responsabilidades que são partilhadas por todos. O Estado - o regulador se assim quiser -, tem de encontrar mecanismos para promover a qualidade da gestão, para garantir que as empresas crescem, e que têm dimensão.
Há pouco referiu que as situações extraordinárias podem colocar as famílias em situação de pobreza de um momento para o outro. O aumento das taxas de juro, no crédito à habitação, podem ser um fator de risco?
Sem dúvida, essa é uma preocupação enorme. Vivemos muito tempo em juros praticamente zero e as famílias endividaram-se. Além disso, não nos esqueçamos que, do ponto de vista estrutural, o problema da banca e da concessão de crédito feita de forma menos responsável não foi resolvido. É verdade que, atualmente, a banca está muito mais resiliente, mas houve muitos créditos concedidos assim anteriormente. Agora, o que se passa é que há muitas famílias que se endividaram para lá do que era prudente e que têm, em relação ao seu rendimento mensal, uma diferença muito pequena no que respeita ao crédito bancário que têm de pagar. Portanto, quando estamos a falar de taxas de inflação na ordem dos 8%, um aumento que pode chegar, em termos médios, a 300 ou 400 euros por mês na prestação de uma família, haverá muitas que não vão conseguir suportar isso.
"Quando estamos a falar de taxas de inflação na ordem dos 8%, um aumento que pode chegar, em termos médios, a 300 ou 400 euros por mês na prestação de uma família, haverá muitas que não vão conseguir suportar isso."
Na pandemia, por exemplo, tivemos as moratórias. Agora, a negociação dos bancos com as famílias que estão em taxa de esforço é suficiente ou deveria ir mais longe?
Acho que as moratórias foram uma solução de emergência, são um mecanismo muito útil, mas que não se pode perpetuar no tempo sob pena de não ser sustentável. A banca vai ter um desafio enorme, não sei se compete ao governo impor isso à banca que é privada. Mas certamente que a banca terá de olhar muito atentamente para essa questão. Se olharmos para o exemplo da crise de 2008 nos Estados Unidos, que foi muito uma crise de imobiliário, os bancos transformaram-se em empresas imobiliárias. Ou seja, já não estavam a gerir os créditos, estavam a gerir o malparado com que tinham ficado em resultado dessa crise.
Mas em Portugal não há também uma bolha imobiliária excessivamente elevada?
A Fundação Francisco Manuel dos Santos lançou este ano um estudo sobre imobiliário que recomendo muito e que olha muito para essas questões. Não é claro que exista uma bolha, mas é claro que há alguns fatores que justificam isso, ou seja, o que está a dizer é inteiramente certo, a dúvida é se isso representa uma bolha. Há muitos fatores que justificam isso e alguns deles são muito positivos. Por exemplo, tem a ver com a compra de imobiliário por investidores estrangeiros, os vistos gold que foram aprovados na altura da crise financeira, e que representaram nalguns anos a entrada de mais de mil milhões por ano em Portugal. Para sermos justos, potenciaram a renovação dos centros históricos das cidades, inclusivamente de Lisboa e do Porto, mas isso levou a um aumento das habitações. Uma outra discussão que se está a ter neste momento, tem a ver com o alojamento local e com o efeito que isso pode ter no preço da habitação, quer na compra, quer no arrendamento. A questão é a seguinte: se a estrutura do nosso mercado imobiliário mudasse radicalmente e todos os investidores estrangeiros desaparecessem, aí não teria dúvidas de que teríamos uma bolha. Porque aí teríamos uma subida dos preços das casas muito acima da subida que seria sustentável com base no poder de compra nacional. Não creio que esses investidores vão desaparecer, mas o que nos faz pensar é que, se estamos no limiar de uma situação destas e com risco de uma bolha imobiliária, então não é inteligente começar a afugentar os investidores estrangeiros. Isso iria mesmo implicar que essa bolha iria rebentar.
Ou então implica que as casas não são para portugueses...
Mas isso é assim em todo o mundo. Se formos a Londres, Paris ou Barcelona, há uma circulação de pessoas que compram essas habitações e isso não é mau. Significa é que Lisboa e o Porto se tornaram um destino de circulação dessas pessoas, o que é bom porque significa que são cidades muito atrativas. Atualmente, temos muito norte-americanos em Lisboa a comprarem casas e isso é interessante. Não acho que a solução seja afugentar essas pessoas, mas sim regular o mercado para que ele se ajuste e permita algum equilíbrio entre os investidores internacionais e os jovens portugueses. Claramente, os jovens portugueses também têm direito a viver nas suas cidades, não discuto isso, mas só quero dizer que não é um fenómeno exclusivo português, é típico em cidades muito desenvolvidas que estão no radar destes investidores.
Portugal é o segundo país entre os 27 da UE com mais pessoas a viver em alojamentos com más condições, prova a Pordata. Em 2021, foi o quinto país com mais população a não conseguir aquecer convenientemente a habitação. O que é que falta fazer para mudar esta realidade?
É outro aspeto que estes números revelam, porque a pobreza não é só olhar para o indicador do rendimento mensal. A pobreza também tem a ver com as condições de habitação e com as condições de alimentação. Em termos de alimentação, os números até revelam que Portugal não está nos piores casos. Mas, de facto, o indicador da habitação é muito negativo e Portugal está mesmo numa má posição. É verdade também que Portugal tem condições climatéricas menos severas que outras e é provável que as famílias tenham investido menos na preocupação do aquecimento. Neste momento, quando falamos na crise energética, o grande pânico no norte da Europa é saber como se vai resistir ao inverno. Veja-se o que acontece na Ucrânia, que está em guerra e tem deficiências energéticas sérias, a população está com um problema gravíssimo de sobrevivência ao inverno. Esse problema não tem a mesma dimensão em Portugal, mas não há dúvidas de que uma família pode passar um inverno muito mais difícil em Portugal, justamente por causa dessas condições.
Mas pode o governo reforçar os incentivos nesse sentido?
Esses incentivos estão pensados, sobretudo, na lógica do Orçamento do Estado e do PRR e para a transição energética, não tanto para o consumo de energia tradicional. Acho que neste inverno isso vai ser muito difícil, porque o apelo que vamos ter é para a redução do consumo de energia, não para o seu aumento. Portanto, um incentivo direto ao aumento do consumo energético, provavelmente não seria muito sustentável neste momento, apesar de sabermos que as famílias em toda a Europa vão ter um inverno difícil.
"Temos de eliminar a burocracia, os obstáculos, e assegurar que as pessoas que querem viver e investir em Portugal têm condições para o fazer. Aí está uma questão muito simples que não depende de dinheiro, depende apenas da vontade de quem nos governa."
Foi assessor do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, esteve num posto de observação privilegiada. Agora, tem outro posto de observação privilegiada, a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Recorrendo à sua experiência, como é que antevê Portugal em 2023?
Faria apelo a toda a minha experiência e à forma como olho para a sociedade portuguesa. Acho que Portugal tem desafios enormes, como os números revelam. Portugal está numa situação difícil e não se pode vangloriar de ser um oásis no meio de uma Europa difícil. Portugal está numa situação particularmente difícil, mas tem oportunidades enormes. É um país que está a ser capaz de atrair a atenção de muitos investidores, de pessoas que querem viver cá, de talento, e de gente com dinheiro para investir. Temos de pensar nas nossas dificuldades, mas também nas nossas oportunidades e aproveitá-las. Uma das coisas em que temos de nos concentrar é em eliminar a burocracia, eliminar os obstáculos, e assegurar que as pessoas que querem viver e investir em Portugal têm condições para o fazer. Aí está uma questão muito simples que não depende de dinheiro, depende apenas da vontade de quem nos governa.