25.10.22

Pobreza afecta 96% dos portugueses ciganos

 Ana Cristina Pereira, in Público online

A Agência dos Direitos Fundamentais (FRA, na sigla em inglês) não se coíbe de usar a expressão “condições chocantes” ao retratar o modo como vive a população cigana na Europa. A pobreza é generalizada e a discriminação levanta obstáculos em várias esferas da vida. Portugal regista alguns dos piores resultados.

O relatório, divulgado esta terça-feira de manhã, deverá servir de ponto de referência para a União Europeia, que em 2020 estabeleceu um quadro estratégico para a inclusão da população cigana até 2030, com uma série de metas. Mostra que, para já, o progresso é lentíssimo.

Oitenta por cento da população cigana vivia abaixo do limiar de pobreza do seu país em 2021 (a média da UE era de 17% em 2020). Em Espanha e Itália esse valor alcançava os 98%, na Grécia e em Portugal os 96%. Quase metade da população cigana europeia (48%) enfrentava alguma forma de privação material severa.

O inquérito foi aplicado na Croácia, na República Checa, na Grécia, na Hungria, na Roménia, em Itália, em Portugal, em Espanha e em dois países vizinhos da União Europeia com população cigana significativa – a Sérvia e a Macedónia do Norte. Em paralelo, a FRA apoiou estudos nacionais na Bulgária e na Eslováquia. Nesses dez Estados-membros vivem 87% dos ciganos da União Europeia.
 



Responderam, cara a cara, na sua língua materna, perto de 8500 pessoas ciganas com 16 anos ou mais, inseridas em agregados que somavam 20 mil. Em cada país foi definida uma amostra aleatória considerada representativa da população cigana. Em Portugal, onde o Conselho da Europa estima haver 52 mil ciganos, foram entrevistados 568, contendo os seus agregados perto de 1500 membros.





Emerge um recuo da privação material severa face a 2016 (62%), mas não em todo o lado. Em Portugal até houve um agravamento (de 53% para 59%). Resta saber se é temporário, uma vez que esta população foi particularmente afectada pela pandemia e pelas restrições em vigor no momento do inquérito (Fevereiro e Agosto de 2021). Houve menos oportunidades de trabalho nas feiras, por exemplo.
 



Os dados mostram que, pela Europa fora, muitos conhecem a privação mal nascem. O risco de pobreza infantil atinge os 83%, com Itália a chegar aos 100%, Espanha aos 99%, Grécia aos 98% e Portugal aos 97%. As crianças ciganas têm mais hipóteses de viver em habitações sobrelotadas (94%), sem água corrente (24%), com familiares que por vezes vão dormir com fome (29%).
 


Só 29% das crianças frequentam um infantário

É na educação que mais se joga a mudança. E aí, apesar do progresso dos últimos anos, Portugal ressalta pela negativa. Só 29% das crianças entre os três e os seis anos frequentam um infantário (a média é 44%). E só 10% dos jovens entre os 20 e os 24 anos completaram o ensino secundário (a média é 27%). É a taxa mais baixa da Europa, como sublinha Jaroslav Kling, autor do relatório.

Ao que se pode ver no estudo, é na Sérvia, na Hungria, na Macedónia do Norte e na Croácia que mais pessoas ciganas terminam o secundário (entre 46% e 39%). E é em Portugal, na Grécia, na República Checa e na Roménia que menos o fazem (entre 10% e 22%). Em matéria de educação, Grécia e Portugal são os países com maior fosso entre população cigana e população em geral.

Em todas as faixas etárias, há muita gente sem qualquer educação formal. A nula ou baixa escolaridade reflecte-se na empregabilidade. Apenas 43% exercem um trabalho remunerado (a média geral da UE em 2020 foi de 72%). Em Portugal, menos ainda: um terço (31%). A esse nível, pior só Espanha.


Bruno Gonçalves, mediador cultural, formador, um dos mais proeminentes activistas portugueses ciganos, já imagina os comentários nas redes sociais. “Uns vão dizer que os ciganos é que querem viver assim, não se querem integrar. Outros vão dizer que os ciganos não querem trabalhar, querem é receber subsídios. A verdade é que não se importam com estas pessoas.”

A sua esperança é que estes números sirvam de alerta para o Governo e alguns partidos com assento na Assembleia da República. A oportunidade esta aí: a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas tem de ser revista até ao final do ano. “Penso que há alguma vontade, mas não sei se haverá coragem para olhar para estes números e iniciar um percurso de luta.”

Há um trabalho a ser feito com as famílias. E há ganhos no acesso ao pré-escolar, ao ensino obrigatório e até ao superior. Em dois aspectos, Portugal não sai tão mal na fotografia: comparando com outros países, tem menos segregação escolar e menos bullying motivado pela pertença étnica. Bruno Gonçalves saúda tudo isso, mas vai avisando que nada de substancial se alterará se a ciganofobia não for reconhecida e combatida. Ora, essa parece-lhe mais viva do que nunca.

Perde o sono sempre que há notícia de um crime cometido por uma pessoa de etnia cigana. “É terrível”, diz. “Um idiota que eu não conheço de lado algum faz alguma coisa e eu sou acusado. Toda a comunidade é acusada.” Não se escreve: aquela pessoa fez isto ou aquilo. Escreve-se: os ciganos são assim ou assado. Essa generalização abusiva tem consequências práticas na vida das pessoas.

Portugal apresenta as taxas de discriminação mais elevadas em várias áreas. A maioria dos ciganos portugueses sentiu-se discriminada a procurar trabalho (81%) ou habitação (77%). Mais de um terço (34%) sentiu-o ao interagir com a escola dos filhos e quase um terço (32%) ao recorrer aos serviços de saúde.
“Podes ser doutor, mas o estigma ninguém te tira"

Bruno conhece jovens que trabalham no atendimento ao público em estabelecimentos comerciais que os familiares se abstêm de frequentar, não vá alguém perceber a sua pertença étnica e “inventar qualquer coisa”, provocar um despedimento. “Podes ser doutor, mas o estigma ninguém te tira. Ainda há dias andava às compras e fui seguido num supermercado pelo guarda de serviço.”

Mais de metade das pessoas ciganas (62%) em Portugal sentiu discriminação nos 12 meses anteriores ao inquérito nalguma esfera da vida (a média é 25%). Quando se fala em assédio motivado por ódio racial, a percentagem dos que se dizem vítimas sobe para 64%. A violência física, essa, é rara (1%).

A actual percepção de discriminação (62%) é bem mais elevada do que em 2016 (47%). Bruno Gonçalves associa essa subida ao aparecimento e ascensão do Chega. Nas redes sociais, nos cafés, no espaço público, encontra mais pessoas com à-vontade para fazer comentários ofensivos.

As consequências de quem discrimina, como refere Jaroslav Kling, são poucas ou nenhumas. “Um em cada dois (48%) conhecem a Comissão para a Igualdade, mas muito poucos denunciam discriminação (2%). Há uma confiança muito baixa nas instituições – uma das mais baixas entre os ciganos da Europa.” A esse propósito, Bruno Gonçalves lembra que nos últimos anos vários activistas têm remetido queixas para a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial sem resultado. As outras instâncias também não se afiguram alternativa. O inquérito mostra que a confiança na polícia é baixa (27%) e no sistema judicial ainda menos (17%).

Jaroslav Kling vê evolução, apesar de tudo. “Portugal aumentou drasticamente os seus esforços em todas as áreas para melhorar tanto a situação de vida dos ciganos como as atitudes da população em geral em relação aos ciganos.”

Quando se lhe pergunta qual deve ser a prioridade, Jaroslav Kling não difere de Bruno Gonçalves. “Em primeiro lugar, para haver uma mudança real para a população cigana, é crucial combater a discriminação e as atitudes da população em geral”, começa por responder aquele perito. “Em segundo lugar, é crucial melhorar o acesso das pessoas ciganas à educação e ao emprego. Estas são as áreas-chave que podem ajudar a melhorar as suas vidas noutras áreas.”

A Comissão Europeia propôs em 2011 um instrumento político específico: o Quadro Europeu para as Estratégias Nacionais de Integração dos Ciganos, que define como áreas prioritárias a educação,​ o emprego, a saúde e a habitação. Alguns Estados-membros fizeram simulacros. Já em 2017, o Parlamento Europeu pediu que demonstrem ambição na criação das suas novas estratégias nacionais, que as cumprissem, que prestassem atenção à hostilidade contra os ciganos. No ano seguinte, a Comissão revelou estar a trabalhar no novo quadro estratégico, com “um foco claro no combate ao anticiganismo”. É esse, que apresentou em Outubro de 2020, que está em vigor.

Dentro da dureza dos números agora apresentados, há sinais de mudança. A situação habitacional, por exemplo, permanece crítica, mas menos. Em 2021, 52% dos ciganos europeus tinham por morada habitações húmidas e escuras ou sem instalações sanitárias adequadas. Ora, em 2016 essa situação afectava 61%. Em 2021, 22% não dispunham de água canalizada, comparando com 30% em 2016.

A expectativa, na FRA, agora é que os países usem estes resultados para delinear medidas mais ajustadas no âmbito das suas estratégias nacionais para a integração das comunidades ciganas. Em particular no combate à pobreza e à discriminação e na promoção da educação e do emprego.