José Soeiro, opinião, in Expresso
"Já não sei qual é o sabor da carne. Normalmente janto pão ou, com sorte, bolachas” (Isaura, 71 anos). Esta frase é apenas uma de uma série de testemunhos que, pela mão de Miguel Januário, a Rede Europeia Anti Pobreza-Portugal transformou em cartazes. De 2019 para 2020, o número de pessoas em risco de pobreza aumentou 12,5% e aumentou também a desigualdade na distribuição do rendimento. Se há pessoas e redes antipobreza, também há muitos inimigos do combate à pobreza
“Já não sei qual é o sabor da carne. Normalmente janto pão ou, com sorte, bolachas” (Isaura, 71 anos). “Tenho um tempo inteiro e dois part-times. Só vejo os meus filhos aos domingos” (Mauro, 18 anos). “Se não fosse a menina do café que às vezes cá vem, já teria morrido de silêncio” (António, 87 anos). “Para os miúdos comerem de manhã, vamos nós trabalhar com o estômago vazio” (Maria, 35 anos). “Se não fosse pelos meus filhos, já tinha desistido há muito tempo” (Jorge, 36 anos).
Estas frases são apenas algumas de uma série de testemunhos que, pela mão de Miguel Januário, a Rede Europeia Anti Pobreza-Portugal transformou em cartazes. É um mosaico possível da realidade multifacetada da pobreza, que está por estes dias nos muros de várias cidades.
Se há pessoas e redes antipobreza, também há muitos inimigos do combate à pobreza. Um deles é o fatalismo, que encara como “natural” a existência de pobres e inevitáveis as desigualdades. Outro é o individualismo, que reduz o fenómeno a um azar subjetivo ou ao resultado da incompetência das vítimas da pobreza. Estes dois obstáculos à compreensão do problema ofuscam um facto fundamental: a pobreza é, acima de tudo, um produto de escolhas económicas, da estrutura de distribuição primária do rendimento e um efeito das políticas públicas em várias áreas, da saúde à habitação, da educação à energia. Há trajetórias individuais de exclusão? Claro. Mas é na política económica, na regulação do trabalho e na provisão dos bens essenciais que se joga o combate a esta violação dos direitos humanos.
Os dados divulgados esta semana mostram o poderoso efeito das escolhas políticas. Entre 2014 e 2019, houve uma redução da pobreza. Para isso contribuíram também, a partir de 2015, compromissos dos acordos à esquerda para o crescimento do emprego e para uma política de recuperação de rendimentos (particularmente no salário mínimo, pensões e algumas prestações sociais para velhice e infância), que permitiram reduzir a taxa de risco de pobreza. A partir de 2019, essas políticas estagnaram. A pandemia e a inflação, às quais o Governo respondeu de forma tíbia, pioraram tudo e foram um grande revelador da nossa precariedade estrutural, que não foi enfrentada.
De 2019 para 2020, o número de pessoas em risco de pobreza aumentou 12,5% (Portugal passou do 13.º para o 8.º lugar no ranking da população com mais pobres na UE a 27) e aumentou também a desigualdade na distribuição do rendimento. O segundo governo de António Costa (2019-2022) foi, no contexto europeu, dos que menos gastou com medidas de proteção na pandemia.
A paralisação do turismo conviveu com o atraso e a escassez dos apoios extraordinários para desempregados e trabalhadores precários e informais, que ficaram sem fonte de rendimento. Ao mesmo tempo, na habitação, os preços não pararam de aumentar (80% entre 2010 e 2022!), o que constitui uma verdadeira tragédia para milhares de pessoas. Não é de admirar que Portugal apareça como o segundo país da Europa com mais cidadãos a viver em alojamentos com más condições (25%).
De entre os grupos mais afetados pela pobreza, destacam-se os desempregados. Continuamos com regras nas prestações de desemprego que fazem com que cerca metade dos desempregados não tenha acesso ao subsídio - seja o regular, seja o social. Várias vezes a esquerda tentou mudar isto, pondo em cima da mesa uma transformação necessária na proteção social. Mas o PS nunca quis fazê-la e só chegou a admiti-la por conveniência retórica quando estava em minoria. E há também as famílias com filhos, designadamente as monoparentais. Entre os idosos, a pobreza reduzia-se consistentemente há alguns anos, mas essa tendência mudou e a política de pensões, a confirmar-se, poderá acentuá-la, mesmo com o Complemento Solidário para Idosos.
Em 2022, contraiu-se o rendimento real disponível para os trabalhadores e pensionistas e as desigualdades já se agravaram. Este foi um ano de perda para quase todos - embora a banca, a grande distribuição e as empresas de combustíveis nunca tenham lucrado tanto. Só com a inflação, desapareceu o valor de um salário ou de uma pensão mensal. Para o ano, com aumentos abaixo da inflação, a situação vai ser pior. É certo que o Indexante de Apoios Sociais será atualizado pela lei, ao contrário do que o Governo anunciou sobre as pensões. Mas não chega.
Em geral, a política económica, social e salarial do governo vai produzir mais pobres e mais super-ricos. Ou seja, mais desigualdade. Nenhuma medida setorial, por si só, consegue inverter esta orientação global. Crescerá assim provavelmente, também, a injustiça, o desalento, o sofrimento social e individual - todas essas dimensões de que dão conta os testemunhos com que comecei este texto.
Há quase um ano, foi apresentada uma estratégia nacional para o combate e a erradicação da pobreza. Agora, o Governo nomeou uma pessoa para coordená-la. Sandra Araújo irá diretamente da direção executiva da Rede Europeia Anti-Pobreza para a coordenação da estratégia nacional. Desejo-lhe toda a sorte e inspiração para a difícil missão. Estará corajosamente ao leme de um barco a puxar para um lado, mas num mar de escolhas políticas e económicas que puxam para o outro.