Supermercados estão a colocar alarmes em produtos alimentares básicos, como latas de atum ou garrafas de azeite. Os furtos estão a aumentar “desde o início de setembro” por “pessoas que já não conseguem sobreviver só com o seu salário e pensão”. Quase 2 milhões de portugueses vivem com menos de €554
Vários supermercados estão a colocar alarmes em produtos alimentares básicos, como o bacalhau ou o salmão congelados, e até em garrafas de azeite ou latas de atum. Segundo a Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED), que representa o sector, o investimento na instalação de mais sistemas de segurança é justificado pelo aumento dos furtos de alimentos, que se acentuou nos últimos meses, com o agravamento do custo de vida.
“É um fenómeno que está efetivamente a subir bastante, sobretudo desde o início de setembro e em particular nos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto”, diz o diretor-geral da APED, Gonçalo Lobo Xavier, adiantando que o leite e a comida enlatada, como as salsichas e o atum, estão entre os produtos mais visados. “Não há nenhuma dúvida que são roubos para comer. É o primeiro sintoma de uma grave crise social”, alerta.
Cláudio Ferreira, presidente da Associação Nacional de Vigilância e Segurança Privada, sector que garante o patrulhamento dos supermercados, confirma: “Nos últimos dois a três meses nota-se um aumento muito significativo dos furtos de alimentos por parte de pessoas que já não conseguem sobreviver com o seu salário ou pensão. Estão desesperadas e escondem na mala ou no casaco pacotes de leite ou latas de atum para comer ou dar aos filhos.”
Os dados da PSP só vão até junho, mas já mostram a tendência. Só nos primeiros seis meses deste ano foram participados à polícia 452 furtos em super e hipermercados, a uma média de 2,5 por dia. Se o ritmo se mantivesse, no final do ano o volume de ocorrências seria pelo menos 40% superior ao registado no ano passado. Mas o crescimento de casos acelerou neste segundo semestre, quando mais disparou a inflação.
Muitas situações, no entanto, não chegam a ser participadas às autoridades. “São casos de necessidade que dão muita pena. E quando assim é, não costumamos chamar a polícia”, relata Edson Alves, que trabalha como segurança num supermercado da Areosa, no Porto. Nos últimos meses, o vigilante, de 49 anos, tem detetado cada vez mais tentativas de furto de alimentos. “Temos apanhado muitos idosos a tentar levar pão, salsichas ou atum. Há pouco tempo vi um idoso a tentar roubar batatas e uma senhora de idade a esconder pastéis de bacalhau no bolso. Quando a abordei, pediu muita desculpa e explicou que tinha fome. E há mulheres com filhos que dizem que já não têm como lhes dar de comer. É muito triste. Chego a dizer-lhes: ‘Prefiro que me peçam. Não sou rico, mas posso oferecer alguma coisa.’ E eu próprio vou à caixa pagar”, conta.
No supermercado onde trabalha, o aumento dos furtos levou a gerência a instalar alarmes em alimentos como o polvo congelado e a picanha e a diminuir as quantidades de produtos expostos nas prateleiras, como acontece com o café. A par das conservas, o café “é neste momento um dos artigos mais suscetíveis de furto”, segundo disse ao Expresso fonte do Continente, sem, no entanto, adiantar números quanto à dimensão do fenómeno.
Nas grandes cadeias de distribuição, cada loja tem autonomia para decidir a instalação de alarmes nos produtos em que se registem maiores quebras de stock, o que significa que os artigos com alarme podem variar de estabelecimento para estabelecimento. A instalação deste sistema de segurança é dispendiosa e só é feita quando o custo compensa o que se perderia em furtos. E nos últimos meses têm sido cada vez mais os supermercados a avançar para este investimento.
“Está a haver um problema grave de quebra de stock por furto, sobretudo nas lojas de rua e não tanto nos hipermercados”, justifica o responsável de uma das maiores cadeias, que prefere não ser identificado. Em causa já não estão apenas artigos de perfumaria e álcool premium, tradicionalmente os que mais desapareciam e que já era costume terem alarmes, mas cada vez mais “produtos alimentares básicos, como o bacalhau e o atum”, diz.
Ao Expresso, o Auchan garante que “não tem verificado aumento de furtos em nenhuma das lojas” e que a instalação de alarmes não passa de uma “prática preventiva de há já vários anos”. Mas a verdade é que não há memória de ver alarmes em latas de atum, por exemplo, como acontece, desde há pouco tempo, em algumas lojas de rua desta marca. Contrariando as declarações oficiais, dois funcionários de um supermercado desta cadeia, no centro de Lisboa, explicaram o motivo do recente reforço de segurança: “Estamos a colocar alarmes nas latas de atum, nas garrafas de azeite e no bacalhau porque ultimamente têm sido muito roubados. Há quem os leve em mochilas para depois os vender a preço mais baixo no mercado negro.”
O crescimento de mercados paralelos, onde os produtos são vendidos mais baratos do que no comércio legal, é comum em períodos de crise, sobretudo em países atingidos por uma inflação galopante, como acontece historicamente em África e na América Latina. Em Portugal, como um pouco por toda a Europa, o início da guerra na Ucrânia provocou uma escalada de preços, em particular nos bens alimentares. No mês passado a taxa de inflação destes produtos chegou aos 16,9%, o valor mais elevado desde julho de 1990 (ver gráfico).
MAIS PEDIDOS DE AJUDA ALIMENTAR
“Há produtos essenciais que efetivamente começam a ter um preço inacessível para as famílias mais carenciadas. Neste momento há muito mais pessoas que já não estão a conseguir assegurar a sua alimentação básica. Admito que, em desespero, recorram a tudo, até a roubar para comer”, vinca Rita Valadas, presidente da Cáritas.
Quase dois milhões de portugueses vivem com menos de €554 por mês e a população em risco de pobreza está a aumentar. Cerca de 500 mil pessoas dependem de apoio alimentar e o número de pedidos está a subir de forma acentuada, alerta a presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, Isabel Jonet. “Só o leite, por exemplo, aumentou 35%. A escalada de preços é brutal e as famílias mais pobres, que já viviam no limite, não têm nenhuma margem para suportar estes aumentos”, confirma.
Perante o crescimento dos pedidos de ajuda, há o risco de a própria rede de emergência colapsar e de as instituições no terreno não chegarem a todos os que precisam. E mesmo os cabazes distribuídos não são suficientes para satisfazer as necessidades básicas de uma família, resultando sobretudo de doações de excedentes dos produtores agrícolas, da indústria alimentar e dos supermercados.
“Os nossos associados apoiam com distribuição de alimentos mais de mil IPSS, mas estas já não estão a conseguir dar resposta e chegam-nos cada vez mais pedidos de ajuda”, revela o presidente da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição.
Perante a dimensão do problema, Gonçalo Lobo Xavier defende que é urgente aumentar os apoios do Estado às famílias. Mas garante que as cadeias de supermercados — cujos lucros dispararam nos últimos meses — querem contribuir para a solução. “Estamos a pensar em mecanismos para ajudar as pessoas mais carenciadas”, informa.