Ângelo Fernandes, autor do livro De que falamos quando falamos de violência sexual contra crianças, considera que o ruído em torno dos abusos sexuais na Igreja pode “intensificar a dor das vítimas”. Para acabar com a impunidade dos abusadores, defende, é preciso alargar os prazos de prescrição destes crimes.
A chave para perceber se uma criança foi exposta a uma situação de abuso ou violência sexual pode estar num simples desenho. Considerando que o abuso sexual de crianças é um fenómeno subidentificado, e que, ao contrário do que acreditam muitos pais, os menores podem demorar décadas a conseguir verbalizar o que lhes aconteceu, o livro De que falamos quando falamos de violência sexual contra crianças, agora lançado pela Pergaminho, é uma espécie de manual de instruções para pais e educadores. O autor, Ângelo Fernandes, ele próprio abusado sexualmente em criança, criou em 2017 a associação Quebrar o Silêncio, a primeira e única associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual. Cinco anos e 469 denúncias depois, uma certeza: é preciso alargar os prazos de prescrição destes crimes, sob pena de a impunidade continuar a ser a regra. De caminho, o autor acusa a Igreja Católica de não estar a conseguir respeitar a dor das vítimas.
A que sinais devem os pais estar atentos?
Há vários sinais que podem ser interpretados como tendo outras causas, os pais podem pensar que é uma fase ou que a criança está a ser vítima de bullying na escola. Mas costumo dizer aos pais que devem estar atentos a qualquer mudança comportamental. Alguns sinais concretos podem ser uma criança extrovertida passar a ser mais introvertida, começar a ter comportamentos de rebeldia, quando a criança começa a ter uma linguagem sexualizada muito precoce ou brincadeiras sexualizadas muito explícitas, fazendo desenhos com referências fálicas, por exemplo, como pénis erectos ou posições sexualizadas.
E como conseguir que as crianças falem?
Os pais muitas vezes vivem neste mito de que o filho ou a filha que tenha sido vítima de abuso ou de violência sexual vai falar. E nós sabemos que isso não é verdade. As crianças não partilham as histórias de abuso sexual. Se em casa não é trabalhado um ambiente propício ao diálogo, não é fomentado o hábito de conversarem ou de dialogarem, os pais não podem esperar que, numa situação destas, a criança consiga falar. Antes de mais, costumo dizer aos pais para criarem na rotina familiar momentos de diálogo e de conversa, em que a criança se sinta segura para expor as suas dúvidas sobre todo e qualquer tema que seja do seu interesse e da sua curiosidade. Se houver temas tabu, nomeadamente em relação à sexualidade, a criança poderá sentir que em casa os temas relacionados com sexo não são bem-vindos e, em caso de abuso, pode sentir que arrisca ser punida. E tudo isto contribui para que a criança não partilhe a sua história de abuso sexual.
Por que razão considera tão importante ensinar às crianças o nome correcto dos órgãos sexuais?
Porque os abusadores exploram todo o tipo de vulnerabilidades na criança. E não ter conhecimento correcto do seu corpo pode ser uma forma de vulnerabilidade. No livro, conto a história de uma menina que, no contexto escolar, refere que o tio lhe tocou na bolacha. E a professora, no meio de tantas outras partilhas das outras crianças, deixou passar isso. Só mais tarde, quando se apercebeu que na casa desta menina a família usa a palavra bolacha para se referir à vagina, é que a professora compreendeu que aquele episódio tinha sido uma tentativa de partilha de uma história de abuso sexual. Esta é uma das razões pelas quais oriento os pais e as mães para que ensinem os nomes correctos da genitália às crianças, tal como as ensinam a nomear o resto do corpo, o cérebro, pulmões…
Há nesta matéria mitos alimentados pelas próprias crianças que importa desfazer?
Desde logo, as crianças tendem a não considerar que a família ou os amigos possam ser abusadores sexuais. Muitas vezes as crianças acreditam que se deve manter um segredo, se um adulto lhes pedir, mesmo que seja um segredo mau. E isso são questões que os pais têm de trabalhar em casa. Não se trata de transmitir às crianças que qualquer adulto lhes pode fazer mal, porque não queremos que elas sintam que o mundo é um lugar perigoso, criando-lhes problemas de vinculação, mas, enquanto cuidadores, os pais têm de ter a percepção de que a maioria dos abusos ocorre dentro da própria família ou então de que o abusador é alguém próximo, como um professor, um vizinho ou amigo da família.
Devia haver prevenção nas escolas sobre esta matéria?
Se considerarmos que é onde as crianças passam a maior parte do seu tempo, não faz sentido que as escolas estejam desligadas ou demitidas deste papel, isto é, do mesmo modo que trabalham questões como lavar os dentes, o tomar banho ou a reciclagem, a escola pode dar um contributo fundamental para a prevenção dos abusos, desde que com o devido cuidado para respeitar o desenvolvimento da criança.
Mesmo apesar do receio, tão recorrente na questão da educação sexual, de que falar disto pode levar as crianças a uma exploração sexual prematura?
Esses receios são infundados, não têm qualquer validade científica, antes pelo contrário, sabemos que a educação para a sexualidade promove hábitos saudáveis nas crianças, tende a atrasar os primeiros contactos sexuais e a fazer com que estes decorram em maior segurança e também contribui para a diminuição da gravidez precoce.
A exposição a um episódio de abuso ou de violência sexual é automaticamente geradora de trauma, mesmo que esse episódio não tenha sido experienciado como traumático no momento em que ocorreu?
A violência sexual é uma experiência potencialmente traumática. Não podemos garantir a 100% que todos os episódios de violência sexual são traumáticos, mas o que a literatura indica e o que vemos no dia-a-dia é que a maior parte das pessoas que passou por uma experiência traumática tende a desenvolver stress pós-traumático. Portanto, mesmo que a vítima não tenha noção de que passou por uma experiência traumática, o trauma foi registado pelo corpo e acaba por somatizar e por ter consequências. É comum as vítimas dizerem que têm dificuldades em confiar nos outros, que não fazem amizades com facilidade, que não se entregam facilmente, que estão em constante estado de alerta, e muitas vezes apresentam isso como parte integrante da sua personalidade, apercebendo-se só mais tarde que isso é uma consequência do trauma por que passaram.
Muitos pais, até pelas jornadas laborais a que estão sujeitos, têm de deixar os seus filhos numa miríade de instituições. Que cuidados devem ter para garantir que os locais onde as crianças desenvolvem as suas actividades extracurriculares são seguros?
Eu costumo aconselhar os pais a exigirem desde logo o registo criminal de todos os profissionais dessas entidades ou organismos. E, depois, a questionarem a direcção desses espaços sobre os protocolos de actuação ou de prevenção da violência sexual contra crianças: o que é que eles fazem em caso de abuso sexual, como procedem à denúncia, como é que garantem a segurança das crianças? Quando os pais vão inscrever uma criança na natação, perguntam sobre horários, preço, o material que é preciso comprar, e o que lhes peço é para acrescentarem mais perguntas; que tentem saber, por exemplo, se há momentos em que o adulto fica a sós com a criança e quando; se há mais do que um adulto na sala quando as crianças têm de mudar de roupa. Não falar sobre abuso sexual de crianças é o maior favor que podemos fazer aos abusadores. Um abusador que esteja numa instituição destas, que seja, por exemplo, um professor de natação, sabendo que naquele espaço ninguém manifesta preocupações com isso, sente segurança para continuar a abusar. Se começa a haver conversas, se os pais exigem o registo criminal e forçam a entidade a tomar medidas no sentido da prevenção, então o abusador vai começar a sentir uma maior pressão e que perdeu a segurança e o espaço para abusar de crianças.
A Igreja não pode pedir às vítimas que dêem o seu testemunho e depois, por outro lado, desvalorizar esse testemunho e essa partilha
Este trazer para cima da mesa da questão dos abusos sexuais cometidos no seio da Igreja tem feito aumentar os pedidos de ajuda na associação que lidera?
Não necessariamente. O que acontece é que todas estas notícias sobre a Igreja geram algum ruído que pode potenciar e intensificar o desconforto e a dor das vítimas, nomeadamente a ansiedade e o sentimento de injustiça e de solidão. Estas mensagens que vemos como a do bispo do Porto, D. Manuel Linda, e de outros representantes da Igreja, são mensagens que não são de todo sólidas no sentido de garantir o apoio às vítimas. A mensagem que a Igreja está a passar é ambígua e essa ambiguidade é potencialmente prejudicial para as vítimas.
E pode dissuadir a denúncia das situações?
Sim, porque a Igreja não pode pedir às vítimas que dêem o seu testemunho e depois, por outro lado, desvalorizar esse testemunho e essa partilha.
Entre as pessoas que ao longo destes anos têm chegado à Quebrar o Silêncio têm aparecido vítimas de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja?
Sim, temos diferentes casos que ocorreram em contexto eclesial, na catequese, no seminário ou nos escuteiros.
E como fazem o encaminhamento dessas situações? Incentivam a denúncia junto das autoridades?
Temos de perceber desde logo se o crime já prescreveu ou não, porque, se for esse o caso, não há nada que se possa fazer em termos de denúncia. A vítima pode ir à Polícia Judiciária dar o nome do abusador, e ver se houve algum processo-crime ou algum caso arquivado, mas, se considerarmos que as vítimas demoram cerca de 20 a 30 anos a procurar apoio para os crimes de que foram vítimas na infância, percebemos que, na maior parte das vezes, quando isto acontece, então o crime já prescreveu, o que impossibilita essa denúncia.
Por que é que tende a haver um intervalo tão longo entre a ocorrência do crime e a sua denúncia?
Há várias questões que podem contribuir para o longo silêncio da vítima. Esta pode não compreender que foi vítima de violência sexual quando era criança, pode não saber expressar o que aconteceu; depois, à medida que vai crescendo, os sentimentos de vergonha e de culpa também contribuem para o silêncio. A vítima também pode estar ainda refém da manipulação ou das ameaças ou da chantagem que o abusador faz. Além disso, estamos perante experiências traumáticas em que cada vítima precisa do seu tempo para tomar consciência daquilo que aconteceu, partilhar a história e procurar apoio.
E encontram diferenças entre os abusos no seio da família e os ocorridos dentro da Igreja?
Claro que o facto de serem o pai ou a mãe os abusadores poderá intensificar algumas das questões no trauma. Mas isso pode acontecer também com um padre. Depende da relação que as vítimas tenham com o abusador. Não há uma fórmula matemática que nos diga que no contexto da Igreja é mais traumático que nos restantes.
Não tenhamos dúvidas, os abusadores sexuais só param quando o Estado os pára. Ou são parados pela Justiça ou continuam a abusar de crianças, porque (...) lhes é natural
A lei portuguesa estabelece os 14 anos como a idade a partir da qual as crianças ou jovens têm capacidade para dar consentimento sexual, embora haja restrições até aos 16 se a outra pessoa for maior. Sentem necessidade de alguma mudança no enquadramento legal deste crime?
A grande mudança nos abusos sexuais seria o alargamento da prescrição dos crimes. Quando o crime ocorre na menoridade, a vítima tem cinco anos após completar os 18 anos de idade para apresentar queixa, o que significa que qualquer vítima em criança tem até aos 23 anos para denunciar o abusador. Ora, se sabemos que as vítimas só partilham 20 ou 30 anos depois, torna-se evidente que este prazo de cinco anos após a maioridade não é suficiente. É fundamental que uma criança que tenha sido vitimada durante a sua infância tenha oportunidade de denunciar o crime quando chegar o tempo certo, quando tiver coragem e força para partilhar a sua história. Por outro lado, quando a violência sexual, como uma violação, ocorre na maioridade, o prazo de prescrição é de seis meses, quando sabemos que algumas pessoas demoram anos a conseguir falar do que lhes aconteceu. Por isso, o alargamento dos prazos de prescrição seria a mudança mais importante porque, deste modo, a maior parte dos casos não são denunciáveis.
E pode acontecer que, tendo este crime prescrito, o abusador continue a fazer novas vítimas.
Não tenhamos dúvidas, os abusadores sexuais só param quando o Estado os pára. Ou são parados pela Justiça ou continuam a abusar de crianças, porque podem, porque não há suspeitas sobre si e porque ninguém os vê como elementos perigosos. Portanto, ou o Estado os pára ou eles continuam a abusar de crianças, porque lhes é natural.
A discussão instalada sobre os abusos sexuais de menores na Igreja terá efeitos na forma como a sociedade encara este crime?
Sinceramente, não antevejo grandes mudanças, no sentido que isto não acontece só na Igreja, da mesma forma que não aconteceu só na Casa Pia. Enquanto sociedade, temos de compreender que estes casos não são exclusivos da Igreja ou de nenhuma outra instituição. Enquanto não dermos esse salto, vamos continuar a andar caso a caso, instituição a instituição, e não creio que possa haver grandes mudanças.
Não necessariamente. O que acontece é que todas estas notícias sobre a Igreja geram algum ruído que pode potenciar e intensificar o desconforto e a dor das vítimas, nomeadamente a ansiedade e o sentimento de injustiça e de solidão. Estas mensagens que vemos como a do bispo do Porto, D. Manuel Linda, e de outros representantes da Igreja, são mensagens que não são de todo sólidas no sentido de garantir o apoio às vítimas. A mensagem que a Igreja está a passar é ambígua e essa ambiguidade é potencialmente prejudicial para as vítimas.
E pode dissuadir a denúncia das situações?
Sim, porque a Igreja não pode pedir às vítimas que dêem o seu testemunho e depois, por outro lado, desvalorizar esse testemunho e essa partilha.
Entre as pessoas que ao longo destes anos têm chegado à Quebrar o Silêncio têm aparecido vítimas de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja?
Sim, temos diferentes casos que ocorreram em contexto eclesial, na catequese, no seminário ou nos escuteiros.
E como fazem o encaminhamento dessas situações? Incentivam a denúncia junto das autoridades?
Temos de perceber desde logo se o crime já prescreveu ou não, porque, se for esse o caso, não há nada que se possa fazer em termos de denúncia. A vítima pode ir à Polícia Judiciária dar o nome do abusador, e ver se houve algum processo-crime ou algum caso arquivado, mas, se considerarmos que as vítimas demoram cerca de 20 a 30 anos a procurar apoio para os crimes de que foram vítimas na infância, percebemos que, na maior parte das vezes, quando isto acontece, então o crime já prescreveu, o que impossibilita essa denúncia.
Por que é que tende a haver um intervalo tão longo entre a ocorrência do crime e a sua denúncia?
Há várias questões que podem contribuir para o longo silêncio da vítima. Esta pode não compreender que foi vítima de violência sexual quando era criança, pode não saber expressar o que aconteceu; depois, à medida que vai crescendo, os sentimentos de vergonha e de culpa também contribuem para o silêncio. A vítima também pode estar ainda refém da manipulação ou das ameaças ou da chantagem que o abusador faz. Além disso, estamos perante experiências traumáticas em que cada vítima precisa do seu tempo para tomar consciência daquilo que aconteceu, partilhar a história e procurar apoio.
E encontram diferenças entre os abusos no seio da família e os ocorridos dentro da Igreja?
Claro que o facto de serem o pai ou a mãe os abusadores poderá intensificar algumas das questões no trauma. Mas isso pode acontecer também com um padre. Depende da relação que as vítimas tenham com o abusador. Não há uma fórmula matemática que nos diga que no contexto da Igreja é mais traumático que nos restantes.
Não tenhamos dúvidas, os abusadores sexuais só param quando o Estado os pára. Ou são parados pela Justiça ou continuam a abusar de crianças, porque (...) lhes é natural
A lei portuguesa estabelece os 14 anos como a idade a partir da qual as crianças ou jovens têm capacidade para dar consentimento sexual, embora haja restrições até aos 16 se a outra pessoa for maior. Sentem necessidade de alguma mudança no enquadramento legal deste crime?
A grande mudança nos abusos sexuais seria o alargamento da prescrição dos crimes. Quando o crime ocorre na menoridade, a vítima tem cinco anos após completar os 18 anos de idade para apresentar queixa, o que significa que qualquer vítima em criança tem até aos 23 anos para denunciar o abusador. Ora, se sabemos que as vítimas só partilham 20 ou 30 anos depois, torna-se evidente que este prazo de cinco anos após a maioridade não é suficiente. É fundamental que uma criança que tenha sido vitimada durante a sua infância tenha oportunidade de denunciar o crime quando chegar o tempo certo, quando tiver coragem e força para partilhar a sua história. Por outro lado, quando a violência sexual, como uma violação, ocorre na maioridade, o prazo de prescrição é de seis meses, quando sabemos que algumas pessoas demoram anos a conseguir falar do que lhes aconteceu. Por isso, o alargamento dos prazos de prescrição seria a mudança mais importante porque, deste modo, a maior parte dos casos não são denunciáveis.
E pode acontecer que, tendo este crime prescrito, o abusador continue a fazer novas vítimas.
Não tenhamos dúvidas, os abusadores sexuais só param quando o Estado os pára. Ou são parados pela Justiça ou continuam a abusar de crianças, porque podem, porque não há suspeitas sobre si e porque ninguém os vê como elementos perigosos. Portanto, ou o Estado os pára ou eles continuam a abusar de crianças, porque lhes é natural.
A discussão instalada sobre os abusos sexuais de menores na Igreja terá efeitos na forma como a sociedade encara este crime?
Sinceramente, não antevejo grandes mudanças, no sentido que isto não acontece só na Igreja, da mesma forma que não aconteceu só na Casa Pia. Enquanto sociedade, temos de compreender que estes casos não são exclusivos da Igreja ou de nenhuma outra instituição. Enquanto não dermos esse salto, vamos continuar a andar caso a caso, instituição a instituição, e não creio que possa haver grandes mudanças.