24.10.22

Portugal: «Só conseguimos resolver o problema da pobreza se ele se tornar um fator mobilizador do conjunto da sociedade» – Carlos Farinha Rodrigues

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia), in Agência Ecclesia

Na última semana confirmou-se aquela que era uma perceção geral. A população portuguesa está mais pobre. E não fora os apoios sociais mais de quatro milhões de pessoas seriam pobres. Foi também no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza que ficamos a saber que Sandra Araújo será a nova coordenadora da Estratégia Nacional de Combate a este flagelo. Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão e especialista em desigualdades e pobreza, é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia.

Desde a apresentação da estratégia nacional de combate à pobreza até à definição da sua coordenadora passou quase um ano. Numa área de emergência como esta, não passou demasiado tempo?

Bom, vamos começar por clarificar alguns aspetos que aqui foram referidos. Eu gosto de frisar que o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza não é o Dia dos Pobres. Não é um dia exclusivamente para a população pobre. É um dia para apelar a toda a sociedade para a necessidade do combate à pobreza.

Até porque não é apenas um problema deles?

O problema da pobreza não é exclusivamente um problema dos pobres, embora sejam eles que mais sofrem com a situação de pobreza. É um problema nosso enquanto sociedade, porque a pobreza trava o desenvolvimento económico, põe em causa os valores democráticos da nossa sociedade e põe em causa, acima de tudo, a coesão social. O segundo aspeto tem a ver com um conjunto muito alargado de dados que saíram e que tiveram um destaque na comunicação social.

Mas são os dados que o INE (Instituto Nacional de Estatística) publicou em novembro do ano passado. Ou seja, são dados que, acima de tudo, retratam a situação de 2020. Entretanto, muita água passou por debaixo dos rios e, acima de tudo, muitas alterações.

E a realidade é pior?

Eu penso que em alguns aspetos é pior. Noutros, eventualmente, nem tanto. E isso tem a ver com a forma como nós analisamos o que são os indicadores oficiais de pobreza e o que é a realidade concreta das condições de vida. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Nós hoje estamos numa situação em que, provavelmente, os rendimentos nominais das famílias ou se mantiveram, ou cresceram ligeiramente. Estamos numa situação em que o emprego atinge níveis históricos. O que é que isso significa? Significa que, da forma tradicional como nós em Portugal e na União Europeia medimos a desigualdade e a pobreza, isso até pode significar um desagravamento da desigualdade e da pobreza.

Se não relacionarmos esses dados com outros…

Agora, o problema é que nós estamos a fazer a avaliação da pobreza e da desigualdade a partir de rendimentos nominais quando esta nova situação de termos um acréscimo do nível de preços, que é particularmente penalizador para as famílias mais pobres, vai significar necessariamente uma forte deterioração das condições de vida.

É nesse sentido que lhe perguntava se não é preciso um sentido de urgência para estas matérias.

É preciso um sentido de urgência. Em princípio, o INE divulgará os dados referentes a 2021 em novembro deste ano, o que nos permitirá ter alguma ideia, não tanto ainda do efeito da inflação, mas do rescaldo da pandemia. E, portanto, aí, na minha opinião, é preciso ter muita atenção aos indicadores oficiais de pobreza, mas também a indicadores de privação. Por exemplo, se nós tivermos um agravamento da percentagem de famílias que têm dificuldade em pagar água, luz e eletricidade; isso é significativo. Portanto, claramente, nós temos aqui um conjunto de desafios muito grandes. E, ainda por cima, num contexto de forte incerteza. Nós não sabemos como é que vamos estar daqui a uns meses em termos de inflação, em termos do desenvolvimento económico e em termos da própria situação europeia. Toda esta urgência, toda esta incerteza, reforça a necessidade de termos uma estratégia de combate à pobreza. E aí há um primeiro aspeto que eu gostaria de reforçar. O que é que aconteceu?

Nós tivemos a estratégia aprovada em dezembro do ano passado e só agora, com a nomeação da Drª. Sandra Araújo, temos condições para começar a implementar. Eu faria dois comentários em relação a esse atraso. Primeiro, não vejo nenhuma razão para que esse atraso tenha acontecido. Certamente que terá havido boas razões para isso, mas eu não conheço e, de alguma forma, acho que isso penalizou a capacidade de dar respostas integradas às situações de pobreza.

Há um segundo aspeto que eu penso que é extremamente importante, porque de alguma forma, equilibra este aspeto negativo do atraso na implementação da estratégia, que é o seguinte: se nós olharmos para um conjunto muito significativo de medidas de âmbito social que foram tomadas este ano ou que estão contempladas no Orçamento [do Estado para 2023], etc., nós podemos verificar que praticamente todas elas se inserem no espírito da estratégia. Aquilo que eram os eixos prioritários da estratégia, [como] a defesa das crianças, uma preocupação acrescida com os jovens, o manter os níveis de rendimento da população mais idosa. Ou seja, as várias medidas que foram tomadas estão claramente imbuídas do espírito da estratégia.

Ou seja, foram beber ao espírito da estratégia nacional?

Foram beber ao espírito da estratégia. Têm implícito a existência dessa estratégia. Portanto, de alguma forma, eu não diria que a estratégia esteve em ‘stand-by’. Agora, o facto de nós termos demorado estes meses significa que reduzimos a nossa capacidade de criar sinergias, de olhar para o combate à pobreza de uma forma mais integrada, como ela exige.

Isso decorre do quê? De falta de vontade política para definir planos e colocá-los em prática?

Não. Embora eu continue a pensar que o problema da pobreza no nosso país é essencialmente uma questão de vontade política, acho que seria um pouco abusivo dizer que foi por falta de vontade política. Acho que outras razões existirão. Agora, a estratégia de combate à pobreza, que foi aprovada o ano passado e que foi amplamente discutida, quer no seio da comissão de que eu fiz parte, quer com vários agentes que no terreno atuam no combate à pobreza, têm uma mensagem que para mim é particularmente importante que é o seguinte: o combate à pobreza não se faz exclusivamente com políticas sociais, por mais importante que essas políticas sejam. Eu tenho de ser capaz de coordenar praticamente todo o universo das políticas públicas para o combate à pobreza.

Ou seja, não bastam abordagens periféricas é preciso ir ao centro da questão?

Não basta tentarmos resolver o problema imediato das famílias mais carenciadas. Eu hoje estou convencido que quando nós olhamos para a pobreza, a realidade concreta da pobreza em Portugal, a existência de largas famílias com falta de recursos mínimos continua a ser um problema determinante.

O que falhou no passado foi a capacidade de quebrar ciclos?

Foi também essa capacidade de quebrar ciclos. Mas a falta de recursos continua a ser determinante. É ela que, no fundo, permite classificar uma pessoa como pobre ou não. pobre, mas hoje assume cada vez maior importância a capacidade de acesso a bens e serviços mínimos e isso remete-nos diretamente para as questões da saúde, da habitação, da educação.

Hoje, os problemas da habitação são fulcrais na análise da pobreza. As questões da educação. Nós, por exemplo, durante a pandemia, tivemos a necessidade de tomar medidas que foram profundamente geradoras de desigualdade e cujos efeitos se vão sentir durante muitos anos, dependendo, obviamente, da sua intensidade das políticas que forem tomadas.

Falou da questão da habitação. E a inflação e a subida das taxas de juro não mereciam uma intervenção mais musculada por parte do Governo, em particular junto das muitas famílias com dificuldades para o cumprimento dos créditos à habitação, porque provavelmente será um dos problemas mais emergentes num futuro próximo?

Eu penso que sim, ou seja, a questão do crédito à habitação vai ser fundamental, mas não é única. Eu acho que de há muito que nós não temos uma política integrada de habitação que permita resolver problemas. No fundo permita um reajustamento são entre oferta e procura. Nós olhamos para Lisboa e temos milhares de casas desocupadas. Nós vemos as dificuldades que os jovens hoje têm para ter uma habitação com um mínimo de dignidade nas principais cidades.

E ainda assim há o receio de muitas pessoas ficarem sem casa…

Exatamente. Porquê? Estas intervenções têm de ser devidamente pensadas e enquadradas. Deixe-me dar um exemplo. O Governo decidiu face à atual crise, não permitir aumentos das rendas no próximo ano superiores a dois por cento. É uma medida com a qual concordo, mas já estamos a perceber que essa medida vai poder, potencialmente, ter efeitos perversos: a não renovação de contratos das famílias que estão a terminar o seu prazo de contrato. Ou seja, não basta ter medidas pontuais, temos de ser capazes de as integrar e olhar para elas de uma forma global.

Implementar, pôr a funcionar a estratégia de uma forma mais efetiva pode ser um contributo muito importante no combate à pobreza. A Drª Sandra Araújo, que foi nomeada como coordenadora, é uma pessoa que tem experiência do trabalho no terreno. Ela foi durante muitos anos diretora executiva da Rede Europeia Anti-Pobreza. Eu desejo-lhe as maiores felicidades porque vai ter uma tarefa que é de primordial importância, mas difícil.

Agora eu espero que ela tenha capacidade para, de facto, pôr a estratégia a funcionar.

Falava ainda agora da questão de as medidas terem de ser avaliadas no seu conjunto, no conjunto do setor a que se destinam. Gravamos esta entrevista no dia em que o Governo começou a efetuar o pagamento extraordinário aos pensionistas e na véspera de um conjunto significativo de portugueses verem cair na sua conta bancária 125 euros, como forma de tentar minimizar os efeitos da crise que vivemos. Já tem uma ideia concreta sobre a eficácia destas medidas?

Eu acho que esse impacto vai ser relativamente limitado, embora seja simultaneamente extremamente importante para as famílias mais carenciadas. Agora é uma ajuda, mas mais uma vez aqui é o problema da forma como nós jogamos com a implementação de medidas pontuais que se não forem enquadradas numa visão mais global -não direi que são inúteis, que não são-; são importantes, mas perdem a sua capacidade transformadora.

Começamos por abordar a questão do atraso na implementação da estratégia de combate à pobreza. Ainda estamos a tempo de recuperar o tempo perdido. Perdeu-se o objetivo de fazer deste combate um desígnio nacional?

Não. A estratégia vai até 2030. Este atraso, como eu referi, não é despiciente. Agora, se se avançar rapidamente com a constituição de toda a estrutura que vai gerir a própria estratégia. Se se avançar rapidamente com a elaboração de planos trianuais para definir quais são os objetivos imediatos, quais são as metas que se pretendem alcançar num horizonte de dois, três anos, isso será um passo importante. Portanto, eu penso que claramente não é algo que está perdido. Continua a ser uma estrutura estruturante – passe a redundância – para nós combatermos a pobreza.

O segundo especto que me tinha colocado, que era do desígnio nacional.

Deixe me dizer-lhe que quando nós estávamos na comissão que elaborou a estratégia de combate à pobreza, eu fui daqueles que propus e que lutei muito para que essa meta e esse objetivo ficasse plasmado na estratégia. Porquê? Porque eu estou convencido que só conseguimos resolver o problema da pobreza em Portugal se ele se tornar um fator mobilizador do conjunto da sociedade. E isso remete para o primeiro aspeto que referi. O problema da pobreza não é um problema dos pobres.

E também não é só um problema do Estado…

Não, não é só um problema do Estado, claro que não. Mas deixe-me dar-lhe um exemplo que permite situar isso. Aqui já há muitos anos, quando eu comecei a estudar as questões da pobreza; eu, como a generalidade dos investigadores nesta área, chegamos a esta área a partir da perceção muito clara da profunda injustiça que é a existência de largos setores da população em situação de pobreza. Eu hoje continuo a ter essa mesma perceção. Mas eu sou economista. Olho para a realidade de uma forma, enfim, não direi diferente, mas com outros instrumentos. E eu hoje também estou convencido de que os níveis de pobreza e os níveis de desigualdade que nós temos são um obstáculo poderosíssimo para o desenvolvimento económico e para o crescimento económico. Portanto, o combate à pobreza e à desigualdade não é só por uma questão de equidade e justiça social. E só por isso valia a pena. Mas é também um instrumento fundamental para termos um desenvolvimento sustentado no futuro.

Falamos de muitas medidas direcionadas para os setores mais frágeis da sociedade. Com o agravar da crise e do potencial aumento dos fatores de exclusão social e pobreza, há um desgaste significativo no outro setor, aquilo que chamaríamos a classe média, que coloca mais pessoas em risco de pobreza?

Quando olhamos para a desigualdade e a evolução da desigualdade, ao longo do tempo, passamos de um paradigma de ‘pobres vs. ricos’ para algo que hoje é cada vez mais relevante, na minha opinião: os muito ricos contra o conjunto da sociedade, a concentração de riqueza no topo da distribuição – entre os 1 ou 2% mais ricos. É algo que não só em Portugal, mas a nível dos países mais desenvolvidos, tem tido um aprofundamento claramente perigoso para a própria coesão social.

Hoje temos de ter medidas para o combate à pobreza, mas há também que garantir que largos setores da população, que não estão na situação de pobreza, mas que sofrem os efeitos da crise, tenham também capacidade de resistir e de enfrentar com os instrumentos adequados esta crise.

Dito de outra forma, o facto de nós defendermos medidas muito específicas, na sua incidência, sobre a população mais pobre, não significa que não se deva pugnar por garantir um desenvolvimento mais sustentado, mais equilibrado do conjunto da sociedade.

Entrando agora em aspetos um pouco mais técnicos, é extraordinariamente difícil dizer o que é ser classe média, hoje, em Portugal. Temos níveis limiares de pobreza à volta dos 500 euros: o que é que eu direi de uma pessoa que ganha 2000 euros? É rico? É classe média? Há aqui uma zona cinzenta. Há uma larga zona na escala dos rendimentos que já não estão em situação de pobreza, mas claramente têm níveis de fragilidade que é preciso ter em conta, até para evitar o risco que uma parte significativa dessas pessoas caia em situação de pobreza.

E não falamos aqui dos fenómenos da pobreza envergonhada que ganha cada vez maior dimensão e que se calhar não cresce mais, dado o apoio da família…

Há situações de pobreza que não são detetadas pelas estatísticas oficiais. Quando nós vemos os indicadores de pobreza que o INE e o Eurostat publicam anualmente, muitas vezes esquecemos que toda a população sem-abrigo não é abrangida, que há uma parte da população que não é só pobre e excluída materialmente, mas é também autoexcluída das próprias estatísticas sobre a pobreza. Isso é um problema que esta estratégia de combate à pobreza também deve ter em conta. Temos pobreza envergonhada, temos igualmente franjas da população em situação de pobreza que não são facilmente detetáveis.

Uma das lições que tiramos da pandemia é que, em crises anteriores, nomeadamente durante o período da troika, nós sabíamos que havia um conjunto vasto de famílias que, apesar de não terem rendimentos formais conhecidos, conseguiam sobreviver à custa da economia informal, com biscates, com sistemas vários. O que aconteceu durante a pandemia, durante aquele período em que tudo parou? Essas atividades, que serviam quase como uma almofada às situações de pobreza mais extrema, deixaram de funcionar. Descobrimos uma realidade de que não tínhamos uma consciência muito profunda: estas famílias, porque estão fora do mercado formal de emprego, estão também fora dos mecanismos tradicionais de proteção social.

De repente, nós vimo-nos com uns largos milhares de famílias que não tinham nada, que tinham por via da pandemia, ficavam completamente desprotegidas. A forma de responder a isso foi, na altura, tentar dar o apoio possível a essas famílias, mas foi também, ou pelo menos deveria ter sido – é uma avaliação que eu, pessoalmente, ainda não tenho – uma tentativa de clara de os integrar na economia formal, para que eles sejam trabalhadores de pleno direito, com todos os direitos e também todos os deveres que estão associados e que tenham acesso à proteção social.

Na última semana, a Igreja Católica promoveu em Fátima um encontro nacional da Pastoral Social, no qual se disse que, face ao agravamento das condições de desigualdade e da pobreza, é possível que as pessoas se vejam obrigadas a escolher entre a alimentação e os medicamentos?

Nalgumas famílias isso pode acontecer. Nós não temos ainda dados concretos que nos permita responder a essa questão. A inflação, é ela, em si mesma, um fator de desigualdade, porque quando nós temos uma subida dos bens de primeira necessidade, é fácil perceber que, na estrutura das despesas das famílias mais pobres, esses bens têm um peso maior.

O peso relativo é muito maior…

Sim, aquilo que nos designamos por “share” do rendimento gasto nessas despesas é muito maior e, portanto, o efeito é imediato. Quando nós olhamos para o efeito do preço dos combustíveis, vai muito para além da população em situação de pobreza e atinge largos setores da classe média. Mas os principais efeitos da inflação incidem muito sobre a população mais pobre.

Para fazer face a todos estes problemas, precisamos, de facto, de um Estado Social forte. Do percurso efetuado até agora, até ao momento com que identificou, vivemos de facto, ao lado desse Estado social forte?

Nós temos um Estado Social que, historicamente, começou tarde e que ainda tem muitas insuficiências, sendo fortemente condicionado pelas restrições económicas. É evidente que as medidas seriam diferentes, se não tivéssemos o défice e a dívida que temos. Portanto, há restrições económicas fortes, mas não tenho dúvidas que o caminho a perseguir é o do reforço do Estado Social.

E, nessa perspetiva, o Programa de Resolução e Resiliência, a famosa bazuca, seria importante para esse reforço do Estado Social, em ligação a outros outras políticas públicas, nomeadamente a Agenda 20-30?

Deixe-me referir que nós, em relação ao Estado Social, sempre tivemos algumas vozes críticas que são perfeitamente legítimas. Eu discordo, mas admito perfeitamente que se possa defender que não deve existir um Estado Social. Acho que uma das poucas vantagens desta pandemia é que mostrou claramente a necessidade da existência de um Estado Social tão forte quanto possível. As consequências da pandemia seriam muito mais drásticas se nós não tivéssemos a intervenção do Estado. Isso levou a que alguns dos defensores do fim do Estado Social, não mudassem de opinião, mas estivessem calados durante algum tempo. Acho que mudar de opinião não mudaram e brevemente iremos ouvi-los novamente.

O segundo aspeto é particularmente importante: como é que a estratégia de combate à pobreza joga com o Plano de Recuperação Económica e com o Plano 20-30.

Eu faço parte da Comissão de Acompanhamento do PRR, exatamente nas áreas sociais. Em relação ao PRR, pode haver aqui, se bem aplicado, um papel fundamental na resolução de alguns problemas estruturais.

Há pouco falávamos na habitação. O PRR é essencialmente um plano de investimentos e, nesse sentido, se conseguirmos implementar aquilo que está previsto… há dificuldades várias, não é um caminho fácil.

Mas vai lutar por isso?

Claro que sim. Um segundo aspeto tem a ver com o Plano 20-30, no qual já é possível ter medidas mais direcionadas para o apoio direto às famílias em situação de maior pobreza. Há algum atraso, mas espero que ele seja implementado de forma eficiente. Nós precisamos, cada vez mais, de ser capazes de fazer uma avaliação dos impactos, transformadores ou não, de cada uma das medidas.

Não nos basta ter um relatório e dizer “nós gastamos 95% do que estava previsto, é muito bom”. Não. O que é importante é saber o que mudou com aquilo que se gastou. E nesse sentido, já extravasando um pouco a questão da pobreza, mas com impacto importante, devemos ser capazes de avaliar os impactos transformadores das políticas públicas, em particular estas que têm uma grande componente de investimento ou de transferências monetárias.

As instituições sociais podem e devem ser um parceiro mais eficaz no combate à desigualdade?

O combate à pobreza não pode ser exclusivamente do Estado, daí dizer que é necessário fazer do combate à pobreza um desígnio nacional. Muitas das organizações que trabalham diretamente com a população pobre têm um papel fundamental. Quando olhamos para a atuação dessas instituições no terreno, podemos chegar à conclusão de que estas instituições são a porta de entrada, são a entrada de emergência, quando uma pessoa cai numa situação extremamente difícil. Em vez de ir primeiro ao Estado, se calhar é a primeira porta onde vão bater são essas instituições, porque estão mais próximas. Tem a ver com as características da população e, nesse sentido, são extraordinariamente importantes.

A atuação destas instituições tem de ser complementar da intervenção do Estado e não pode ser nunca um pretexto para dispensar a intervenção do Estado. Depois, na forma de funcionamento destas instituições, há aspetos em que ganharíamos muito se fossem mudados. Por exemplo, hoje o acompanhamento dos beneficiários do RSI é, em grande parte do país, efetuado por Instituições de Solidariedade Social, umas trabalhando muito bem, outras trabalhando um pouco menos bem.

No entanto, não temos um mecanismo que permita avaliar o que é que cada uma dessas instituições faz, dizendo “esta Instituição A teve um desempenho excecional, esta experiência deve ser exportada para outros” ou “esta Instituição B cometeu erros e nós devíamos fazer com que eles não sejam repetidos”. Também aqui a estratégia pode ter um aspeto importante. Temos de ser capazes de pôr estas várias instituições do Estado e instituições de solidariedade em diálogo e em colaboração.

Há um último aspeto que também gostaria de referir: quando olhamos para o que tem sido o combate à pobreza em Portugal, geralmente falamos na intervenção do Estado e nas Instituições de Solidariedade Social. Há aqui um grande ausente: o poder local, as autarquias.

É evidente que há muitas autarquias com um papel fundamental e que têm desenvolvido, ao longo dos anos, atividades importantíssimas no combate à pobreza. Mas geralmente não falamos nas autarquias quando falamos no combate à pobreza. Para mim, também as autarquias devem ser chamadas a esta discussão sobre quais as melhores formas de alterar a nossa sociedade, para que ela não gere tanta desigualdade e tanta pobreza.

Acontecerá quando tivermos um país regionalizado?

Não me preocupa muito qual é a forma administrativa com que isso se vai realizar. Para mim, o importante é que seja um processo inclusivo, que todas estas instituições, que no fundo têm um mandato para defender as populações – seja ele resultante de eleições ou da confiança que a comunidade deposita em certas instituições- todas elas sejam chamadas a este desígnio nacional que é o combate à pobreza.