Romain Leick, in Press Europe
A Europa atravessa uma crise de confiança e tem de enfrentar um novo questionamento dos seus pilares democráticos. Face a estes desafios, o intelectual francês considera que é preciso reforçar a solidariedade no seio da UE e construir uma comunidade mais ofensiva face aos desafios externos.
André Glucksmann, a UE não perdeu o seu encanto. Ninguém se propõe voluntariamente deixar a Zona Euro.
Sócrates disse que ninguém faz asneira por vontade. Interpreto isso desta forma: os disparates acontecem quando a vontade enfraquece. Não me parece que procurar soluções e caminhos na atual crise financeira seja uma tarefa sobre-humana. Aliás, os dirigentes da UE vão-nos encontrando aqui e ali.
E vão encontrando o seu caminho de uma cimeira de Bruxelas até à seguinte e a intervalos cada vez mais curtos. Mas as soluções que se esperavam não surgem.
O que falta é uma perspetiva global. O porquê da União Europeia, a sua razão de ser, perdeu-se. Haverá sempre maneiras de melhorar as instituições da UE e de as adequar às necessidades da situação. Podemos contar com a capacidade dos políticos e advogados para fazerem isso. O desafio surge a um nível diferente e é claramente uma questão de sobrevivência: se as antigas nações da Europa não se unirem e apresentarem uma frente unificada, perecerão.
Mas os dirigentes europeus não reconheceram isso?
Se o fizeram, porque agem com tão pouca unidade? A questão do tamanho tornou-se uma necessidade absoluta, na globalização. Angela Merkel sente indubitavelmente que o destino da Alemanha também vai ser decidido na envolvente europeia. Foi por isso que, depois de alguma hesitação, optou pela solidariedade, embora com moderação. No entanto, está igualmente a permitir que Alemanha, França, Itália e Espanha sejam divididas pela crise. Se os nossos países forem divididos por pressão das forças de mercado, perecerão, individualmente e em conjunto.
Quer dizer que a ideia de um destino comunitário europeu ainda não ganhou realmente força?
Na prática, não. A globalização acarreta um caos global e já não existe uma força policial global – papel que os Estados Unidos desempenharam durante muito tempo. Os intervenientes podem não querer guerras, mas não têm grande opinião uns dos outros. Cada um faz o seu jogo individual. Nesta confusão anárquica, a Europa tem de afirmar-se e enfrentar as ameaças na ofensiva. A Rússia de Putin, que quer reconquistar parte do território que perdeu, é uma ameaça. A China, um Estado esclavagista burocrático, é uma ameaça. O islamismo militante é uma ameaça. A Europa tem de aprender a pensar de novo em termos de hostilidade. (O filósofo alemão) Jürgen Habermas, por exemplo, não percebe isto, quando diz que o cosmopolitismo bem-intencionado pode unir todos numa cidadania global.
Para muitas áreas do mundo, a Europa é um farol de liberdade e de direitos humanos.
Mas os ideais e os valores não se combinam para criar perspetivas. As nações europeias podem seguramente gozar de um atraente pluralismo de valores, mas não basta apresentá-los como se fossem parte de um catálogo. Em vez disso, é importante enfrentar juntos os desafios. A Europa arrasta-se num estado persistente de hesitação, o que pode por vezes transformar-se em hipocrisia. Há duas maneiras de evitar desafios: uma é desviar o olhar e fingir que não existem. A outra é o fatalismo, ou seja, encolher os ombros e fingir que, de qualquer maneira, não há nada que se possa fazer. O grande historiador universal Arnold J. Toynbee avaliou o desenvolvimento de culturas com base na sua capacidade de reagir adequadamente aos desafios. A Europa pretende encarar o seu destino? Não há razão para duvidar..
Será isso resultado de falta de liderança?
É mais do que isso. É também uma questão de debilidade dos intelectuais, indiferença da opinião pública e isolacionismo. Olhe para as eleições na Europa. Qual o papel da política externa e da posição da Europa no mundo? Há alguns anos, a UE atribuiu-se um alto representante para os Negócios Estrangeiros e a Segurança, Catherine Ashton, com um organismo separado, que emprega milhares de funcionários públicos. Onde anda ela, o que está a fazer e quem dá por ela? O século XXI vai ser um século de grandes continentes, que ou se vão dar bem uns com os outros ou não. Se a Europa não entrar nessa dimensão, vai recuar para o século XIX. Então, a nossa atividade política só se poderá basear em memórias distantes: Europa, o continente da angústia e da nostalgia.
Como pode o fluxo de energia intelectual ser revitalizado? Pensadores alemães e franceses andaram muito tempo num estado de fascínio mútuo, que durou praticamente desde a Revolução Francesa até ao movimento estudantil de 1968.
Era uma curiosidade resultante da rivalidade e da competição. Observámo-nos atentamente uns aos outros e ficámos a conhecer-nos muito bem. A distância intelectual cresceu consideravelmente nas últimas décadas. Sempre houve diferenças no modo de pensar. Hegel descrevia a Paris do Iluminismo como um exemplo do "reino animal intelectual" da autoexpressão. Os franceses argumentaram e soltaram impropérios; gostavam de diferenças e de polémicas. Os seus debates eram um pouco aparentados com o jornalismo e o espetáculo, mas já não tanto com o rigor académico.
Os alemães trabalhavam grandes sistemas explicativos, buscando nos limites do conhecimento um substituto para a falta de unidade política e religiosa. Hoje, uma depressão intelectual abate-se sobre ambos os países. A intelectualidade como classe social deixou de existir em França, e falta coerência de ambos os lados (da fronteira franco-alemã). Perdeu-se no pós-modernismo..
Então aqueles que desejam furtar-se aos grandes desafios já não precisam de grandes conversas, é?
Pelo menos é isso que é postulado no que Lyotard encara como o fim dos sistemas e ideologias. Mas o pós-modernismo, supostamente não-ideológico, é em si uma ideologia. Vejo-o como a personificação do movimento dos indignados – indignação como protesto moral, que é um fim em si mesmo. A forma é o conteúdo. Isso lembra-me Oskar Matzerath de O tambor de lata de Günter Grass: eu vejo, eu toco tambor e o mundo intolerável desmorona-se.
Uma crença infantil?
A Europa ainda é um parque de diversões de ideias. Mas o pensamento está tão fragmentado, tão oprimido por escrúpulos, que escapa ao verdadeiro teste. Neste sentido, é uma imagem refletida no espelho da política.
Leia a primeira parte da entrevista: "A Europa caracteriza-se pela noção de crise"
Traduzido do alemão por Ana Cardoso Pires
Entrevista a André Glucksmann na Spiegel International
André Glucksmann é um filósofo e ensaísta francês. Nascido em 1937, começou por ser militante em grupos maoístas, na sequência dos acontecimentos de maio de 1968. Em 1975, escreveu A cozinheira e o devorador de homens [Edições Afrontamento] e, em 1977, Os mestres pensadores [Publicações Dom Quixote], em que denunciava o totalitarismo soviético e os seus apoiantes no Ocidente. Com Bernard-Henri Lévy, foi um dos líderes do movimento dos "novos filósofos", jovens intelectuais franceses que punham em causa as relações da esquerda com o comunismo.
Depois de levar a cabo uma campanha de apoio aos boat-people vietnamitas [levas de foragidos embarcaças devido, na segunda metade dos anos 1970, à perseguição vietnamita por colaboracionismocom o governo de Saigão e os norte-americanos durante a guerra do Vietname, e, na década de 1980,às grandes dificuldades económicas e alimentares que se faziam sentir no país], em nome da “defesados direitos humanos”, defendeu sucessivamente a NATO, a Guerra do Golfo, uma intervenção na Bósnia-Herzegovina, os ataques da NATO contra a Sérvia e a invasão do Iraque.
O seu encarniçamento contra Vladimir Putin e a favor dos separatistas chechenos levou-o a apoiar Nicolas Sarkozy na eleição presidencial francesa de 2007. Posteriormente, lamentou publicamente esta decisão, argumentando que a França continuava demasiado indulgente para com a Rússia. Com o filho Raphael, escreveu O maio de 68 explicado a Nicolas Sarkozy [Editora Guerra & Paz]. Publicou diversos outros livros, de que está traduzido em português O discurso do ódio [Difel – Brasil]. O mais recente, de 2011, é République, la pantoufle et les petits lapins [apresentado como “reflexões pré-eleitorais de um apóstata”].