por Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias
Em 2006, o BCE e os bancos centrais da Zona Euro iniciaram um estudo sobre o património das famílias nos diferentes países europeus ("Household Finance and Consumption Survey"). O estudo, cujos primeiros resultados foram publicados em abril, tem causado uma vasta polémica na imprensa. O principal responsável por isso foi o banco central alemão (Bundesbank) que, ainda em março, não hesitou em lançar para a opinião pública alemã alguns dados pouco inocentes, num arremedo de estudo comparativo entre a situação alemã e a de outros países europeus. Importa recordar que o Bundesbank é presidido por um jovem economista, Jens Weidmann, que tem um gosto especial para declarações bombásticas, com uma clara agenda política e ideológica. Quando Mario Draghi salvou a Zona Euro por duas vezes, primeiro com os LTRO, os financiamentos de emergência e longa duração à banca comercial (em dezembro de 2011 e fevereiro de 2012), e depois com o anúncio do apoio ilimitado, mas condicionado, do BCE no mercado secundário, aos países sob ataque especulativo sobre a sua dívida pública (OMT, em setembro de 2012), Jens Weidmann foi o campeão dos ataques ao presidente do BCE.
Bundesbank semeia a discórdia
Weidmann fez circular a sua leitura comparativa da situação das famílias europeias, na mesma altura em que o seu compatriota Jörg Asmussen comandava o ataque a Chipre, numa operação de "resgate" em que os cidadãos com as poupanças depositadas em bancos dos países periféricos perceberam que os seus aforros podem ser confiscados pela troika. Nesse contexto, o Bundesbank inoculou na opinião pública alemã a ideia tóxica de que as famílias espanholas, italianas e cipriotas têm em média um património muito superior às suas congéneres germânicas. Na imprensa económica mundial séria, ao longo das últimas semanas, as alegações do Bundesbank têm sido acusadas de terrorismo estatístico pela falta de rigor metodológico e pelo tratamento erróneo da informação. Mas a intenção de Weidmann foi atingida. Mais uma machadada na solidariedade europeia. Mais uma acha na fogueira em que arde o projeto de unidade europeia. Weidmann quer que os alemães pensem o seguinte: "Qual é o sentido de estarmos a contribuir com os nossos impostos para fundos de resgate de países cujos cidadãos são mais ricos do que nós?" A mensagem do Bundesbank funciona como propaganda em dois sentidos. Primeiro, naquilo que pretende manifestar como verdade (a ideia falsa de que os lares alemães se contam entre os mais pobres da Europa). E, segundo, no que pretende ocultar, quanto à natureza e raízes da verdadeira pobreza em expansão, também, na sociedade alemã. Com efeito, o que é impressionante, e Weidmann deixa passar em silêncio, são as razões que poderão explicar porque 10% da população controla quase 59,2% do património líquido do país, quando em 1998 apenas detinha 45% do mesmo.
Pobreza na prosperidade
A prosperidade alemã, de que o ministro Schäuble afirma estarem os outros países europeus invejosos, esconde uma destruição parcial do Estado social efetuada entre 2002 e 2005 pela aplicação de um pacote de reformas concebidas por um amigo pessoal do chanceler social-democrata Gerhard Schröder, Peter Hartz (que seria condenado, em 2007, a dois anos de prisão por corrupção...). As reformas Hartz "flexibilizaram as leis laborais", enfraquecendo o peso dos sindicatos no mercado de trabalho, diminuindo os respetivos custos, criando mais de 7,4 milhões de microjobs, postos precários e mal pagos que explicam a existência de um número crescente de trabalhadores pobres (working poor) em cidades alemãs como Leipzig (25% de pobreza urbana), Dortmund (24,2%), Duisburgo (23,5%), Hanôver (22,6%), Bremen (21,3%) e Colónia (20%). A descapitalização da segurança social significa, igualmente, que 13% da população com mais de 65 anos se encontra abaixo do limiar da pobreza, com tendência para aumentar. Tendo em consideração que na Alemanha, ao contrário do que sucede em Portugal ou em Espanha, a maioria das famílias não tem casa própria, esta precariedade também se projeta sobre o risco de perda de habitação condigna, em caso de perda de emprego ou de erosão nos apoios sociais. O que é incrível é que este ataque de uma elite económica com poucos escrúpulos, que esconde a sua usura sob a defesa da competitividade das exportações alemãs, parece ter capturado quase inteiramente os dois principais partidos do sistema político germânico: o SPD e a CDU/CSU. São estas receitas - na origem do facto de metade da população alemã ter de viver com apenas 1% da riqueza nacional - que estão a ser aplicadas, com intensidade redobrada, nos países sob intervenção da troika.
Merkel contra Bismarck
Até o chanceler Bismarck, conservador e antissocialista, teria vergonha desta "Europa alemã", baseada na criação da discórdia e da inveja entre os europeus, com base na desinformação, promovendo o aumento da pobreza e a concentração da riqueza dentro de cada país da Zona Euro. Bismarck, muito pelo contrário, foi o pioneiro do Estado social moderno com as suas leis de 1883 (seguros de saúde), de 1884 (seguro de acidentes de trabalho) e de 1889 (seguro de velhice e invalidez). Schröder iniciou o desmantelamento dessa herança de uma política de responsabilidade social do Estado, iniciada por Bismarck. Merkel, por seu turno, pretende agora levar essa política ativa de desigualdade social ao maior número possível de países europeus. Os europeus não se devem deixar enganar. A ameaça para a paz e a prosperidade europeias não está no lado de lá das fronteiras. O perigo vem de dentro. Das elites incompetentes e egoístas - e dos burocratas que as servem cegamente, como o ministro português Gaspar - que a degradação das nossas democracias representativas segregou como uma perigosa doença. Os que querem destruir a herança de Bismarck arriscam-se a despertar, na Europa inteira, o fantasma de um marxismo de legítima defesa.