10.4.14

A vida em diferido

in RR

Imagine-se um casal na casa dos 30. Ambos com formação superior e vontade de alargar a família. Os planos feitos há quase uma década ditavam que estivessem já com empregos estáveis, talvez a caminho do terceiro filho, numa casa com espaço para esse cenário e, quem sabe, para um cão e dois gatos. Imagine-se que ao fim de seis anos a morar debaixo do mesmo tecto nada disto aconteceu. Sofia e Alberto Magalhães são uma família suspensa. Sentem-se "como um tonto no meio da ponte".

"Se tivermos um filho ficamos felizes"

Fim de tarde em Ermesinde, concelho de Valongo. O barulho dos carros a deslizar no chão molhado vai-se esbatendo quando se sobe para o apartamento cercado de asfalto onde moram Alberto e Sofia. As máquinas fotográficas e os instrumentos musicais que decoram os armários da sala denunciam as paixões que Alberto alimenta nos tempos livres. As molduras expõem sorrisos cúmplices em cenários de férias - o "único luxo" que se permitem ter para "manter a sanidade mental" - e do dia em que se casaram.


O pequeno T1 a que temporariamente chamam casa não é onde se imaginam a viver o resto da vida. "Até porque se quisermos ter filhos não podemos. Não temos sequer o espaço físico para poder alargar a família".

Mudaram para ali há pouco tempo, quando se tornou incomportável o desemprego dela e o emagrecimento do salário dele "por causa da subida do IRS". "Conseguimos, ao vir para aqui, poupar o equivalente ao corte de 100 euros que eu tive. Não pensámos duas vezes, teve que ser", conta Alberto.

Foi apenas um dos reajustamentos que se viram forçados a fazer. "Nos últimos três, quatro anos", aprenderam que "a volatilidade da situação do país não é para menosprezar" e que lhes pode atropelar os planos a qualquer altura.

Alberto tem 37 anos e trabalha há 10 num colégio privado, no Porto, onde dá aulas de Biologia e Geologia. Sofia tem 32 anos, é bióloga de formação, e atravessou longos anos sem emprego. Chegou a fazer o que queria - investigação -, mas quando deixou de conseguir bolsas começou a procurar emprego noutras áreas. Estava disposta a tudo, "até restaurantes de fast food".

A vida condicionada pelo desemprego

Depois de anos a receber "99% de respostas negativas" e de alguns trabalhos "muito precários", sobretudo a tempo parcial, agarrou recentemente a oportunidade de fazer trabalho administrativo numa empresa de Vila do Conde. Para já, resignou-se. "Hoje em dia não podemos ser muito esquisitos e é aproveitar o facto de termos emprego".


Abaixo das possibilidades

Desde que Sofia voltou a trabalhar, o rendimento dos dois fixou-se nos 1600 euros mensais. É, "infelizmente, superior ao de muitos portugueses" e "já poderia permitir pensarmos em concretizar a vontade de sermos pais", admite Alberto, não fossem "as perspectivas de futuro, em termos de emprego", uma "incógnita". Dado o historial de desemprego sucessivo de Sofia, têm um aviso sempre a soar nos ouvidos: "não há empregos para a vida".

Recuperaram alguma capacidade de poupança, mas "é muito pouco" o que sobra depois de pagas as despesas com a casa, a alimentação e os 400 a 500 euros que gastam por mês nas deslocações para o emprego. Os transportes públicos não são uma possibilidade naquela zona e a distância entre os empregos de ambos obriga a usar dois carros.

A ajuda dos pais tem sido uma almofada imprescindível nos últimos anos. "Mas eles também não são imunes à situação do país e, portanto, a possibilidade de nos ajudarem é cada vez menor". A reforma da mãe de Alberto, viúva e antiga professora, foi alvo de vários cortes. A pequena empresa de instalações eléctricas dos pais de Sofia também "sofreu muito com esta crise".

A passagem do tempo preocupa-os cada vez mais - até porque "há a questão da fisiologia e a capacidade de a Sofia ser mãe não se prolonga para o resto da vida". Mas planeiam cada passo com extrema cautela e não querem tomar decisões que possam resultar em mais dificuldades. Dificilmente alguém poderá acusá-los de viverem acima das suas possibilidades.

"Como um tonto no meio da ponte"

"Portugal está como os portugueses o merecem"

Por se ver forçado a "abandonar os planos", por se sentir "impotente" num país que "desaproveita" a sua "capacidade de trabalho e de adaptação", Alberto está zangado com Portugal e pensa em partir "todos os dias".

"Todos os dias", repete. "Se tivéssemos essa possibilidade, com certeza que agarrávamos. Não encaramos o futuro a médio prazo de uma forma muito positiva".

Já perdeu a conta aos amigos e conhecidos que viu tomar essa decisão. "Noutro dia estava, por brincadeira, a dizer que podíamos correr o mundo inteiro e ficar em casa de amigos ou de conhecidos, porque do Chile à Nova Zelândia, temos amigos por toda a parte. E, a grande maioria, porque não tiveram oportunidades em Portugal."

Enquanto cá está, Alberto faz questão de estar o mais informado possível, até porque acha que é "o dever de qualquer professor", mas não suporta ver notícias na televisão. "O facto de estar a passar o telejornal tem sido motivo para mudar de canal".

Procura as notícias que lhe interessam na internet, onde não é inundado pelas "opiniões que enchem os telejornais", proferidas por "pessoas com responsabilidade na vida política portuguesa". Incomoda-se com "o à vontade com que criticam o que se passa hoje em dia e com que tentam apresentar soluções miraculosas", até porque não vê "no panorama político actual qualquer alternativa".

Não é só contra os políticos que Alberto se revolta. Considera que "Portugal está como os portugueses o merecem, porque as suas mentalidades, a forma como encaram a vida levou a tudo isto". Para onde quer que olhe, o que vê é um país "que andou a gastar o dinheiro que não tinha" e, três anos de austeridade depois, não lhe parece que o fim do programa de ajustamento traga boas perspectivas. "Se uma situação como esta fosse suficiente para mudar, não estaríamos ao fim de 20 e tal anos outra vez sob resgate. Claramente, não aprendemos a lição".

A zanga é séria, mas Alberto e Sofia não conseguem esconder a vontade de fazer as pazes com o sítio onde cresceram, onde se formaram, onde se conheceram e onde começaram a desenhar os esquiços de uma vida comum.