Texto de Tiago Matos Silva, in Público on-line (P3)
Não fossem precisos tantos pobres para fazer um rico, e quase valia a pena tentar acabar com esta coisa dos pobres
Os pobres não têm competências, nem competitividade, nem produtividade, nem espírito empreendedor, os pobres não são proactivos, os pobres não investem no seu futuro, os pobres não sabem criar sinergias, os pobres não constroem poupança, os pobres andam a viver acima das suas possibilidades, os pobres andam mal-habituados, os pobres são malandros e trafulhas e só estão bem a encher o bandulho enquanto cantam o fado da desgraçadinha, os pobres são calinas e mal-agradecidos, os pobres o que querem é a mama do Rendimento Mínimo (ou RSI ou lá o que é agora), os pobres derretem o dinheirito todo em plasmas, telemóveis, mariscadas, bifes todos os dias e na água que desperdiçam quando lavam os dentes.
Os pobres também são burros, e analfabetos funcionais e continuam a ser súbditos em vez de cidadãos, os pobres são politicamente passivos, os pobres votam contra os seus interesses de classe, os pobres alinham sempre pelo mais baixo denominador comum, os pobres alimentam a demagogia, os pobres são facilmente manipuláveis, os pobres magoam-se em peregrinações a Fátima e dão o dízimo à IURD, os pobres não são voluntariosos, os pobres queixam-se muito mas raramente protestam e nunca participam nas manifestações da sociedade civil, os pobres para a bola têm dinheiro mas livros lá em casa está quieto, os pobres são egoístas e machistas e homófobos e, pior ainda, às vezes até racistas com outros pobres doutros sítios.
Ainda por cima os pobres são feios, os pobres não têm gosto nem cultura nem bom senso nem nada, os pobres não têm cartão da Biblioteca Nacional, os pobres não fazem parte da aldeia global, os pobres estão desenraizados da cultura tradicional, os pobres têm medo do que não compreendem, os pobres não têm opiniões que mereçam o tempo necessário que leva a ouvi-las, os pobres não viam o 2.º canal nem quando o 2.º canal merecia ser visto, do que os pobres gostam é da novela e papam tudo o que é "reality show", os pobres não apreciam cinema de autor e só vão ao teatro se for o La Féria, os pobres nunca ouviram falar no "Jornal de Letras" (quanto mais no "Charlie Hebdo" ou na "London Review of Books"), os pobres não sabem quem é o Jonathan Swift ou o Schopenhauer ou o Suetónio, os pobres vestem-se horrendamente, os pobres furam as orelhas aos bebés, os pobres ouvem Zezé di Camargo, acham que McDonald’s é comida e preocupam-se com a orientação sexual do Ronaldo, os pobres às 7 da manhã já estão cansados e às 9 da noite já estão a dormir, os pobres acham que ler poesia é mariquice e riem-se da gastronomia molecular, os pobres estão bem é de fato de treino a passear no centro comercial domingo à tarde, os pobres dão cabo da imagem do país cada vez que se cruzam com os turistas do norte do mundo em frente à Torre de Belém.
E estes pobres de agora, ingratos e consumistas, insolentes sem deixarem de ser submissos; são tão malinos que nem sequer têm a decência básica de serem como os pobres de antigamente: pobres decentinhos cheios de respeito, de chapéu na mão à porta da missa, de olhos baixos às palavras dos doutores, em traje de rancho cinzento-rato remendão... pobres que nem eram pobres, que eram pobrezinhos.
É no raio desta gente que reside todo o problema da nação; não nos bem-abrigados, bem-aquecidos e bem-alimentados que lhes dão lições, ainda menos nos 10% que concentram quase um terço dos recursos, mas neles e só neles. Não fossem precisos tantos pobres para fazer um rico, e quase valia a pena tentar acabar com esta coisa dos pobres.