28.4.14

Felicidade Pública (9): manifesto contra a instrumentalização da felicidade laboral

Helena Marujo, in Público on-line

"That is happiness, to be dissolved into something complete and great”(Isso é a felicidade, a ser dissolvida em algo completo e grandioso), Willa Cather

Mea culpa.

Tendo sido uma das primeiras pessoas que começou em Portugal a falar da importância da felicidade no contexto laboral, sinto-me inquieta com o rumo que pode trazer a bandeira de uma abordagem positiva nas organizações em tempo de desertos.

Guiava-me na altura a vontade de criar lugares de vida mais humanos, de pensar em formas sociais democráticas mais límpidas e evoluídas, em locais de produção de bens e serviços mais vocacionados ao bem-comum. Queria ver mais, no espírito do próprio tempo, do que outra leva de emigração em busca de dignidade, decência e alimento; queria humildemente ajudar a construir um mapa moral e dialogante nas empresas privadas ou públicas, nas fábricas, nos serviços, nos campos, nas escolas, nos hospitais.

Hoje, vejo o tema da felicidade a entrar nas organizações, e devia sentir-me, no mínimo... feliz. Mas antevejo o risco.

Quantas vezes configurada em não mais do que um rol de práticas assentes num irrefletido e vago sentimento moral, numa superficial alegria, e em mais uma forma de instrumentalização de quem trabalha – um novo caminho para maior produtividade, uma outra forma de medir, controlar e influenciar a satisfação, uma repetição triste de formas manipuladoras de controlo – a possibilidade da felicidade está ainda mais em perigo.

Quando sonhei trazer da investigação para o dia-a-dia dos empregados esse horizonte da felicidade idealizei formas de trabalho, liderança, comunhão relacional e ambiente laboral com verdadeiro compromisso, porque resultado de justiça interna e equidade externa, uma felicidade tecida em redes de pessoas solidárias, compassivas, íntegras e coerentes, com espaços e tempos de autodeterminação e autonomia, sentindo-se competentes e valorizadas, construtoras de coletivos e não apenas de egoístas individualizações, numa clara expressão de evolução da sabedoria conjunta e de uma gramática mista de hedonismo e sentido. Invoquei locais de trabalho que fossem verdadeiras cartografias de pequenas virtudes diárias, desde o CEO ao segurança, do trabalhador do call center ao educador no infantário.

Nunca concebi uma coexistência que convidasse à uniformidade, ao opressivo e falaciosamente entusiasmado, sempre externamente motivado, e muito menos desejei uma felicidade que fosse descontextualizada.

Soube pela pena de Robert Skidelsky, num artigo deste mês de Abril do The New York Review of Books, que há algum tempo as hospedeiras de bordo de uma companhia de aviação norte-americana tinham ameaçado fazer uma “greve de sorrisos”, em resposta às múltiplas tentativas da entidade patronal para aumentar ao limite a eficácia e rapidez do seu trabalho. E relembrei o taylorismo, as prisões circulares de controlo permanente pensadas por Bentham – os panóticos, ainda hoje identificáveis – e a forma robótica e automatizada como, em consequência hoje, ainda e de novo, concebemos o trabalho.

Faço por isso objecção de consciência a todos os que, ao pegar nas novas modas, como parece estar a tornar-se a da felicidade no trabalho, ao inteligentemente perceberem as vantagens desta nova linguagem, a desvirtualizam e desvitalizam, usando-a para trazer as pessoas de volta à submissão, à intimidação, desta vez com propostas disfarçadas de cordeiro, aumentando a descrença em salvações cada vez mais improváveis.

Se tratamos os trabalhadores como máquinas não fiáveis, das quais desconfiamos, e que são substituíveis e meros objetos de produção; se usamos a intimidação para os levar ao limite, e os privarmos da possibilidade de exercer as suas competências e de se educarem e formarem melhor, enquanto lhes negamos a justa e harmoniosa recompensa, entramos em decomposição social, e namoramos o pior do passado e o mais podre da lógica económica: pessoas e locais frios, calculistas e degradantes. Ficamos perante uma nova variação corporativa da dominação, especialmente arrepiante na semana em que celebramos 40 anos do 25 de Abril, que nos permitiu sonhar sermos juntos capazes de práticas democráticas e de uma cidadania resplandecente, com responsabilidade e vigilância.

(cont.)