29.4.14

Até as crianças percebem que o país empobreceu

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Nenhum grupo etário foi tão afectado pela austeridade como o dos menores de 18 anos. Já há quem diga que o país está a “viver um momento fundador”.

A crise já se infiltrara em todas as conversas. Era Dezembro de 2010. Quis uma turma de 3.º ano de uma escola pública do Porto discutir o que fazer para a enfrentar. Duas crianças propuseram que se debatesse a possibilidade de privilegiar produtos portugueses na hora de ir às compras. No fim, discutiram até formas de reduzir a conta da família com as suas próprias prendas de Natal.

– Disseste algo sobre as prendas de Natal, também? – perguntou o professor a uma criança que acabara de intervir.

– Sim, deveríamos comprar beyblades para ajudar os nossos pais – respondeu, referindo-se a uns brinquedos inspirados numa espécie de pião tradicional japonês, mas em versão tecnológica.

– Sim, e beyblades porque são?…

– Mais baratos! – respondeu, em coro, a turma.

Os excertos daquela assembleia de turma – que constam na dissertação de mestrado em Sociologia da Infância de Natália Machado, citada na comunicação “Infâncias e crise económica em Portugal” preparada por Manuel Sarmento, Gabriela Trevisan e Natália Fernandes, da Universidade do Minho, para o Congresso Português de Sociologia, que decorreu este mês em Évora – mostram como crianças pequenas conseguem compreender os efeitos da crise.

Não admira. Nenhum grupo etário foi tão afectado pela austeridade. Estavam em risco de pobreza 24,4% das crianças em 2012, de acordo com o último Inquérito ao Rendimento e Condições de Vida divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Era de 22,4 a percentagem em 2009, antes dos três programas de estabilidade e crescimento e do memorando de entendimento assinado com a troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.

Ao fazer o doutoramento, Gabriela Trevisan, professora da Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, no Porto, verificou como as crianças identificam reflexos da crise no quotidiano. “No meu dia-a-dia, às vezes, não tenho coisas que quero”, disse-lhe, por exemplo, um miúdo de nove anos, que entrevistou numa escola pública de Braga. “Não tenho cereais e outras coisas e tenho de comer pão.”

As condições de vida das crianças reflectem as das famílias ou das instituições que as acolhem. E essas – têm alertado diversos especialistas – pioraram mais do que a última estatística mostra. Há um interregno de dois anos. E limitações na própria fórmula adoptada pela União Europeia.

Por definição, está em risco de pobreza quem, após as transferências sociais do Estado, vive com menos de 60% do rendimento mediano por adulto equivalente. Ora, quando o empobrecimento é generalizado, baixa o rendimento mediano – parece que pouco ou nada se empobreceu. Veja-se o caso de Portugal: a taxa de risco de pobreza da população residente era de 17,9% em 2009 e de 18,7% em 2012. Só que era 439 euros o rendimento mediano em 2009 e 409 em 2012.

O impacto nos menores
Não será preciso pôr-se o leitor a fazer contas. No ano passado, o INE encarregou-se disso: “Com uma linha de pobreza ancorada em 2009, observa-se o aumento da proporção de pessoas em risco de pobreza: 17,9% em 2009, 19,6% em 2010 e 21,3% em 2011. Evidencia ainda um aumento do risco de pobreza para as/os menores de 18 anos (22,4% em 2009, 23,9% em 2010 e 26,1% em 2011).”

Há outro defeito naquele indicador: nada diz sobre as despesas, um factor fulcral num país marcado pelo sobreendividamento – há 4.522.552 empréstimos concedidos a famílias, segundo o último boletim estatístico do Banco de Portugal, e ganham força os credores informais nas zonas mais desfavorecidas. É cada vez maior o esforço que as famílias fazem para pagar a habitação.

Para que houvesse uma ideia mais aproximada das condições de vida de facto, a União Europeia adoptou a taxa de risco de pobreza e exclusão social, correspondente à percentagem de população que está em risco de pobreza após transferências sociais do Estado ou em privação material severa ou a viver num agregado com muito baixa intensidade de trabalho, isto é, sem trabalho ou com trabalho parcial. Portugal atingia então uma taxa de 25,3% em 2012 – 28,1% entre os menores de 18 anos.

A privação económica, diz Gabriela Trevisan, está associada à exclusão. Se com os adultos isso é claro, com as crianças mais ainda. Sem dinheiro em casa, “deixam de ter acesso a contextos e a estímulos”. E isso tem consequências na forma como se desenvolvem e nas oportunidades que irão ter ao longo da vida.

Ser uma criança pobre, pelos critérios da UNICEF, significa não ter dinheiro para uma alimentação equilibrada ou não poder comprar roupas nem calçado, não ter os mesmos equipamentos que as crianças com quem lida, viver numa casa sobrelotada, não ter espaço para estar tranquila a fazer os deveres, ter poucas hipóteses de brincar num parque não vandalizado ou de participar em actividades extracurriculares como praticar um desporto ou aprender uma língua estrangeira.

Em Março último, o INE actualizou um conjunto de indicadores de privação material: em 2013, 2,2% das crianças com menos de 15 anos pertenciam a famílias incapazes de lhes assegurar pelo menos uma refeição diária de carne ou peixe; 4,3% não podiam trocar roupa usada por nova; 2,4% não tinham dois pares de sapatos de tamanho certo; 5,4% não tinham livros adequados à idade; 7,4% não dispunham de espaço apropriado para estudar; 12,1% não podiam participar em eventos escolares não gratuitos; 24 % não podiam participar numa actividade extracurricular.

Comparando com 2009 até parece que há menos privação. A margem de erro em números muito pequenos é elevada, avisa Manuel Sarmento. Haverá também, diz, efeitos do avanço de políticas públicas lançadas por governos anteriores, como o alargamento do pré-escolar ou da escola a tempo inteiro, e do modo como o actual Governo, os poderes locais e a sociedade civil reagiram à emergência social.

Em 2012, com os directores de escolas e agrupamentos a aparecerem nos órgãos de comunicação social a contar que cada vez lhes chegavam mais crianças em jejum, o Governo criou o programa “Pequeno-almoço na escola” para os alunos no sistema de acção social escolar. Nesse mesmo ano, com a ajuda das autarquias, uma série de cantinas escolares mantiveram-se abertas nos períodos de férias. Essa é, de resto, uma realidade que se tem vindo a estender. Entretanto, multiplicavam-se os bancos de livros escolares usados – 177. E as cantinas sociais – 811, pelo menos.

A lógica da caridade substituiu a lógica dos direitos sociais, têm repetido, em jeito de reprovação, especialistas como o sociólogo Sérgio Aires, director do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, consultor da EAPN em Portugal, uma das vozes mais críticas na redução dos apoios sociais.

As prestações sociais têm sido alvo de sucessivos cortes desde Agosto de 2010, altura em que entraram em vigor as novas condições de acesso às prestações não contributivas. Já no período do resgate, Portugal foi um dos países da União Europeia que mais reduziram a despesa social.

Segundo o relatório "Emprego e Desenvolvimentos Sociais na Europa 2013”, publicado pela Comissão Europeia em Março, a despesa social em bens e serviços, como saúde e educação, caiu 4,3% em 2011 e 5,5% em 2012. Os gastos com transferências sociais sofreram uma queda, mesmo assim, menos acentuada: abaixo dos 2%.

Pode o leitor esmiuçar esses dados com facilidade. Eles são actualizados, com periodicidade, na página electrónica do Instituto de Segurança Social. Em Março deste ano, havia 1.151.218 crianças a receber abono – 1.260.692 em 2010. Nesse mesmo mês, 366.914 pessoas recebiam uma prestação de desemprego (626.682 em 2010), 222.510 eram beneficiários de rendimento social de inserção (526.013 em 2010) e 202.187 de complemento solidário para idosos (246.664 em 2010).

Como o recurso aos apoios sociais não serve para avaliar o modo como a crise está a abalar a vida das crianças e das suas famílias, muitos especialistas recorrem à taxa de desemprego: era 9,5% em 2009, alcançou os 16,3% no final de 2013, está nos 15,3, e seria mais alta não fosse a emigração, que atingiu, em termos numéricos, níveis só comparáveis ao final dos anos 1960, início de 1970.

Com o desemprego parental, as crianças podem ter de abandonar serviços pagos como creche, ATL ou actividades extracurriculares. Ficam, de repente, afastadas dos seus amigos, das suas rotinas diárias, como lembra um relatório na ano passado produzido por diversas entidades nacionais, como o Instituto de Apoio à Criança, a Caritas ou a EAPN-Portugal, para o Comité dos Direitos da Criança da ONU. E perdem oportunidade de adquirir ou de reforçar novos saberes.

Pode parecer, à primeira vista, que é bom as “crianças ficarem com os pais em casa, mas “as pessoas desempregadas não se encontram nas melhores condições psicológicas e emocionais para dedicar tempo de qualidade aos seus filhos”, lê-se no documento. “A instabilidade vivida pelos pais conduz a uma desorientação crescente que pode levar a situações de negligência e mesmo de violência.”

Ansiedade e depressão
Há um número crescente de crianças e jovens com diagnósticos de ansiedade ou mesmo depressão. As consultas de psiquiatria da infância e adolescência no Serviço Nacional de Saúde aumentaram 23% entre 2011 e 2013. E, explicou já Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental, uma situação de crise emocional derivada de desemprego não se resolve com antidepressivos.

As reacções diferem. Não é por acaso, considera Manuel Sarmento, que as comissões de protecção de crianças e jovens reportam maior número de processos referentes a crianças expostas a comportamentos desviantes, violência doméstica, absentismo e abandono escolar, abuso de drogas ilícitas e de álcool.

O aumento do abandono escolar está relacionado com o alargamento da escolaridade obrigatória – de 15 para 18 anos de idade e do 9.º para o 12.º ano –, mas também com uma ruptura que, na opinião de Manuel Sarmento, era impensável há cinco ou seis anos. A par do empobrecimento, há uma escola que não cumpre o que promete – integração laboral.

“A sociedade não está em condições de absorver o trabalho de jovens com formação prolongada, isso é objecto de reflexão e de debate e tem repercussões a nível das expectativas em relação à escola”, explica o especialista em sociologia da infância. “Não vale a pena, não vai agora estar a esforçar-se, pensa-se, sobretudo quando há uma história de insucesso ou de conflito com a escola”, prossegue.

O país está a “viver um momento fundador”, considera Fernando Diogo, da Universidade dos Açores, num número da Rediteia, uma revista de política social editada pela EAPN-Portugal, dedicado à pobreza infantil. “O que se está a passar neste momento terá impacto na forma de estruturação da sociedade nas gerações vindouras.” É que “as consequências de uma experiência negativa e falhada na escolaridade não se resumem à infância”. Afectam “toda a trajectória de vida dos indivíduos”. E não se ficam “pelos próprios indivíduos, dado que se manifestam na escolaridade dos seus filhos” – pais pouco escolarizados terão dificuldade em ajudar os filhos a serem bons alunos.

No já referido relatório no ano passado remetido para o Comité dos Direitos da Criança reclama-se “uma estratégia nacional para enfrentar a pobreza infantil que adopte uma abordagem coordenada e integrada, reunindo os diferentes departamentos envolvidos (Saúde, Educação, Segurança Social, Emprego, Finanças, Economia), definindo objectivos específicos e limitados no tempo”.

Àquele rol de instituições que lidam com esta problemática no terreno parece que “a intensidade e a extensão da pobreza em Portugal” exigem não só medidas paliativas, “que aliviem os problemas imediatos”, mas “sobretudo medidas de carácter estrutural”. Entre estas, merecem particular destaque “as políticas de combate às desigualdades sociais”, o que inclui transferências sociais e promoção de emprego.

O país está mais desigual do que estava antes de tudo começar. Em 2012, o Coeficiente de Gini, que tem em conta toda a distribuição dos rendimentos, era de 34,2%. Em 2009, era de 33,7%.