28.4.14

Marisa Matias. "É preciso desobedecer. Nenhum caminho é fácil"

Por Rita Tavares, in iOnline

Ao fim de três anos de troika, a candidata do BE às eleições europeias diz que "as contas públicas não estão mais seguras"

A cabeça de lista do Bloco de Esquerda às europeias desafia o PS a decidir se é de esquerda, apontando a defesa do Tratado Orçamental como "incompatível" com uma política de esquerda. Pisca o olho ao eleitorado socialista que concorda com este ponto e radicaliza o discurso contra "a Europa da austeridade", a que também chama "Europa alemã".

Qual a eficácia de se referendar um tratado europeu?

Desde logo, trata-se de colocar a decisão onde ela deve ser colocada porque ninguém perguntou às portuguesas e portugueses se queriam mais 20 ou 30 anos de política de austeridade, como a que tivemos nos últimos três anos. Depois, porque se trata de um tratado intergovernamental que passa a ter valor legal semelhante à Constituição e impede qualquer política de esquerda, ou contra-cíclica, nos próximos anos. Estamos a falar de um dos maiores programas ideológicos possível. E a História já nos mostrou que quando foi o referendo ao Tratado Constitucional em França e na Holanda, todas as ameaças foram feitas que sairiam da União Europeia e do euro, e a verdade é que votaram "não" e nada disso aconteceu.

Mas não há aqui uma tentativa de capitalizar o descontentamento, mais do que referendar um tratado?

Este tratado não é europeu, é intergovernamental. Houve países que não o assinaram, como o Reino Unido, que não está numa situação caótica e insustentável e à beira de sair da União Europeia por não ter ratificado o Tratado. Existe a possibilidade de uma saída unilateral. Ao contrário de um tratado europeu, neste podemos decidir desvincularmo-nos.

Diz que o tratado impede uma política de esquerda. O PS acha que não. Ou é o PS que não tem uma política de esquerda?

A liderança do PS e o cabeça-de-lista do PS às europeias, ao defenderem o Tratado Orçamental, defendem também uma política de Bloco Central e não uma política de esquerda. Confundir isso com o povo socialista é abusivo, mas a verdade é que a liderança do PS faz essa escolha. Há aí uma linha divisória. Ao promover um tratado que garante a continuidade da austeridade... sabemos que ela é incompatível com a criação de emprego e com o Estado Social.

Mas é possível haver uma união monetária sem regras conjuntas de disciplina orçamental?

A austeridade é o caminho mais rápido para pôr fim à união monetária e para pôr fora as economias mais frágeis, como a de Portugal. A austeridade não está a promover nenhuma consolidação orçamental, as contas públicas não estão mais seguras neste momento. E isto vê-se quando um programa aplicado em Portugal, supostamente numa situação de insustentabilidade das contas públicas e com uma dívida de 90%, chega ao fim com a dívida na ordem dos 130%.

O tratado estabelece metas, não medidas específicas.

Mas não tem outra forma, trabalha-se sobretudo do lado da despesa. E à dívida de 60% e ao défice de 3% junta-se o défice estrutural de 0,5%. Ainda por cima calculado de forma absolutamente discricionária. O défice estrutural é o défice liberto dos factores conjunturais. Para este governo, o desemprego é um factor conjuntural e não um problema estrutural. É uma espécie de efeito secundário que não mede o fracasso. Há alguma credibilidade num cálculo de um défice que coloca um elemento tão estruturante da sociedade portuguesa de lado?

O que acontecia se Portugal rasgasse o tratado?

Desde logo permite que haja políticas e medidas alternativas.

Mas não existiriam consequências negativas?

As sanções já existem e fora do Tratado Orçamental. Foram aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu e são duplas, relativas ao mesmo crime. A lógica do castigo e da Europa das formiguinhas, que é a do Norte e do Centro, e a Europa das cigarras, dos preguiçosos, que teoricamente é a do Sul, já está inscrita.

Portugal não perdia nada?

Não, este é que é o caminho para perder tudo, para pôr em causa o próprio país. Ganhava margem de manobra e fazia um caminho que tem de ser feito. O projecto europeu, como está a ser conduzido, está a desmantelar-se e não se resolve apenas numa lógica de bons alunos, de submissão e capitulação de todos os governos aos interesses alemães que estão a determinar a orientação política e económica na Europa. Portugal ganhava uma posição de força e neste momento é necessário haver posições de força que desobedeçam a esta Europa de austeridade, a esta Europa alemã.

Mas lá fora Portugal tem capacidade para impor essa posição?

Claro que tem. Há muitas decisões que têm de ser tomadas por unanimidade e todas elas nunca tiveram sequer uma abstenção violenta por parte do governo português, tiveram sempre um voto favorável. As medidas que nos colocam numa situação mais frágil têm tido sempre o apoio do governo português. No caso das sanções até acho que o governo tinha esperança que fosse o parlamento europeu a rejeitar, mas esqueceu-se de avisar os seus deputados a votarem contra isso.

A saída do euro é defensável nesta fase?

Este caminho que estamos a traçar é o mais rápido para pôr Portugal fora do euro.

Estou a falar de uma saída por vontade própria. Devia acontecer?

Não.

Já houve bloquistas que o defenderam.

O que precisávamos era de uma refundação profunda para nos mantermos no euro. Nada de substancial foi mudado, continuamos a ter uma moeda que é muito sobrevalorizada, o que fragiliza mais as economias mais frágeis. Continuamos a não ter nenhuma contrapartida para a moeda comum, não existe orçamento comunitário. E temos um BCE totalmente obcecado pela inflação, pelo controlo dos preços, mas não consegue sequer ter objectivos, como a reserva federal norte-americana, de crescimento. Nada foi feito para reforçar a zona euro. Se a União Europeia continuar este caminho de cegueira e se a dada altura, neste trajecto, for dado a escolher entre a manutenção do euro ou a defesa do Estado social, nessa altura devemos escolher o Estado social.

Em que contexto é que pode surgir esse dilema?

Se continuarmos este caminho, a dada altura será assim. A União Europeia não foi um projecto que surgiu para destruir todos os direitos que foram conquistados e adquiridos em cada um dos países. Se continuarmos neste caminho insano e insustentável, a dada altura essa questão tem de se colocar.

Qual o timing para a realização do referendo que o BE defende?

O mais lógico é que seja a seguir às eleições. Mas é uma questão urgente obviamente. Quanto mais depressa se conseguir levar o Tratado Orçamental a referendo, melhor. É tempo que se ganha.

O país deve ter como postura não pagar a dívida?

Tem de renegociá-la e isso tem de implicar também os montantes. Não há outra forma. Esta dívida é insustentável e temos de fazer uma escolha clara entre pagar a dívida e o país. Ou pagamos os juros da dívida ou criamos emprego. Não há nenhuma compatibilidade aqui. Uma fatia muito grande da despesa pública neste momento é com os juros da dívida e ela está a aumentar. Não é nenhuma afronta que se está a fazer. Quem provocou esta crise foram os mercados financeiros e, até agora, quem a está a pagar são os povos destes países e não os mercados. Pô-los a pagar uma parte da crise que provocaram é uma questão de mera justiça.

A ideia da insustentabilidade não é líquida. O Presidente da República acha que a dívida é sustentável.

Não há um único país na zona euro, nem mesmo a Alemanha, que tenha conseguido ciclos de dois ou três anos de níveis de crescimento e de saldo primário como aqueles que o Presidente da República apresenta para Portugal nos próximos 20 ou 30 anos. O que se está a pedir para Portugal, que é um país que ainda está em recessão, nenhum país na zona euro conseguiu fazer, nem mesmo as economias mais sólidas. Como é que se pode pedir uma coisa que é impossível e que o próprio Presidente sabe que é impossível? Há um ciclo vicioso: o desemprego provoca mais desequilíbrio nas contas públicas, quando chega aí voltamos à austeridade que provoca mais recessão, mais desemprego, mais desequilíbrio nas contas públicas. Isto não é um caminho que se espera que venha a gerar crescimento no futuro. É um caminho de afundamento.

O Bloco quer rasgar o Tratado, reestruturar a dívida, não pagando parte, enfrentar as instituições europeias. É pior ser um bom aluno do que o rebelde da Europa?

Interessa saber: rebelde em relação a quem e a quê? E essa rebeldia, essa desobediência, seria ao que tem sido a dominação dos mercados financeiros sobre a política. A política foi raptada pelos mercados financeiros e os seus interesses e é preciso resgatá-la. Esses interesses instalados representam uma percentagem muito pequena da população e põem em causas condições de vida dignas da esmagadora maioria da população. É preciso desobedecer, nenhum caminho é fácil. Esta linha que traçamos obriga a entrar em confronto com as instituições europeias, mas é mesmo a única saída que nós temos.

O governo deve tirar consequências de uma eventual derrota nas europeias?

Há uma interligação muito grande e cada vez maior entre as políticas europeias e as escolhas tomadas a nível nacional. Nunca como nos últimos anos se ouviu falar tanto na União Europeia. Quando questionamos o governo sobre as políticas de austeridade, o governo responde com as imposições europeias e da troika. Quando no parlamento europeu fazemos audições com os responsáveis da troika, respondem-nos que quem escolheu as medidas foi o governo português. Há aqui uma espécie de passa-culpas. Obviamente que há co-responsabilização de ambas as partes.

Mas o governo deve demitir-se?

Veremos o resultado, mas espero que estas eleições possam ser o começo de uma inversão de rumo que passe por pôr este governo fora.

E qual o objectivo para o BE?

Queremos manter a representação no parlamento europeu. Se o BE conseguir eleger os dois eurodeputados, é menos um que a coligação de direita elege. O segundo deputado do BE substituiria o segundo deputado do CDS na coligação. São esses dois lugares que estão em disputa, segundo as sondagens.

Está preparada para a eventualidade de ficar sozinha no PE?

Temos de estar preparados para tudo. Aliás, não me passariam pela cabeça muitas das coisas que se passaram nos dois últimos anos, em matéria de políticas que foram definidas em Portugal e a nível europeu.

Apesar da contestação social, o BE não descola e volta a ter números baixos nas mais recentes sondagens. Porquê?

Houve uma batalha do senso comum que foi ganha pela direita. A ideia de que vivemos acima das nossas possibilidades, sendo completamente falsa, criou raízes. Essa batalha foi ganha pela direita e um dos erros do BE foi ter subestimado a forma como isso cavou fundo na consciência colectiva.

Não há uma ponta de verdade nessa afirmação que atravessou boa parte do discurso político nos últimos anos?

Há uma dimensão que não podemos ignorar: durante décadas praticou-se em Portugal uma política de baixos salários que foi compensada com uma facilitação do acesso ao crédito, mas com todo o risco colocado do lado das famílias e não do sector da banca. Mas esta crise foi provocada pelo sistema financeiro, teve a ver com especulação. Como todas as mentiras têm sempre um fundo de verdade, as pessoas acham isso. Mas a verdade é que isso é mentira.

O que a leva a crer que hoje haja essa percepção?

As pessoas já perceberam que ao longo destes três anos o único resgate que houve foi da banca e não do país. Há cada vez mais pobres, a classe média está a desaparecer e, por outro lado, surgiram mais de 80 ultramultimilionários em Portugal só no último ano. A troika para Portugal foi melhor do que o euromilhões, porque criou muito mais excêntricos. As pessoas hoje sabem e sentem isso. Ao longo dos últimos três anos, 1560 mil milhões de euros foram injectados directamente na banca, dinheiro dos contribuintes, sem nenhuma condição. Não há imagem mais injusta e brutal na resposta a esta crise do que a liquidez ilimitada para a banca, ao mesmo tempo que se aperta mais nos salários, nas condições de vida e nos direitos das pessoas.

Portugal não perdia nada?

Não, este é que é o caminho para perder tudo, para pôr em causa o próprio país. Ganhava margem de manobra e fazia um caminho que tem de ser feito.

A dada altura temeu-se que uma ruptura no sistema financeiro tivesse consequências ainda mais nefastas.

Os bancos são provavelmente as únicas instituições que não podem ir à falência. E se estiver à beira da falência, nacionalizam-se os prejuízos. As pessoas podem passar fome, as pequenas e médias empresas podem ir à falência, uma sociedade inteira pode ruir, mas um banco não pode ir à falência. Mesmo injectando todo este dinheiro não se impediu o risco sistémico. Estamos no meio da maior crise estrutural da zona euro, à beira de colapsar, e toda a gente continua a dizer que estamos melhor. Hoje as pessoas têm a percepção de que se houve algum resgate não foi dos países, mas do sistema financeiro.

E se essa percepção não se traduzir em votos, o BE tira consequências disso?

Veremos. Toda a gente deve tirar consequências, em democracia está tudo em aberto.

Mas não vos coloca em causa?

Defendemos um projecto de transformação social e política profunda, que está sujeito ao escrutínio democrático. São dois projectos que estão em cima da mesa: continuar com a linha de austeridade ou romper. É isso que vai estar em causa no debate político. Mas nenhum projecto se pode justificar a si próprio apenas por fins eleitoralistas ou de votos. Não é só isso que justifica um projecto político.

Porquê a resistência do BE a coligações? Ainda agora rejeitaram uma plataforma de esquerda para as europeias.

Não, o Bloco fez uma contra-proposta.

Que excluía o Livre.

Não. Definia um conjunto de linhas políticas de entendimento que fosse subscrito pelo Manifesto 3D, que propôs o acordo, e à qual se juntaria quem concordasse com elas. O Livre ainda nem sequer existia como partido.

Mas também era um interlocutor do Manifesto 3D.

Mas naquele momento o que existia era o 3D, que fez uma proposta ao BE, que lhe fez uma contra-proposta.

Então era possível estarem na mesma plataforma que o Livre?

Quem teria legitimidade para dizer quem aceita ou não quem se revê naquelas linhas?

A verdade é que mais uma vez falhou a união da esquerda.

A lista do BE mostra que não há nenhuma dificuldade. Mais de metade das pessoas são independentes. Se o BE fosse essa sociedade hermética duvido que estas pessoas estivessem disponíveis para se juntarem a ela.

Unir a esquerda é um objectivo importante para as próximas legislativas?

É fundamental. E não acho que o processo de convergência da esquerda tenha terminado com as europeias. Todos os esforços de convergência à esquerda devem ser continuados.

O afastamento entre as esquerdas não abre caminho ao Bloco Central?

Há uma enorme expectativa por parte da população que as esquerdas se unam.

E isso inclui o PS?

Depende, o PS tem de decidir se quer ser um partido de esquerda ou não. No PS há muita gente que é obviamente de esquerda.

Está a piscar o olho a esse eleitorado...

Não, não estou. Há pessoas que não se revêem nas posições desta direcção do PS. Alfredo Barroso, por exemplo, apoia a lista do BE por causa do apoio do PS ao Tratado Orçamental. Há deputados do PS que não têm alinhado com as decisões da liderança. Há uma incompatibilidade entre o Tratado e uma política de esquerda.

O próximo governo tem de ter maioria absoluta?

Em democracia tudo é possível. Obviamente as pressões são grandes, mas a democracia é tão mais rica quanto mais plural for. Não é reduzindo-se a escolha ou espaço de governação que ela responde melhor aos problemas das pessoas. É possível um governo sem maioria. Reconheço que há pressões grandes para reduzir o pluralismo, mas é isso que devemos combater. Não acredito que não haja uma solução democrática, para um país, que não passe pela maioria absoluta.

Que relação tem com Rui Tavares?

Cordial.

Houve distanciamento depois da ruptura no Parlamento Europeu?

É inevitável. Ele escolheu um outro partido europeu. Deixámos de estar no mesmo grupo parlamentar, é inevitável o afastamento.

Compreendeu a saída dele do grupo da Esquerda Unitária para os Verdes?

Compreendi [silêncio]... Ou melhor, aceito, mas não compreendi. Percebo com mais clareza agora porque há um projecto político claramente diferente. Desde logo quanto ao Tratado Orçamental, em que a posição do Livre é deixá-lo morrer de morte natural. Só que isso implica mais anos de austeridade.

Acredita no futuro do Livre? Há espaço?

Há sempre. Não sei fazer futurologia. Havendo muitos pontos de convergência não acredito numa linha salvífica que seja de esquerda e federalista neste momento. Já vivemos na pele o que é uma Europa sob uma imposição dos interesses de um país em relação a todos os outros.

A esquerda e o federalismo são incompatíveis?

Neste momento estamos a experienciar o que seria uma linha federalista sem democracia, ainda que o modelo inscrito nos tratados não seja completamente federalista. Mas há muitas convergências. O Rui Tavares não é o nosso inimigo. Temos projectos políticos diferentes.

E quem é o inimigo?

As forças que estão de cócoras, de joelhos, perante os mercados financeiros.

Aterrou na política em 2009. Ganhou o vício?

Não, isto é uma missão, uma comissão de serviço, não é um vício.

Mas não ganhou gosto.

Empenhei-me profundamente e acho que é muito desafiante. E há esperança de que alguma coisa mude, há uma maioria social que não tem correspondência com a maioria política que a governa e espero que esse gap vá sendo reduzido.

Entende-se melhor com a nova direcção do BE do que com a anterior?

Entendo-me bem com as duas. Há diferenças, mas a lógica de funcionamento do BE foi sempre muito colegial e isso manteve-se.