1.4.14

"É impossível o SNS dar tudo a todos se não um dia tenho uma leucemia e morro como um cão em casa"

Por Marta F. Reis, in iOnline




António Ferreira, administrador do Hospital de São João, diz que SNS está falido e precisa de uma reforma maior que a que está em curso




O país mergulhou em profunda crise, o SNS está falido, a ADSE é insustentável. É o que diz a capa do livro com que o administrador do Hospital de São João, no Porto, pretende alertar para a necessidade de uma reforma profunda do sistema de saúde. António Ferreira admite que é mais fácil escrever do que executar, mas avisa que o perigo de não fazer nada é não haver SNS para as gerações futuras.

Diz no livro que o SNS está falido, mesmo que as contas digam o contrário. As contas estão erradas?

Não são as contas de agora, são as contas dos últimos anos. O problema é que há muitos anos que a despesa do SNS, quer a registada, quer a que transita e fica assim mais ou menos escondida, não é coberta pelo Orçamento. Não vejo outra definição mais perfeita que falência. Independentemente de ter havido desde 2002 quatro orçamentos rectificativos para a saúde, empréstimos da Direcção-Geral do Tesouro para regularizar dívidas, a diferença entre o deve e o haver continua a ser favorável ao défice. Não tenho dúvidas que o SNS está falido.

Mas está mais sustentável ou isso também é uma ideia errada?

Perante uma situação de emergência, houve medidas que reduziram a despesa. Houve melhorias quer na despesa com medicamentos quer nos recursos humanos, com medidas de diminuição dos salários. Isso obviamente ajuda a diminuir o buraco, a dar mais sustentabilidade ao sistema, mas o problema da sustentabilidade do SNS não é esse.

Qual é?

Todos os indicadores mostram que quer pelo custo da inovação terapêutica quer pela inversão demográfica a despesa vai continuar a crescer. Tivemos medidas para conter a hemorragia, mas é preciso alterar e reformar o sistema para perceber o que gastamos e em quê e se há dinheiro. Caso contrário, não vamos deixar esta coisa maravilhosa que é o SNS às gerações que nos sucedem. Acaba.

O Memorando previa uma reforma hospitalar como peça dessa sustentabilidade. Aconteceu alguma coisa?

Tem havido algumas mudanças mas num país em que a entidade gestora da saúde decide encerrar uma maternidade e essa decisão é impedida por uma providência cautelar estamos a ver qual é capacidade de gestão dos órgãos legitimados pelas normas democráticas.

Refere-se à MAC, mas o calendário da reforma sofreu várias alterações. Não faltou também assertividade?

Pensou-se uma reforma artificial quando o que proponho, que passaria pela alteração do financiamento das unidades, ajudaria a fazer a reforma natural.

Que proposta faz?

O dinheiro disponível para a saúde, decidido pelo governo e pelas maiorias parlamentares, deve ser distribuído pelo país de maneira equitativa em função da capitação, o que hoje não é feito. E em vez de termos unidades financiadas com base num histórico, teríamos uma entidade gestora do doente, que compra os serviços necessários aos hospitais que os fornecem ao mais baixo custo e com a qualidade que pretendem. Isto responsabilizaria o gestor do doente pelos cuidados que pede, em vez do que acontece hoje, em que os médicos de família soltam os doentes para os hospitais.

Evitava que um doente esperasse dois anos por uma colonoscopia sem que se desse por isso?

Por exemplo. E passava a pôr os hospitais a andar atrás dos clientes em vez do pensamento de hoje: que chatice, vem aí mais um doente. Se não os tiverem, não têm financiamento. E não havendo procura não é preciso ter a instituição aberta. Claro que isto teria de ser regulamentado para garantir níveis de acesso justos em todo o país.

Seria preciso na mesma haver decisões, o que parece ser o mais difícil.

É difícil fazer escolhas porque vivemos mais numa demagogia que numa democracia. Enquanto não formos capazes de discutir seriamente e perceber que não adianta andar atrás de quimeras e pensar que o dinheiro nasce nas árvores não vamos lá. Temos de discutir mas encerrada a discussão é preciso agir, e as acções têm custos. Têm de ser implementadas por estadistas, que não podem estar preocupados com ganhar eleições.

Havia esperança que Paulo Macedo imprimisse esse espírito reformista. Desiludiu-o?

Tenho respeito pessoal pelo Dr. Paulo Macedo. No contexto em que vivemos, com as imposições da troika e medidas traçadas mas também com a perturbação social, que faz com que qualquer abano no SNS agrave tremendamente a situação por ser um pilar de coesão social, acredito que não é fácil. Isto para dizer que tenho um enorme respeito pela honestidade intelectual do ministro, que tem feito um trabalho positivo, mas acho que há muitas reformas por fazer e que não foram feitas.

Como é que começava?

Primeiro mudava o sistema de financiamento dos hospitais, sendo-lhes comprados efectivamente os serviços que prestam. Nesta transição iria perceber-se que alguns serviços são desnecessários por não terem procura. Num primeiro momento seria o Estado a comprar os serviços mas depois passava a ser o médico de família a ter um montante per capita e a contratar os serviços de que os utentes precisam. Depois de isto estar a funcionar no sistema público, os médicos poderiam passar a contratar os mesmos serviços ao sector privado se oferecesse o preço e a qualidade que procuram. E eventualmente outros financiadores de saúde, como seguros privados, poderiam contratar ao sistema público e aos hospitais cuidados para os seus beneficiários.

Mas quem decidia o que fechava?

A gestão das unidades. Se tem um serviço que só tem duas pessoas para operar não faz sentido investir naquela diferenciação ao ponto de ter a qualidade equiparável aos que recebem cem. Centrei- -me no financiamento mas esta reforma implicava novos modelos de gestão nas unidades, modificação nas leis laborais que permitissem despedir e contratar em função dos interesses da instituição, avaliar e compensar o mérito. Além de medidas definidas em termos nacionais sobre medicamentos e dispositivos médicos. Coisas como o que podemos gastar por cada ano a mais com qualidade de vida que determinada intervenção garanta.

A discussão que ninguém quer ter...

Mas há países que já a têm.

Sendo médico, não lhe faz confusão?

Eu estou preocupado com o facto de estar iminente, não digo amanhã mas numa janela relativamente curta, querer ter um SNS universal financiado pelos impostos para garantir tratamento universal gratuito e não ter. Se nós não assumirmos esta discussão, o que vamos fazer é destruir a vida humana. Não é possível continuarmos a basear os nossos modelos assistenciais no princípio de que podemos dar tudo a todos, que há dinheiro para dar tudo a todos. Não há.

Consegue dizer isso a um doente?

Como é que os belgas ou os ingleses fazem? Para não falar dos americanos...

Podemos querer um princípio diferente...

Tem de se ter dinheiro.

Mas alguma vez teve essa conversa com um doente?

Cá não há conversa. Conheço uma portuguesa que estava na Bélgica e teve cancro da mama. Foi aos serviços de saúde, que lhe disseram "este é o nosso protocolo de tratamento, existe um medicamento mas não é financiado. Se quiser vá a Portugal que lá é". O PIB belga é maior que o nosso e o dinheiro na saúde também, mas já perceberam que têm de fazer a gestão do que têm para garantir o possível a todos. Se não o fizermos, quando eu tiver uma leucemia vou morrer como um cão em casa porque não há dinheiro para me receberem no hospital.

Mas quando vemos fraude e desperdício é difícil aceitar esse racionamento.

Há esse contraponto mas também há falácias: dou-lhe um exemplo de um medicamento que ai de quem dissesse que não havia dinheiro para comprar há uns anos: o interferão ou a interleucina para tratar o cancro do rim. Quando se analisam os resultados, induziu mais sofrimento, não teve efeito na qualidade de vida ou sobrevivência e correspondeu a milhões gastos nos sistemas de saúde de todo o mundo. É preciso debater estas questões mas com toda a informação. Às vezes hesita- -se em fazer escolhas em torno de coisas que nem sequer são sólidas porque não existe o escrutínio necessário dos ensaios clínicos. Isto não quer dizer que não existam medicamentos que são uma verdadeira inovação e ganhos fantásticos para a sociedade.

E já se está a cortar nesses?

O problema é que não se está a cortar nos outros para poder ter esses. É tudo tratado da mesma forma, é sempre um crime não comprar inovação. Temos de separar o trigo de joio.

Outra variável na sua reforma são os recursos humanos, que divide entre quem quer e é capaz de fazer o trabalho e quem não quer e não é. Há muitas pessoas desta última categoria no seu hospital?

Algumas, e não faz sentido mantê-las, mas não podem ser despedidas.

Médicos?

Não distingo profissionais de saúde, existem em toda as áreas. Da mesma forma que acho que parte da solução era não só leis laborais mais flexíveis mas impor a exclusividade de todos os profissionais.

Como é que pede exclusividade a um auxiliar que ganha 600 euros?

Reduzindo o número de auxiliares e gastando o mesmo dinheiro pagando mais aos menos que podem e querem trabalhar, associando parte do vencimento à produtividade. Deixem-me fazer isto em São João que eu faço.

Quantos profissionais despedia? Disse uma vez que tinha 30 cirurgiões que nunca tinham ido ao bloco.

Se lhe disser isso vou passar uma semana a ser achincalhado. Garanto que há margem para reduzir.

Critica o actual modelo de subsistemas. Esperava que a ADSE tivesse acabado?

Se a ADSE for financiada só pelos descontos dos seus beneficiários, em que me incluo, encantado. O que não aceito é que o Estado, através do Orçamento do Estado ou das entidades empregadoras dos beneficiários, todas públicas, continue a pôr impostos daqueles que não beneficiam no subsistema e assim a gastar dinheiro a financiar o sistema privado.

Discorda então desta receita de auto- -sustentabilidade, vetada pelo Presidente da República mas que o governo já disse que quer manter?

Não é justo. O problema é que para ser auto-sustentável e justo os descontos dos beneficiários teriam de aumentar ainda mais.

Como são os seus dias em São João?

Estamos a tentar gerir um dos maiores hospitais portugueses e conseguimos fazer isto mantendo o equilíbrio económico. Enquanto me for possível gerir o hospital sem comprometer a qualidade dos cuidados e o acesso a eles, assumo. Quando não for, saio.

Mas a sua gestão tem recebido críticas, por exemplo de restrição na medicação.

Pois, eu sei. Mas para garantir cuidados e acesso se há três interferões iguais com a mesma medicação, tenho de comprar o mais barato e não os três.

Até ao fim de Março os hospitais deviam ter planos estratégicos para os próximos três anos, a prometida reforma hospitalar. O que vai mudar em São João?

Estamos constantemente a fazer mudanças com base nos inputs que nos chegam. Temos passado consultas para o pólo de Valongo nas áreas em que há mais procura lá. É errado pensar que num plano está tudo o que vai acontecer em três anos. Gerir bem é irmo-nos adaptando.

Para a reforma de fundo quanto tempo há?

Tem de ir já para o terreno para ter efeito nos próximos dez anos. Mas não chega fazer mudanças no sistema, temos de pensar em reduzir a carga de doença que é evitável. Quando comecei a trabalhar cama sim cama não havia pessoas com febre reumática. Saímos desse patamar, reduzimos a tuberculose ou a mortalidade infantil, porque houve uma mudança societal. Com o cancro e com as doenças hoje mais incidentes temos a mesma necessidade de mudar os comportamentos que são prejudiciais, a má alimentação ou o tabaco. Isso é que é prevenção, mais que gastar em rastreios.