4.6.20

Cem mil euros para socorrer minorias. “Não tinha nem batatas!”

Ana Cristina Pereira (Texto) e Paulo Pimenta (Fotos), in Público on-line

Fundação Calouste Gulbenkian e Alto Comissariado para as Migrações criaram fundo e repartiram-no por 42 associações que devem fazer chegar a imigrantes, refugiados e portugueses de etnia cigana bens essenciais como alimentos, medicamentos ou máscaras.

Impossibilitado de andar por aí, a vender de porta em porta, Gabriel Soares viu-se tão aflito para pôr comida na mesa que pediu à filha que escrevesse uma SMS ao presidente da Câmara de Ovar, Salvador Malheiro. Estava fechado dentro de casa, com a mulher e os três filhos menores e uma insuficiência respiratória, assustadíssimo com a possibilidade de contrair o novo coronavírus. “Não tinha nem batatas!”

A ajuda foi chegando. A autarquia deu-lhe um apoio de emergência, como a outras perto de duas mil famílias carenciadas. A Protecção Civil distribuiu máscaras descartáveis. Vieram as prestações sociais. E esta terça-feira, um apoio pontual: uma máscara e um vale de 20 euros em compras entregue pelo vice-presidente da Associação Letras Nómadas, Bruno Gonçalves.

Como estão a enfrentar a epidemia comunidades ciganas em acampamentos sem água corrente?

A Fundação Calouste Gulbenkian criou um fundo de 5,75 milhões de euros, a distribuir pelas áreas da saúde, da ciência, da educação, da cultura e da sociedade civil. Esta última engloba um reforço da capacidade de resposta dos bancos alimentares e uma ajuda às instituições de solidariedade que trabalham com idosos (em parceria com o Instituto de Segurança Social) e às associações que trabalham com ciganos, imigrantes e refugiados - em parceria com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Esta resulta de um pedido do ACM, que fez um levantamento de carências junto das associações. Uma verba de cem mil euros (75 da Gulbenkian e 25 do ACM) está a ser repartida por 42 entidades de Norte a Sul do país, que esta semana começaram a fazer chegar alguns bens essenciais a mais de 17 mil pessoas.

“Isto é para situações de emergência”, resume Pedro Calado, antigo alto comissário, agora no conselho de administração Gulbenkian. “Não temos atravessado muitas situações semelhantes a esta. Talvez a situação dos fogos tenha sido a mais próxima.”

“Acho muito nobre da parte destas entidades”, comenta Bruno Gonçalves. Mal o país se fechou, a Letras Nómadas e outras organizações ciganas trataram de angariar fundos para socorrer famílias, de repente, privadas dos ganhos da venda ambulante e outros trabalhos precários. Bateram nas portas de várias. “Os contactos foram sempre pautados por desconfiança e preconceito. Há entidades que têm o monopólio do combate à fome, mas não chegam a todos os grupos.”

Aquela associação comprometeu-se a fazer chegar uma pequena ajuda a famílias ciganas de Viseu, Ovar, Figueira da Foz, Leiria e Moura. E começou a fazê-lo esta terça-feira, apoiada por facilitadores locais, como o pastor Jaime, da Igreja Evangélica Cristo Para Todos.

Uma máscara de pano e um vale de compras
No Bairro da Marinha, o pastor ia dizendo os nomes que escrevera a caneta azul num caderno de linhas. E essa pessoa ia receber uma máscara de pano, um vale de compras no valor de 20 euros ou um saco de plástico recheado de alimentos não perecíveis e um frango. Outras máscaras hão-de chegar.

Tudo começou em 1984, com um casal e os seus filhos. A autarquia pediu-lhes que saíssem das barracas que tinham levantado em São João de Ovar, para que lá se fizesse um centro paroquial. E construiu uma habitação para o casal e outra para cada um dos oito filhos, térrea, quase sem divisões por dentro. Os filhos tiveram filhos. E para cada nova família que se foi formando se foi construindo uma barraca. Até haver 31 – degradadas, sobrelotadas, com cobertura de amianto.

Tudo parece mais ameaçador numa pandemia. Ninguém expressa tanto receio como Gabriel Soares. “Tive gripe A. Faço oxigénio há 11 anos. Durmo ligado a uma máquina. Não tenho defesas. Os meus filhos não saíam de casa! Nem a casa do meu pai iam, nem a casa de meus irmãos, nada! Fecho-os todos aqui. Banho todos os dias. Não queria aqui ninguém. Se eu apanhasse o vírus, para mim era uma bomba. Só agora é que estamos a sair. A minha mãe teve um problema e abri. Mesmo assim tenho medo. Tenho muito medo. Morreu muita gente.”

Ovar chegou a ter um cerco sanitário. Contou 716 pessoas infectadas. Morreram 40. E moram ali duas das pessoas que desenvolveram a doença e se livraram dela. Uma cumpriu a ordem de isolamento em casa, mas outra teve de ir para a pousada de juventude, já que se ali se mantivesse teria de partilhar casa de banho.

Salvador Malheiro saúda o seu “comportamento exemplar”. E lembra que a câmara está a terminar um projecto de requalificação para ali. Algumas famílias deverão ser transferidas para um prédio de 50 fogos que comprou inacabado e tem de acabar. “Não é só para as nossas famílias de etnia cigana, mas algumas terão essa possibilidade. Vamos dar primazia às que apresentam maiores carências.” Até lá, é aguentar.

Não será fácil, como diz Armando Soares. “Nós aqui, é vender. No meu caso, toalhas de mesas, cortinados. Esse poucochinho dava. Com esta pandemia, foi gastar o ganho que tínhamos. Acabou. Foi tudo. ‘Ó pai dá-me isto.’ ‘Ó pai, dá-me aquilo.’ São filhos. O que é que eu ia dizer?” Não é de prever que tudo melhore de repente, com a abertura dos mercados e das feiras. A clientela, se já era pobre antes da pandemia, mais pobre estará.

A inquietação também ressoa noutro núcleo, ali perto, em Válega. E não se esgota no negócio morto. “O meu filho de 15 anda no 8.º ano e o de 9 anos no 4º. Andam a fazer umas fichas em casa, mas é uma coisa básica”, começa por dizer Nélson Montoia. Assistem à telescola, mas falham as aulas síncronas. “Eles querem, mas não têm computador.” O mesmo acontece com os filhos do primo: uma rapariga de 11 anos, no 5.º ano, e um rapaz de 16, no 9.º. “Na escola é outra coisa. Eles têm aquela atenção dos professores. Aqui… A gente quer ajudar um filho... A gente tenta, a gente tenta ensinar pelos livros, mas é complicado. Há lá matérias que não sei. Umas nunca aprendi e outras já esqueci.” Não foi além do 6.º ano.

Bruno Gonçalves confiava ouvir lamentos semelhantes à medida que fosse descendo para Sul. Seleccionaram 370 famílias, decididos a entregar vales de 30 euros a cada uma. Os pedidos são tantos que, para chegar a mais gente, diminuíram o valor para 20 ou 25 euros.

A comunicação de aumento de pedidos é feita por outras organizações que apoiam estes grupos – mais vulneráveis a qualquer crise económica, mais afectados pela pobreza. Na Associação de Promotores de Saúde Ambiente e Desenvolvimento Sócio Cultural, que trabalha entre Lisboa e Loures, por exemplo, os pedidos dispararam. “Temos um acordo com o Banco Alimentar para 59 famílias. Terça-feira, fui actualizar a lista. Temos 138”, diz o presidente, Cristiano Pinto. Há quem não consiga comprar medicamentos. Alguns vieram de São Tomé e Príncipe ou da Guiné-Bissau de propósito para se tratarem. “Com este apoio que recebemos, vamos poder dar um apoio directo em medicamentos.”

A Associação Lusofonia Cultura e Cidadania, que já prestava apoio alimentar a imigrantes de diversas partes do mundo e a portugueses de etnia cigana na área de Lisboa, também sentiu uma espécie de explosão. “Num fim-de-semana de Abril, recebemos 198 pedidos”, salienta a coordenadora, Nilzete Pacheco. São pessoas que perderam o trabalho, estão ao layoff ou que viram diminuir o número de horas de trabalho. Na véspera, ligara-lhe uma pessoa numa grande aflição. “Não tinha pasta de dentes. Não tinha detergente de louça. Não tinha detergente de roupa. Ela dizia: ‘Não sei o que faço. Não tenho dinheiro nem para comparar sabão azul e branco.’” Com a verba agora recebida, podia ajudar.