Catia Mateus, in Expresso
A obrigatoriedade de teletrabalho terminou e a possibilidade de o requerer unilateralmente, e sem acordo com a empresa, também. Governo sugere agora um modelo de trabalho misto, ora presencial ora remoto. Especialistas em Direito do Trabalho explicam as regras e antecipam alguns problemas
Desde 1 de junho que o regime excecional que impunha a obrigatoriedade do teletrabalho, nas funções em que ele era possível, terminou. Com a entrada na terceira fase de desconfinamento, o Governo adotou novas regras a pensar num regresso progressivo dos trabalhadores às empresas. O teletrabalho continua a ser possível para quem o queira manter, e são muitas as empresas e trabalhadores que o querem fazer, mas as regras a aplicar são novamente as previstas no Código do Trabalho.
Quer isto dizer que a menos que se enquadre num dos três grupos de profissionais para os quais o Governo decidiu ainda manter o teletrabalho como obrigatório, e por decisão unilateral do trabalhador ou da empresa – doentes crónicos ou imunodeprimidos, pessoas com deficiência (igual ou superior a 60%) e pais de crianças com menos de 12 anos (ou mais de 12 se tiverem doença crónica ou deficiência) em ensino à distância e durante o período letivo – , só poderá continuar a trabalhar a partir de casa com a aprovação do empregador e mediante um contrato escrito.
E parecendo um mero detalhe, esta mudança não só introduz algumas alterações de fundo no que foi prática nos últimos meses, como coloca vários desafios legais. Três especialistas em Direito do Trabalho ouvidos pelo Expresso – Américo Oliveira Fragoso (Vieira de Almeida), Simão Sant’Ana (Abreu Advogados) e Pedro da Quitéria Faria (Antas da Cunha) – explicam o que muda a partir de agora e onde podem surgir problemas.
1. Que trabalhadores podem exercer funções em teletrabalho?
O enquadramento jurídico em vigor - Código do Trabalho (CT) – prevê que o regime de teletrabalho possa ser exercido, mediante acordo com a entidade empregadora e formalização de contrato escrito, por todos aqueles que, independentemente do vínculo contratual, desempenhem funções compatíveis com trabalho remoto. Antes mesmo do Executivo declarado o teletrabalho como obrigatório e sem necessidade de acordo entre as partes (empregador e trabalhador), como medida de contenção à pandemia da covid-19, o CT já previa duas exceções em que este acordo não era necessário: para as vítimas de violência doméstica e os pais de crianças até aos três anos. Nos últimos dois meses e até esta segunda-feira, o Governo declarou a obrigatoriedade de teletrabalho para todos os trabalhadores com funções compatíveis (embora continue por clarificar formalmente quais as funções que o são) e alargou a possibilidade de decisão unilateral a todos os trabalhadores. Desde 1 de junho que voltou a vigorar a norma do CT, mantendo-se a obrigatoriedade do teletrabalho apenas para três grupos específicos: doentes crónicos ou imunodeprimidos, pessoas com deficiência e pais de crianças com menos de 12 anos (ou independentemente da idade se forem doentes crónicos ou com deficiência) em ensino remoto.
2. Para quem continua a ser obrigatório o teletrabalho?
Além dos grupos já abrangidos pelo CT, que se mantém – vítimas de violência doméstica cuja atividade seja compatível com o regime de teletrabalho e pais de crianças até 3 anos de idade -, a resolução do Conselho de Ministros nº 40-A/2020, de 29 de maio, que elimina a obrigatoriedade do teletrabalho que vigorou durante os estados de emergência e calamidade, estabelece como exceções quatro grupos de profissionais, para quem o teletrabalho continuará a ser a regra:
doentes crónicos e imunodeprimidos, mediante a apresentação de atestado médico que o comprove. Neste grupo estão incluídos os portadores de doença cardiovascular, doença respiratória crónica [asma, bronquite crónica, doença pulmonar obstrutiva crónica], doentes oncológicos e com insuficiência renal, mas também os portadores de artrite reumatóide, esclerose múltipla ou lúpus. De fora deste grupo ficam os diabéticos e os hipertensos que, depois de uma retificação publicada esta terça-feira em Diário da República, deixaram de integrar o grupo de risco da covid, não estando por isso os empregadores obrigados a mantê-los em teletrabalho. O facto de não existir uma lista de doenças abrangidas dentro destes grupos de patologias (autoimunes, cardiovasculares e respiratórias) deixa nas mãos dos médicos a decisão de emitir ou não declaração a certificar a necessidade de teletrabalho o que para os advogados pode gerar problemas;
pessoas com deficiência igual ou superior a 60%;
Trabalhadores com filhos ou outros dependentes a cargo, menores de 12 anos ou com deficiência ou doneça crónica (nestes casos, independentemente da idade), que tenham atividades letivas ou não letivas presenciais suspensas, fora dos períodos de interrupção letiva. Apenas um dos progenitores terá direito a requerer o teletrabalho e se a escola ou ATL estiver aberta deixa de estar abrangido por este regime e não terá faltas justificadas;
Trabalhadores que integrem empresas onde o espaço físico e a organização do trabalho não permitem o cumprimento seguro das orientações da Direão-geral de Saúde (DGS) e da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para controle da pandemia.
3. Não me enquadro em nenhum destes casos. Tenho de voltar à empresa ou posso recusar-me?
Não pode recusar-se. Findo o regime de exceção que decorreu durante os estados de emergência e de calamidade que impôs a obrigatoriedade do teletrabalho, para se manter neste regime o trabalhador tem de entrar em acordo com o empregador. Se esse acordo não existir, e não estando abrangido por nenhuma das exceções, terá de retomar atividade presencial na empresa, no regime que lhe seja indicado. A recusa poderá originar faltas injustificadas e despedimento. Porém, se considerar que o espaço físico e a organização do trabalho não permitem o cumprimento por parte da empresa das normas de segurança definidas pela DGS e pela ACT, e o puder fundamentar junto das entidades competentes, poderá permanecer em teletrabalho.
4. Não integro grupo de risco da covid-19, mas os meus familiares diretos sim. O empregador é obrigado a autorizar a minha permanência em teletrabalho?
A lei é omissa a esse respeito e este é um dos aspetos que para os juristas poderá criar problemas.
5. Beneficiei de apoio excecional às famílias por encerramento de escolas. Posso agora ficar em teletrabalho?
Não. Como o Expresso já havia explicado, o acesso ao apoio excecional criado para as famílias afetadas pelo encerramento de escolas impunha como condição que nenhum dos encarregados de edução pudesse exercer atividade em regime de trabalho remoto por incompatibilidade da função. De resto, o ministério do Trabalho esclareceu que “um trabalhador cuja atividade não era antes compatível com teletrabalho, não pode agora sê-lo”. Empresas que o façam arriscam multas. Esta é uma questão que decorre daquele que os especialistas em Direito do Trabalho identificam como um dos grandes problemas do regime: a ausência de uma lista objetiva que determine quais as funções que podem ou não ser exercidas em regime de teletrabalho. O advogado Pedro da Quitéria Faria admite mesmo que “com a generalização do teletrabalho, todos os novos contratos que venham a ser celebrados a partir de agora têm de deixar claro se aquela função pode ou não ser exercida em teletrabalho. Isto e absolutamente crítico a partir de agora”.
6. A creche do meu filho reabriu mas optei por mantê-lo em casa. Posso à mesma requerer o regime teletrabalho?
Não. Se a creche se encontra em funcionamento não poderá exigir ao empregador que lhe seja aplicado o regime de exceção que impõe a obrigatoriedade do teletrabalho, nem terá faltas justificadas se não se apresentar na empresa. Pode, contudo, tentar negociar um acordo com o empregador que lhe permita trabalhar remotamente.
7. O que significa na prática o “regresso às normas do Código do Trabalho” referidas pelo primeiro ministro António Costa?
Significa desde logo que o teletrabalho deixa de ser obrigatório, salvo para as exceções consagradas no CT e no regime excecional aprovado em Conselho de Ministros (elencadas acima). Para permanecer em teletrabalho terá obrigatoriamente que entrar em acordo com o empregador e formalizar um contrato ou uma adenda ao contrato de trabalho em vigor, com as novas regras da prestação do trabalho.
8. Todas as empresas que decidam manter os trabalhadores em regime de teletrabalho são obrigadas a formalizar um contrato ou adenda ao contrato?
O Código de Trabalho assim o determina.
9. Com esse contrato de teletrabalho perco direitos?
Não, o trabalhador não perde direitos por exercer atividade em regime de teletrabalho nem pode ser discriminado, de nenhuma forma, por não se encontrar presencialmente na empresa. Tem os mesmos direitos em matéria de formação, progressão, retribuição, proteção social. Contudo, pode ver suprimidos alguns subsídios que são pagos em contexto de trabalho presencial e que fica ao critério da empresa continuar a pagá-los quando o trabalhador se encontra em regime de teletrabalho. É o caso, por exemplo, dos subsídios de alimentação, transporte, fardamento (nas empresas que o aplicam). Caso assim o entenda, a empresa é livre de decidir não pagar.
10. O que deve constar desse contrato?
O regime de teletrabalho, mesmo nos casos em que não exige acordo entre as partes, impõe a celebração de um acordo escrito, através do qual são determinadas as condições em que será exercido o teletrabalho. Este acordo pode ser formalizado no início, se o trabalhador contratado para trabalhar remotamente, ou sob a forma de aditamento a um contrato já existente, se decorrer de uma alteração. E a forma como é redigido é crítica, já que salvaguarda os direitos dos trabalhadores mas também os seus deveres. O contrato para exercício de funções em regime de teletrabalho deve ser tão completo quanto possível, mas há elementos-chave que tem de conter:
identificação, domicílio e sede de ambas as partes;
indicação da atividade a prestar pelo trabalhador, com menção do regime de trabalho e correspondente retribuição (incluindo subsídios a atribuir);
indicação do período normal de trabalho e pausas para descanso;
duração do regime de teletrabalho e, se o período previsto para a prestação de trabalho neste regime for inferior à duração previsível do contrato de trabalho, a atividade a exercer após cessar o teletrabalho e onde;
clarificação do regime de teletrabalho (se for misto, presencial e remoto, indicar a proporção de um e de outro ou o horário em que está na empresa e em casa);
propriedade dos instrumentos de trabalho, bem como responsabilidade pela respetiva instalação, manutenção e pagamento das inerentes despesas de consumo e de utilização;
Identificação do estabelecimento ou departamento da empresa em cuja dependência fica o trabalhador, bem como quem este deve contactar no âmbito da prestação de trabalho.
11. Durante o período de tempo em que o teletrabalho foi obrigatório a empresa sempre me pagou subsídio de refeição. Pode agora deixar de o fazer?
É dos problemas que os advogados antecipam que possa decorrer desta transição do regime excecional criado pelo Governo para o regime que já estava previsto no CT. Isto porque, na prática, o pagamento do subsídio de alimentação é uma compensação monetária que serve para compensar o trabalhador pelos gastos diários da refeição que tem lugar durante o período em que este se encontra a trabalhar na empresa. O entendimento de alguns advogados é o de que, a luz da lei, não há lugar a este pagamento quando o trabalhador não está presencialmente na empresa. Esta foi uma das questões que gerou polémica nos últimos meses, com algumas empresas a pagar outras não. O Governo acabou por vir a público esclarecer que o subsídio de alimentação era devido a todos os trabalhadores, sem exceção, contrariando o CT. A questão que agora se coloca é se com o fim do regime excecional a empresas devem manter este pagamento ou não. E a resposta não é consensual entre os advogados. Se há juristas que, uma vez levantadas as regras excecionais criadas pelo Executivo, entendem que as empresas não têm que pagar este subsídio e podem deixar de o fazer, outros enfatizam que dificilmente a empresa poderá argumentar que não há lugar a um pagamento se aceitou fazê-lo durante dois meses. Acresce que o não pagamento poderá constituir um tratamento desigual do teletrabalhador face aos colegas que se encontram em regime presencial, o que poderá ser discriminatório. Antecipam-se problemas nesta matéria.
12. Posso exigir da empresa algum tipo de compensação pelos gastos adicionais que resultam do trabalho remoto, como eletricidade, comunicações ou outros?
O Código do Trabalho determina que propriedade dos instrumentos de trabalho, bem como responsabilidade pela respetiva instalação, manutenção cabe á empresa, bem como o pagamento das inerentes despesas de consumo e de utilização. Contudo, isso deve ser clarificado no contrato e caso a empresa decida compensar o trabalhador monetariamente por estas despesas, tal deve ser negociado com o empregador e ficar claro no contrato. Aqui cabem, por exemplo despesas relacionadas com comunicações, eletricidade, consumíveis que sejam necessários para o exercício de atividade e outros.
13. Durante o tempo em que estiver em teletrabalho tenho de cumprir um horário de trabalho rígido ou posso gozar de alguma flexibilidade?
O trabalhador em teletrabalho tem os mesmos direitos do que qualquer outro trabalhador, mas também os mesmos deveres. Tem um horário de trabalho e temos de pausa previstos e devem constar do acordo escrito firmado com a empresa. Apesar disse, a ACT recomenda as entidades empregadoras que seja garantida alguma flexibilidade nos horários e na distribuição de tarefas com prazo definido, considerando que grande parte dos trabalhadores têm nesta fase crianças em casa em ensino remoto e que, apesar de já se ter iniciado a retoma de atividade, o contexto ainda permanece atípico, impondo aos trabalhadores alguns constrangimentos.
14. Que problemas podem surgir com este modelo misto, que não é nem totalmente remoto nem presencial?
O regime de teletrabalho pressupõe o exercício de atividade remotamente, com recurso a tecnologia e com caráter de habitualidade. Por outras palavras, é exercido fora da empresa. Qualquer mecanismo híbrido (simultaneamente remoto e presencial) introduz variáveis novas e problemas novos a um regime de trabalho que já é de si complexo e que levanta muitas questões. É por isso que, de forma unânime, os especialistas defendem que é preciso legislar se o que se quer é algo que não conta na lei. Não isto dizer que seja necessário, no imediato alterar o Código Laboral para reforçar o regime de teletrabalho. Mas, defendem os advogados ouvidos pelo Expresso, é fundamental que o contrato que tem de ser formalizado com os trabalhadores seja transparente nas regras, nas obrigações de ambas as partes e nos direitos. Será, admitem, difícil definir como se calcularão subsídios de fardamento ou transporte, por exemplo, para um trabalhador que está apenas alguns dias por semana na empresa e outros em casa. Será difícil acomodar a questão do subsídio de almoço e outras relacionadas com os tempos de trabalho e horários, bem como a comparticipação de despesas acrescidas decorrentes do teletrabalho. É preciso também, entre outras coisas, acautelar que o regime a adotar não conflitua com o que já consta do contrato dos trabalhadores.
15. O empregador pode fiscalizar, no meu domicílio, se estou a cumprir o horário?
Pode. O Código do Trabalho prevê que o empregador possa realizar visitas domiciliárias ao trabalhador, sempre acautelando a sua privacidade. Não tem de o fazer com pré-aviso, mas terá sempre de o fazer dentro do horário de trabalho e nunca fora dela. Embora esteja previsto na lei, este mecanismo é a antítese do espírito do teletrabalho. Um regime que dá maior responsabilização aos trabalhadores, mas exige maior confiança por parte dos empregadores. Os mecanismos de controle ao dispor dos empregadores são muitos, mas deverão focar-se mais na produtividade e na prestação do trabalho do que no número de horas em que o trabalhador está em frente ao computador.