Marta Gonçalves, Nuno Botelho, in Expresso
Carlos assaltou moradias. Luísa chegou um dia a casa e encontrou a porta arrombada. Ele roubou e ela foi roubada. Embora um não tenha cometido o crime que o outro sofreu, a situação une-os: com Luísa, Carlos aprendeu a pedir desculpa; com Carlos, Luísa aprendeu a desculpar. Os dois participaram num conjunto de sessões em grupo com vítimas e condenados - alguns ainda a cumprirem pena de cadeia, outros não. A isto chamam “Justiça Restaurativa”: “Cada pessoa tem dois cães dentro de si, o bom e o mau. Somos nós que escolhemos qual vamos alimentar”.
Quando o primeiro dente de um filho caía era coisa para guardar. As mães faziam dele peça de joalharia e motivo de orgulho. Ao ourives pediam que o transformassem num pingente, que era depois posto num fio ao pescoço ou nos brincos para usar nas orelhas. “Naqueles tempos usava-se.” “Usava-se” é a única explicação que Luísa Barreiro, 72 anos, encontra para justificar porque andava com o dente da filha como adorno ao peito. “Tinha um valor sentimental e usava-se.” Com o passar dos anos a pecinha haveria de acabar por passar muito mais tempo guardada na única gaveta fechada que Luísa tinha em casa. Até que um dia alguém entrou e a levou. Levou isso e mais: as pulseirinhas da bebé, colares, brincos. Saíram à pressa e pelo chão ainda deixaram coisas caídas.
Quem o fez - e nunca se soube quem foi - entrou pela janela da casa de banho do rés do chão, atravessou o piso térreo e procurou o que pudesse levar. Subiu as escadas e numa cómoda encontrou a gaveta fechada. Com uma concha da sopa, que foi buscar à cozinha, abriu. Não estragou nada, pegou apenas naquilo que mais lhe parecia valioso.
Carlos Barbosa não esteve neste assalto. Mas sabe como as coisas se fazem. Ainda durante a adolescência aprendeu a assaltar casas, a roubar carros e “todas essas coisas”. Tem 43 anos e passou quase metade da vida na prisão. Os crimes? Esses mesmo: assaltos a casas e roubos a carros. Carlos perdeu conta à vezes que roubou. “Se eu tivesse sido condenado por tudo o que fiz ainda lá estava dentro.” Luísa foi roubada nove vezes em pouco mais de cinco anos.
Os dois participaram num conjunto de sessões chamadas “círculos restaurativos” e, entre conversas, trocas de experiências, medos e perdões, hoje estão melhores: Luísa está mais tranquila e menos traumatizada, Carlos mais consciente do mal que fez. “Ele levantou-se a meio da sessão e pediu-me desculpa quando as lágrimas me caíam ao contar-lhe aquilo por que tinha passado. Ele pediu-me desculpa por um ato que ele próprio já tinha cometido embora a vítima tenha sido outra pessoa.”
Luísa emociona-se. Lembra-se do momento mas tem ainda por resolver algumas inseguranças que ficaram dos assaltos. “Há pouco estava a contar a uns amigos que vinha aqui dar esta entrevista e dizia-lhes que não sabia como me ia portar.” O problema de Luísa não é o que dizer ou como dizer. O que a preocupa é conseguir dizê-lo sem que as lágrimas e a respiração ofegante a impeçam.
“Já foi há uns anos mas ainda hoje não é fácil porque me levaram as pecinhas todas das minhas filhas e da minha mãe. Entrar em casa e ver tudo mexido é um horror. É um trauma tremendo. E nos dias seguintes quando voltamos a entrar em casa temos medo. Temos a sensação de que está lá alguém outra vez. E isto prolonga-se no tempo”, diz Luísa. No segundo assalto levaram-lhe um Cristo que tinha na entrada e uns pilares decorativos. O último, não há muito tempo, estava no carro, no banco de trás levava uma das netas. A janela aberta e um “rapaz ainda novito” passou e levou-lhe a mão ao pescoço. “Arrancou-me a gargantilha que estava a usar. Saí do carro e fui a correr atrás dele.”
Luísa aceitou participar no projeto piloto dos círculos de justiça restaurativa não só porque sentia que isso a poderia ajudar mas também porque toda a vida trabalhou junto da comunidade prisional, quer em estabelecimentos prisionais, quer na direção-geral. É também voluntária na Confiar - Associação de Fraternidade Prisional, uma IPSS cujo objetivo é apoiar reclusos e as suas famílias (membro da Prison Fellowship International, uma organização internacional de orientação católica que presta ajuda humanitária nas prisões) e que se tem assumido como pioneira da implementação da justiça restaurativa em Portugal.
Através destas sessões, quase como terapia de grupo, vítimas e condenados partilham experiências ao longo de cinco a oito semanas. “Quando estamos no grupo, os ofensores percebem o mal que fizeram. E isso para eles é uma novidade. Despertam para a vítima. Muitas vezes assaltam casas porque querem ir para a droga e aquilo que roubam não tem qualquer valor além do monetário. E para nós há um valor afetivo. Não se trata de perder cinco mil contos, mas o que aqueles objetos significava”, explica Luísa.
Dos poucos fios que ficaram para trás, caídos no chão, estava um colar que o pai lhe ofereceu quando terminou a quarta classe. “É um dos que restaram. Hoje está com a minha neta mais velha, ofereci-lhe.” Tudo o resto Luísa já não guarda em casa. Está num cofre no banco. “Agora podem lá ir que não encontram nada, só peço é que não me partam as janelas.”
Quando Carlos roubava, a menor das preocupações era o mal que estava a fazer aos outros. Precisava de dinheiro para a droga. “Sabia que estava a tirar algo a alguém mas estava a lixar-me para isso. Queria lá eu saber das pessoas. Fiz tantas… [pausa]. Mas já está feito. Mas não matei ninguém, não fiz nada disso. Errei muito, errei.”
“Agora vai passar fome, esqueçam lá isso”
Carlos Barbosa tem 43 anos e relata-nos uma história que lhe contaram quando ainda estava na prisão: “‘Cada pessoa tem dois cães dentro de si, o bom e o mau. Somos nós que escolhemos qual vamos alimentar.’ Eu passei anos e anos a alimentar o mau. Agora o mau vai passar fome. Esqueçam lá isso. Não voltarei a fazer o que eu fiz”.
É durante a hora de almoço que encontramos Carlos. Está a trabalhar nas obras, que é aquilo que jura realmente gostar. “Levo isto como se estivesse a ir ao ginásio. É pelo esforço físico mas também acho que é pelo prazer de construir algo.” É também por não haver rotina. “Ora estou a partir chão, ora a pôr chão. Ainda agora estava a tirar mosaico.” Depois vai fazer a eletricidade e a canalização. Vai ficar tudo novo.
“Não me estou a ver anos e anos a fazer a mesma coisa, a ir todos os dias para o mesmos sítio a fazer a mesma coisa. Durante demasiado tempo estive lá dentro. Sempre a fazer o mesmo, tenho de quebrar. Posso ficar 40 anos nas obras mas sei que não fico 40 anos na mesma obra, não vejo 40 anos as mesmas pessoas, não faço 40 anos a mesma coisa. Sou pedreiro mas sei fazer de tudo.”
As malandrices e as malandragens, como Carlos diz, começaram ainda era ele garoto da escola primária. Faltava às aulas e dava dores de cabeça aos pais. Foi então que a mãe o mandou para um colégio interno. Pior. “Era a escola do crime. Aprendi o que não sabia, comecei a fumar ganzas, a beber, era influenciável. Essas coisas… Depois continuei, né?”
Um ano depois de ter saído do internato, Carlos estava a ser preso pela primeira vez. Cinco anos e dez meses por roubo. Ficou no estabelecimento prisional de Leiria. “Estava muito revoltado, passei o tempo todo de castigo, metido em discussões com os guardas.” Um dia recusou-se a tirar os brincos só porque sim e ficou sem a ida ao pátio. Pelo menos uma vez a mãe foi de Lisboa para o ir visitar mas quando lá chegou Carlos estava de castigo. Não havia visitas. “Vejam lá isto…”, conta ele como quem lamenta a inconsciência do homem que foi.
Quando saiu teve logo emprego como segurança e servente de calceteiro. Aguentou pouco, voltou à mesma vida poucos meses depois. “Caí mais uma vez. Ninguém que anda nesta vida anda muito tempo sem ser apanhado. Alguma vez se é apanhado e eu fui. Mas a segunda condenação foram 12 anos.” Então tudo foi diferente.
Carlos ainda não sabe explicar porque voltou a roubar. Ainda se questiona. Não tinha qualquer necessidade: embora viesse de uma família pobre da zona da Reboleira, na Amadora, nunca lhe faltou nada - sobretudo porque era o único rapaz em casa. “Não pensava nas consequências. Depois dava-se a brasa e eu tinha de a aguentar - como, aliás, fiz sempre. Fui condenado sempre por assaltos e crimes de tráfico. Nada grave comparando com crimes como pedofilia, violação de mulheres ou crianças.”
Da segunda vez atinou. Ganhou juízo, como ele diz.
Aquela boleia de táxi
Pela segunda vez preso, Carlos participou em aulas de ética, trabalhou nas limpezas, fez o curso de barbeiro. “Ainda estava dentro e já tinha na cabeça que teria de mudar quando saísse. Mudar por mim mas também mostrar às pessoas que eu fiz sofrer tanto.” Desta vez não houve um único castigo, sabia que queria voltar a trabalhar e, no meio de tudo isto, ainda se apaixonou. “Conhecia-a lá dentro através de uns amigos. Ela ia às visitas e começamos a falar.” Um mês depois de sair em liberdade estava a casar-se. “Depois tivemos o Lucas.”
O projeto-piloto dos círculos restaurativos da Confiar cruzou-se com Carlos através das aulas de ética. Foi lá que conheceu Luís Graça, presidente da associação e que o desafiou a participar. “A mim ajudou-me muito porque me consegui pôr no lugar das vítimas, pedi-lhes perdão e arrependi-me de tudo o que fiz. Foi bom ser confrontada pelas vítimas. Nesse momento percebi bem a gravidade do que fiz.”
Além de Luísa participaram nas sessões de grupo um casal com cerca de 70 anos. Um dia chegaram a casa e ainda lá estavam os ladrões, que os amordaçaram e os obrigaram a abrir o cofre. “Na primeira sessão eles nem me conseguiam ouvir falar”, conta Carlos. E no último dia foi esse mesmo casal que ofereceu boleia a Carlos. “Eu ia casar-me umas horas depois do encontro final e, quando terminou, nem o autocarro passava nem conseguia apanhar um táxi. Então eles aproximaram-se e perguntaram se precisava de boleia. Agora imaginem: eu no banco de trás e eles os dois à frente, a levarem-me para eu me casar. Sabiam que eu tinha praticado crimes iguais àquele de que foram vítimas.”
Os círculos restaurativos são quase quando dois filhos têm uma zanga e os pais os chamam para resolver o assunto. “Perguntamos o que aconteceu, questionamos se acham bem e se têm consciência e por fim dizemos ‘faz favor de pedir desculpa’.” A comparação é feita por Luís Graça, presidente da Confiar. “Claro que esta é uma forma muito simplista de explicar as coisas mas é mais ou menos isso. Mas o que realmente notamos é que no fim das sessões temos resultados estupendos”, diz, sublinhando que ainda não há resultados da justiça restaurativa em Portugal mas um registo mundial diz que cerca de 72% de ofensores que passam por este processo não reincidem.
As conversas do grupo são mediadas por um facilitador - que pode ou não ser um psicólogo - e cada uma das sessões tem um tema - como a reconciliação, a verdade ou o perdão. Mas fundamental, define Luís Graça, é que logo na sessão zero o ofensor se assuma como responsável. “Diria que quase todas as pessoas em situação de reclusão não se assumem como responsáveis, dizem que são vítimas do sistema.”
Carlos já tinha admitido ainda antes da sessão zero que era responsável pelos crimes que cometeu. “Eu acho que comecei a mudar quando a minha mãe morreu. Eu estava preso e não me deixaram ir ao funeral, não pude despedir-me. Acho que é a única pessoa a quem queria pedir perdão e que estivesse presente para ver a minha mudança.” O pai de Carlos ainda viu o filho casar-se e tirar a carta de condução. Mas o tempo já não lhe permitiu andar de carro com o filho. “Comprei um carrinho há dias, gostava de ter conseguido levar o meu pai a dar umas voltas.”
Haverá um dia em que o corpo de Carlos não lhe permitirá continuar a acartar os baldes de massa e, quando esse dia chegar, já há um plano: abrir um salão só para crianças. Cortar cabelos. Até lá vai cortando o do filho Lucas. “Olhem aqui estes caracóis tão bonitos”, diz ele enquanto mostra a fotografia do filho que tem gravada no telemóvel. “Quando ele crescer vou contar-lhe tudo o que fiz.”
O bom comportamento de Carlos deu-lhe a liberdade condicional. Se tivesse cumprido na totalidade a pena a que estava condenado tinha saído da prisão por esta altura. Já Luísa continua a ter guardada em casa a concha que usaram para lhe arrombar a gaveta da cómoda.