Patrícia Carvalho, in Público on-line
A qualidade do ar melhorou, mas voltou a usar-se mais descartáveis. Houve menos emissões de gases poluentes e algumas pequenas boas notícias para a biodiversidade, mas teme-se um recuo nos hábitos de reciclagem. Associações ligadas ao ambiente olham para os aspectos positivos e negativos trazidos pelo confinamento a que a pandemia nos obrigou. Esta sexta-feira é Dia Mundial do Ambiente.
Não foi preciso muito para que as mudanças se tornassem perceptíveis. Quando a pandemia da covid-19 fechou parte da população mundial em casa, tornando residuais muitas actividades económicas e a maior parte das deslocações, as reacções ao nível da qualidade do ar e da quantidade de emissões foram os sinais mais evidentes de que estávamos num período de alívio da crise ambiental. Com o desconfinamento que se seguiu, há sinais de que algumas conquistas temporárias já deram um passo atrás e outras se deverão seguir. Por cá, várias organizações não-governamentais (ONG) ligadas ao ambiente fazem um balanço do que de melhor e de pior a pandemia trouxe ao ambiente.
A diminuição da poluição e a melhoria da qualidade do ar, bem como a quebra do ruído, são os aspectos positivos da pandemia mais repetidos por vários responsáveis das ONG ouvidas pelo PÚBLICO. Falam dela a Zero, a Quercus, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) ou a FAPAS — Fundo para a Protecção de Animais Selvagens. “Toda a gente notou, toda a gente viu, até no alcance da visibilidade que se conseguiu”, diz o biólogo Nuno Gomes Oliveira, da FAPAS.
Mas foi muito mais que uma simples percepção empírica. Os dados recolhidos nos últimos meses a nível mundial e, por cá também, são muito claros. Em Lisboa, por exemplo, “nunca houve um período tão longo com tão pouca concentração de dióxido de azoto (NO2)”, refere Francisco Ferreira, da Zero, referindo-se a medições feitas na Avenida da Liberdade. E se olharmos para a diminuição das emissões dos gases com efeito de estufa — mais um factor positivo referido por várias das associações —, os números também são claros. Embora o responsável da Zero saliente que é preciso ter em conta que a pandemia não foi o único factor, já que medidas introduzidas nos últimos anos, com incentivo às energias renováveis e penalizando os combustíveis fósseis, também contribuem para que, neste momento, estejamos “muito bem”.
As contas da Zero indicam que a redução do consumo de electricidade dos últimos três meses levou a uma quebra de emissões de dióxido de carbono (CO2) na ordem dos 1,4 milhões de toneladas. A isto há que somar uma queda de emissões do CO2 provenientes do transporte rodoviário que Francisco Ferreira estima que possa chegar a 1,8 milhões de toneladas e a outra quebra, só pela paragem brutal do sector da aviação, que ascenderá a mais um milhão de toneladas de CO2. “É um peso muito significativo, um decréscimo de quase 20% no que seria o valor normal.”
“São impactos importantes, mas de curto prazo, porque são quase de certeza passageiros”, refere, pelo seu lado, Jorge Palmeirim, da LPN. Esse foi um alerta repetido desde o início por quem estava atento à forma como o mundo ia evoluindo ao ritmo da pandemia, e que os dados mais recentes parecem confirmar. Num artigo publicado nesta quarta-feira no jornal britânico The Guardian, citando dados do Centro de Pesquisa de Energia e Ar Limpo (Crea, na sigla inglesa), que analisou a presença de NO2 e de partículas finas nos ares de China, referia-se que o país está já “com os mesmos níveis de há um ano”. “No pico da resposta do país ao coronavírus, no início de Março, os níveis de NO2 desceram até 38% comparando com 2019, e os das partículas finas diminuíram em 34%”, refere-se no artigo, no qual também se diz que “a Europa deverá ir pelo mesmo caminho”.
Mais polinizadores
Mas estes factores, ainda que temporários, tiveram consequências que já não desaparecem. Há estimativas que apontam para o número de vidas que foram salvas directamente pela melhoria da qualidade do ar e, por cá, a presidente da Quercus, Paula Nunes da Silva, realça outro aspecto: “A diminuição da poluição atmosférica, associada ao facto de este ano ter chovido mais, levou a um aumento dos polinizadores.” Também ela salienta que estes efeitos são pouco mais do que “momentâneos” e pouco significarão para o enriquecimento da biodiversidade a longo prazo, mas, para já, podemos contar com este pequeno aumento.
Como podemos contar com algum reavivar de alguma flora, que beneficiou da paragem de corte de muitos matos pelo país. “Toda a gente andou a fotografar a erva-língua, uma orquídea selvagem portuguesa. Não é que ela não exista, mas este ano estava por todo o lado, por não haver estes cortes”, diz Nuno Gomes Oliveira, da FAPAS, salientando: “Estes pequenos benefícios para a flora permitem que haja mais sementes, o que contribui para o futuro destas plantas e para alimentar abelhas e outros insectos. Mas, vamos sempre dar ao mesmo — é uma questão episódica. O que era bom era a gente tirar lições e perceber que se não mantivermos os relvados tipo carecada militar, deixamos crescer flora espontânea, aumentamos a biodiversidade e damos alimento aos polinizadores.”
Ana Brazão, do Geota — Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, diz que também gostava que a actual pandemia servisse para as pessoas perceberem que a interferência nos ecossistemas, sobretudo com grandes obras, como barragens, “reduzem drasticamente habitats e isso torna-nos mais vulneráveis a entrarmos em contacto com vírus que sempre existiram na vida selvagem, mas para os quais não estamos preparados”. Especialista em rios, a responsável da Geota diz que o facto de o confinamento ter acontecido numa época húmida, em que os caudais são mais volumosos, não deixa prever grandes alterações nessas massas de água, embora seja previsível que também eles possam ter tido “níveis de poluição mais reduzidos”.
Do lado dos factores positivos, Domingos Leitão, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), salienta “algumas informações que dão conta que nas praias e nas zonas dunares, como na Ria Formosa, espécies como a chilreta e os borrelhos estão a ocupar áreas maiores do que nos anos anteriores”, mas com a salvaguarda de que o confinamento também impediu a presença nos terrenos dos técnicos e voluntários que monitorizam as aves, pelo que os dados são escassos.
Já a apetência pelos temas da natureza e da conservação das espécies foram notados por ele e também pela presidente da Quercus e destacados por ambos como factores positivos deixados pelos últimos meses.
Pelo lado negativo, além do receio do que aí vem, e da incapacidade de impedir um retrocesso total no que de bom foi conseguido, o aspecto mais salientado é o que se prende com os resíduos. Susana Fonseca, da Zero, e Carmen Lima, da Quercus, destacam o aumento do uso de descartáveis, e a paragem, em alguns locais, da recolha selectiva, como os grandes factores negativos da pandemia. Com a segunda a mostrar-se mais pessimista do que a primeira. “Levámos anos a introduzir hábitos de reciclagem e agora houve um retrocesso na mensagem passada.”
“Tudo é pouco seguro”, sintetiza Jorge Palmeirim, acrescentando: “Todos os grandes impactos a longo prazo estão muito dependentes da opinião pública e da sua capacidade de influenciar políticas. Se ela for a que existe agora, teríamos saltos positivos. Vamos ver até que ponto.”