2.6.20

“Rapidamente percebi que iríamos passar fome”

Raquel Albuquerque e Ana Baião, in Expresso

Pobreza irá agravar-se e saber se recua aos níveis de 2013 depende da recuperação económica dos próximos meses

Josefa Jesus já conhece os militares que há dois meses distribuem refeições num ex-quartel da GNR, em Lisboa. Todos os dias, marca lugar na longa fila que se estende pelo quarteirão para ir buscar almoço e jantar. Quando chega à sua vez, desdobra o papel com a cópia do cartão de cidadão do filho como prova de que precisa de levar duas refeições para casa. Até há pouco tempo, Josefa, 51 anos, trabalhava como motorista da Uber e o filho, de 29, fazia biscates como eletricista. De um dia para o outro, ficaram sem trabalho e o pouco que tinham guardado chegou para pagar renda e comida durante um mês. “Depois disso rapidamente percebi que iríamos passar fome.” A solução foi recorrer à distribuição de refeições feita pelo Exército, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia.

À hora de jantar a fila fica ainda mais comprida do que ao almoço e são dadas cerca de 600 refeições por dia. Durante a semana é servida uma refeição quente ao almoço e sandes ao jantar. Durante o fim de semana, é a Santa Casa que confeciona duas refeições quentes. Como Josefa Jesus, milhares de outras famílias por todos o país viram-se sem trabalho de repente e sem qualquer rendimento. “Antes as pessoas vinham à procura de trabalho, agora vêm à procura de comida. Há quem pergunte como é que tanta gente ficou sem nada tão depressa. Uma grande parte das pessoas que conseguiu trabalho nos últimos anos ficou com salários muito baixos e só a renda levava 60% do que ganhavam. Nem mesmo com dois trabalhos estas pessoas conseguiram poupar dinheiro”, defende Eugénio da Fonseca, presidente da Cáritas, que recebeu quase 50 mil pedidos de ajuda alimentar e está a apoiar famílias a pagar renda, eletricidade ou gás.

“Antes as pessoas vinham à procura de emprego, agora procuram comida”, diz o presidente da Cáritas
“Não há dúvidas de que já temos um agravamento bastante expressivo da pobreza e exclusão social. Indicadores indiretos como os da Cáritas ou Banco Alimentar, os números do lay-off e do desemprego já dão uma ideia do impacto. Dizer que vamos ter um agravamento da pobreza para níveis de 2013 depende de quanto tempo isto vai durar”, diz Carlos Farinha Rodrigues, especialista em pobreza e desigualdades. “Se a situação epidémica se agravar em outubro, as consequências serão terríveis. Algumas das medidas tomadas agora não poderão ser prolongadas eternamente, porque os custos são gigantescos.”

Dados avançados no Parlamento pela Ministra do Trabalho apontam para 804 mil postos de trabalho abrangidos por lay-off simplificado, num total de €470 milhões. Mas é precisamente o lay-off que está a “conter” o impacto da situação atual no desemprego, sublinha Farinha Rodrigues. E o presidente da Cáritas concorda. “Os números de pedidos de ajuda que conhecemos estão aquém do que poderá vir a ser o problema. O desemprego ainda não inclui as empresas que não vão conseguir reequilibrar-se, seja na restauração ou outros serviços que deixem de ter tanta procura”, diz Eugénio da Fonseca. “A crise ainda vai ter uma expressão maior, mais grave, e os seus contornos devem preocupar-nos.”

Trabalhadores precários, com falsos recibos verdes ou sem contratos de trabalho viram-se em situações mais frágeis. “Na crise anterior, as famílias tinham algumas almofadas, como os rendimentos vindos da economia informal. Só que desta vez, a partir de março, tudo isso acabou. As famílias que tinham uma ligação precária ao mercado de trabalho e que recorriam a rendimentos informais do turismo ou restauração ficaram sem nada. Portanto, foi um choque imediato e os efeitos são devastadores”, diz Farinha Rodrigues.

Vírus expõe desigualdades
Na fila de refeições distribuídas todos os dias pelo Exército estão pessoas que já viviam com dificuldades económicas, mas muitas outras, como Josefa Jesus, nunca tinham precisado de ajuda para poder comer. Ao Banco Alimentar têm chegado famílias com filhos que até agora tinham emprego e alguma estabilidade. “Em zonas como Lisboa, Setúbal e Porto houve um choque maior. A população emigrante, sobretudo brasileira, foi muito afetada. E a maior parte dos casos são famílias com filhos que se viram numa enorme pressão, com as crianças em casa e sem salários, sem dinheiro para pagar despesas nem comprar comida”, descreve a presidente do Banco Alimentar, que recebeu cerca de 60 mil novos pedidos de ajuda, a somar às 380 mil pessoas que ajuda regularmente.

Tal como a epidemia expôs carências habitacionais, laborais e económicas, como estão à vista nos focos de contágio na região de Lisboa, o vírus pôs a nu outros problemas estruturais, como a pobreza da população migrante.
“Muitos migrantes, sobretudo oriundos da Ásia, estão totalmente desprotegidos. Vieram para Portugal sem conseguir regularizar a sua situação porque não chegaram a ter um contrato de trabalho”, alerta Eugénio da Fonseca.

Há mais de um mês que Josefa Jesus não consegue pagar a renda da casa. “Comprei vários jornais por causa dos anúncios de emprego, mas estão vazios. Ninguém quer ninguém. Vi um anúncio sobre um curso para ser motorista da Carris, mas depois percebi que tinha de pagar. Agora o meu objetivo é conseguir ter dinheiro para tirar o curso. E garanto que vou conseguir”, diz Josefa Jesus, que está sem trabalho pela primeira vez desde que veio do Brasil para Portugal, há 20 anos.