2.6.20

Virar a página

António Costa, in JN

Nunca como hoje tantos ansiaram pelo virar de página. Por uma vacina, um tratamento eficaz, um milagre quiçá. A covid não se limita a disseminar doença e antecipar a morte; semeia o medo e muda a nossa vida, individual e coletiva; colapsou a economia, exponenciou as desigualdades. Em poucas semanas, o Mundo foi parando e nós tivemos de nos reeducar e reinventar o nosso modo de vida. Algumas mudanças surpreenderam-nos positivamente e até ganhámos vontade de as conservar. Mas... queremos - precisamos mesmo! - de virar a página. Voltar a abraçar-nos, a circular livremente, deixar as máscaras, os desinfetantes, o medo.
Contudo, infelizmente, esta página não é composta de pequenas locais, que folheamos rapidamente, passando os olhos pelas "gordas", só nos detendo um pouco em alguma que nos suscite maior curiosidade. Esta é uma matéria de fundo, que no canto inferior direito inscreve um "continua na página seguinte" e se arrastará por várias edições, durante meses, seguramente mais de um ano. Temos ainda muitas páginas para virar até termos a manchete que queremos ler: A COVID PASSOU!

Coletivamente, temos escrito as páginas que fizeram a diferença. A impressionante autodisciplina com que contivemos o crescimento exponencial da pandemia fortalece justamente a autoestima nacional. A competência e dedicação dos profissionais de saúde motiva a admiração e estima de todos. A mobilização dos militares das Forças Armadas, dos profissionais das forças de segurança, de proteção e socorro, do setor social e solidário, das múltiplas iniciativas de voluntariado, suscita gratidão generalizada. A capacidade de adaptação de empresas e professores é merecidamente louvada. A Democracia saiu fortalecida pela forma como a Constituição testou o estado de emergência e os órgãos de soberania souberam agir concertadamente. O Estado social reforçou-se na evidência da imprescindibilidade do SNS, da escola pública e de uma segurança social que nos garanta em qualquer eventualidade. Podemos olhar-nos ao espelho e ver uma sociedade que reagiu como comunidade, protegendo-nos uns aos outros.

Conseguimos conter o crescimento da pandemia e ir desconfinando sem deixar de a controlar. Mas precisamos de ter consciência de que esta é uma página que vamos continuar a escrever dia a dia e em que não nos podemos distrair ou relaxar na higiene das mãos, na etiqueta respiratória, nas distâncias de segurança, na proteção dos grupos de risco, no apoio aos profissionais de saúde. Cuidados que temos de redobrar no outono e no inverno quando, provavelmente, o risco de novos picos pode recrudescer. O que exige preparação coletiva para essa contingência, de modo a evitar que tenhamos de recorrer a novos confinamentos.

Esta é a frente sanitária. Mas a covid atingiu também brutalmente a economia. A primeira prioridade foi agir na emergência para mitigar a perda do rendimento das famílias, a destruição de emprego, a falência das empresas. Há de chegar o momento de lançar um programa de relançamento económico e recuperação social. Temos de ir preparando a nossa estratégia, coerente com as opções que definimos de combate às alterações climáticas, transição digital, equilíbrio demográfico e redução das desigualdades, e clara prioridade no posicionamento do país no novo quadro global das cadeias de valor, fortalecendo a nossa autonomia industrial e a valorização dos nossos recursos.

Com realismo, temos de reconhecer que ainda não chegámos a esse momento. Esta não é uma crise nacional, não resulta conjuntural ou estruturalmente da nossa economia, das nossas finanças ou do nosso sistema financeiro. Esta é uma crise global, que simultaneamente a todos atingiu e só em conjunto podemos encontrar a retoma. Precisamos que se verifiquem duas condições para podermos perspetivar esse cenário. Uma, ainda muito incerta, uma clarificação da evolução global da economia; outra, já mais clara, a definição dos instrumentos da União Europeia de apoio à recuperação, em que a recente proposta da Comissão Europeia se apresenta como bom augúrio.

Precisamos por isso de um instrumento intercalar, entre a emergência e o relançamento, que permita assegurar a estabilização económica e social durante o próximo semestre, dando confiança às empresas e alento às famílias para resistirem, garantia de solidariedade aos que perdem emprego ou rendimento, combate à pobreza que cresce. Tal como nos protegemos uns aos outros na doença, também ninguém podemos deixar para trás na crise económica e social que vivemos. É esta a função do Programa de Estabilização Económica e Social que o Governo irá aprovar esta semana e que enquadrará o Orçamento Suplementar que posteriormente apresentará na Assembleia da República.

Se na fase da emergência o objetivo foi controlar a pandemia sem matar a economia, agora temos de salvar a economia sem descontrolar a pandemia. É o que nos devemos a nós próprios e às próximas gerações. E é o melhor testemunho de respeito pela memória dos que a covid levou, pela dor dos que sofrem doentes e pela angústia dos que temem estar contaminados.

Assim, uma a uma, dia a dia, mês a mês, iremos continuar a virar a página.