Mariana Correia Pinto (texto) e Paulo Pimenta (fotografia), in Público on-line
Criaram uma “equipa covid-19” e foram retaguarda de doentes com alta hospitalar no Porto. Em tempos pandémicos, o trabalho não parou – e até aumentou. Pequena viagem pelos dias da Associação Mutualista Benéfica e Previdente, da reabertura das creches ao apoio domiciliário. “Não somos a favor da esmola, somos a favor de direitos iguais para todos”
Júlio Oliveira esgotou as palavras. Ou então foram as palavras que perderam a batalha para a rispidez do silêncio. “Já fui muito falador”, afirma, máscara posta a tapar parte dos olhos, camisa amarela no corpo franzino. “Agora não… já falei quando era novo e trabalhava como vendedor.” O silêncio do homem de 74 anos é mistura de tristeza e solidão. “Vivo sozinho, não tenho ninguém.” Júlio Oliveira pronuncia-o sem mostrar fraquezas, mas em busca do fim da conversa, avisando mais uma vez estar na hora da ida ao barbeiro.
A mãe fora, “há muitos anos”, utente da Associação Mutualista Benéfica e Previdente e quando um cancro na próstata lhe encolheu a esperança e a alegria de viver foi também nela que Júlio Oliveira se apoiou. No início de Abril, outra doença voltou a assolá-lo: do mal-estar repentino e dificuldades em respirar sairia o diagnóstico temido: SAR-Cov-2 reactivo. A “equipa covid” da Benéfica foi a sua “salvação”, acompanhando toda a recuperação feita em casa: fazia limpezas, levava-lhe comida, ia ao supermercado e à farmácia. Em duas semanas, o teste deu negativo. Pelo menos para essa maleita. “Ainda hoje não me sinto bem. Sofro de ansiedade, tomo medicação, não durmo. Tenho medo”, confessa à psicóloga Bruna Sousa.
Virologista contra tablóide, virologista contra virologista: covid-19 provoca debate aceso na Alemanha
A associação criada há 142 anos tinha entrado na vida de Júlio Oliveira antes da covid-19 e ficou depois. “As pessoas já viviam sozinhas e ficaram ainda mais sós por causa da pandemia. Há muito medo e muita necessidade”, avalia Bruna Sousa, uma das obreiras deste projecto associativo nascido da leitura antecipada da realidade, em parceria com a saúde pública do Porto Oriental e as Juntas de Freguesia de Campanhã e do Bonfim. Tendo nessas geografias e no centro histórico o foco de intervenção, sabiam da possibilidade de estar perante uma bomba-relógio, como confirmaram depois alguns estudos: em zonas mais pobres, o novo coronavírus ataca de forma mais forte. O descontrolo não aconteceu, mas a estrutura, agora em pausa, está pronta para uma segunda vaga. Se ela vier. A epidemia, diz Paula Roseira, presidente da associação, veio tirar da sombra uma cidade e sociedade invisíveis. E fazer crescer problemas em moradas de insuficiência de saúde, comida, salubridade, educação, emprego, dinheiro. “O apoio social existe no Porto. Mas há muito mais necessidade do que oferta”, aponta.
Paula Roseira anda no sector social há demasiados anos para se deixar levar em leituras superficiais. A realidade, aprendeu, é sempre mais complexa. Fogueiras de bons costumes e moralidades nada mais produzem do que fumo negro? “As pessoas atiram pedras sem estudar a origem dos problemas, as vidas difíceis. É a sociedade que forma necessidades quando não tem respostas.” Na Benéfica, com estatuto de IPSS desde 2002, nem tudo se cura. Mas muito se cuida. Há clínicas, duas creches e pré-escolar, cozinha, lavandaria, apoio domiciliário, centro de dia e de convívio, duas casas para pessoas sem-abrigo, apoio a famílias beneficiárias do Rendimento Social de Inserção. “Crescemos como as cerejas. À medida que as necessidades surgiam. Hoje temos 110 trabalhadores.”
“As pessoas atiram pedras sem estudar a origem dos problemas, as vidas difíceis. É a sociedade que forma necessidades quando não tem respostas”, diz Paula Roseira, presidente da associação
São 8h30 e na cozinha da Casa das Glicínias, cedida pela Câmara do Porto à associação ainda no tempo de Rui Rio, Paula Mendonça e Anabela Pinto já prepararam as 130 a 140 refeições do dia. “Hoje é douradinha assada e espetada”, comenta Anabela enquanto embala alimentos e faz apresentações: “Estou na Benéfica há quatro anos, a Paula há mais de 20. A gente faz por gosto.” Carla Mendes, engenheira química, trocou a área indústria pela social e coordena o departamento de gestão operacional. As Glicínias são o epicentro da resposta de uma estrutura que obriga a planos reflectidos ao milímetro. E a quem o SARS-Cov-2 trouxe novas dores de cabeça: “Foi duro planear toda a modificação”, afirma, feliz com os resultados obtidos.
Na lavandaria, o rádio toca, as máquinas rodam, duas mulheres passam a ferro. Foram criadas zonas limpas e sujas. Quando chega roupa de doentes com covid-19, é preciso equipamento dos pés à cabeça, “tipo astronauta”, para cumprir a tarefa. Mas para ali vai toda a roupa de utentes e das duas creches: recolhida, lavada, passada, embalada, reentregue. Todos os utentes pagam de acordo com os rendimentos. “Prestamos um serviço ao Estado. O beneficiário paga de acordo com o que recebe e o Estado dá um valor fixo, manifestamente insuficiente”, afirma Paula Roseira, que aos 18 anos se fez voluntária no Santo António e nunca mais abandonou a área social.
“Sempre olhámos para a creche com muito respeito”
Núria e Miguel, irmãos de um e três anos, são os primeiros a entrar na creche Flor de Abril. Toalha com lixívia no chão para passar as solas dos sapatos, banco corrido na entrada para marcar o lugar até onde os pais podem ir. Em poucos dias, as crianças habituaram-se à rotina: sentam-se no banco, é medida a febre, trocam de sapatos, vestem a bata, desinfectam as mãos. Mariana Mendes, a mãe, diz ter sido “um desafio” tê-los em casa nos últimos meses, com o irmão mais velho, de sete anos. É tatuadora, teve de fechar a sua loja e ainda não sabe quando terá direito a reabri-la. O marido está desempregado. “Fomos ao fundo que tínhamos para as férias para sobreviver”, conta.
Creches tiveram de fazer uma revolução nos espaços. Cumprir distâncias e desinfecção permanente é tarefa difícil
Os casos repetem-se por ali, afirma a coordenadora Daniela Bernardo, enquanto chega Eduarda, “Duda”, como foi bordado na bata azul, a provar que não há quarentena para os abraços. A mãe, Fabiana Morais, aproveitou o confinamento para retirar a fralda e ensinar o abecedário à menina de dois anos: “Até ao ‘jota’ já sabe dizer”, orgulha-se. Daniel Leite, de 26 anos, ficou desempregado durante a pandemia e anseia o regresso da normalidade para iniciar o novo trabalho, já apalavrado. A mulher, empregada de limpeza, ficou também sem rendimentos. A escolinha fazia “muita falta” à filha, diz: “Sempre olhámos para a creche com muito respeito. Isto só veio provar que estávamos certos.”
O silêncio foi finalmente quebrado no prédio de quatro andares. Apesar de apenas seis das cerca de 50 crianças terem regressado na primeira fase. Daniela Bernardo não esquecerá o mês que ali passou com outra colega, a trabalhar com os meninos à distância. “Foi muito cansativo estar aqui e não ouvir barulho”, comenta. Agora, o desafio é outro e igualmente complexo: o regresso com segurança implicou uma mudança enorme no espaço e foi preciso aceitar, sem culpas, a impossibilidade de cumprir algumas regras definidas, como a distância entre crianças.
Atrás do portão verde da Travessa da Regeneração, esconde-se um jardim improvável e brincam três crianças. Na creche Primavera procura-se “trazer de novo a normalidade” à vida dos mais pequenos, diz a educadora de infância Gabriela Amaral: “Isto está a ser desformatar para formatar de novo. Pensar cada passo.” Das salas foram retirados muitos brinquedos, as cadeiras foram etiquetadas com os nomes das crianças, o espaço entre os berços aumentado, o refeitório alterado para funcionar por “turnos”. Paula Roseira elogia o resultado sem deixar de expor as dificuldades. E as despesas demasiado avultadas para uma IPSS: “Algumas não vão resistir”, lamenta. “Só para materiais de limpeza e equipamentos para cumprir regras nas duas creches veio um orçamento de 1000 euros. Não é possível”, critica a presidente, a cumprir o último mandato.
A continuidade da Benéfica, criada no século XIX como pivô da organização de empregados de comércio a enfrentar o drama do desemprego, tem uma força motriz. “A quantidade de pessoas excluídas no Porto é tão grande que não podemos parar.” As candidaturas a apoios, conta, raramente correm bem: “São pedidos projectos inovadores. A nossa inovação é criar com muito poucos recursos.”
Um sonho anti-solidão
Rua de Barros Lima, Bonfim. A carrinha branca da Benéfica está estacionada e no primeiro andar de um prédio duas trabalhadoras terminam o trabalho na casa de Adelaide Almeida. Cabelos brancos, voz determinada, a mulher de 85 anos resume a sua chegada à cadeira de rodas: “Um dia estava com dificuldades em respirar, sentei-me no sofá. Fui parar ao hospital… Nunca mais fui a mesma.” O diagnóstico de um problema nos rins veio com prescrição de hemodiálise para o resto da vida. Adelaide Almeida enviuvou, mas apesar de viver sozinha nunca se viu só. A filha, professora, entra em casa todos os dias às 7h30 da manhã e visita-a de novo ao fim do dia. Tem uma empregada durante o dia, dois cães e a TV sempre ligada. “São a minha companhia.”
Adelaide tem 85 anos e faz hemodiálise. A Benéfica visita-a todos os dias
Paula Roseira sonha com uma equipa de voluntários anti-solidão para quem não tem essa retaguarda. Aos 150 utentes a quem a Benéfica dá apoio domiciliário falta, muitas vezes, ouvidos e olhares atentos. Sem pressas. “É preciso formar pessoas para termos uma estrutura que não falhe. Não posso criar a expectativa de haver um apoio de voluntários e depois ele desaparecer”, explica. A intervenção social, aponta a presidente da associação, não deve ser assistencialista, mas transformadora. “Não somos a favor da esmola, somos a favor de direitos iguais para todos.”
O caminho é ainda longo, como o corredor de acesso à casa de Esperança e Júlio Barbosa, numa ilha escondida na Rua da Firmeza. Depois de três AVC, a mulher ficou com mobilidade reduzida: não caminha nem toma banho sozinha. E só se movimenta com cadeira de rodas. Só os bombeiros a podem retirar da casa, com escadas, mas cobram 45 euros por deslocação. A equipa da Benéfica vai lá todos os dias: faz a higiene, muda-lhe a roupa, passa-a para a cadeira. Pelo meio-dia leva o almoço. “Vêm sempre com boa disposição”, diz Esperança, devagarinho. “São a nossa distracção e alegria da manhã”, acrescenta Júlio, numa dedicação quase devota à mulher. A ilha onde vive há 55 anos foi vendida, em breve vão mudar-se para outra em Campanhã, e a tristeza não é camuflável: “Foi muito tempo aqui…”
Isabel Andrade e Lúcia Ferreira, máscara e viseira postas, terminam o serviço e dão dois dedos de conversa. “Antes que elas digam, e com razão, digo eu: este é um trabalho muito mal pago”, lamenta, categórica, Paula Roseira. As duas trabalhadoras com salário mínimo acenam. “Não é reconhecido. É preciso gostar do que se faz, porque se atura muito…” Palavras de Isabel, há dias atropelada de propósito pela mulher de um utente. “Fui ao charco nessa altura”, admite, ainda transtornada. Lúcia nem gosta de se lembrar: a ambulância a chegar, a polícia, a mulher ainda provocadora. E ela a tentar manter a calma. Quando Paula Roseira soube, comunicou-lhes que iria tentar cancelar esse domicílio. Mas elas recusaram. Apesar da revolta. Lúcia Ferreira explica a luta da qual não se desiste: “A maior parte dos idosos já estava abandonada, portanto não era agora com a pandemia que a família vinha cuidar deles. Precisam de nós.”