Relatório da Polícia Judiciária que abrange o período de 2014 a 2019 mostra que 16% do total de homicídios ocorridos em Portugal verificaram-se em relações de intimidade. E traça retrato-robot de homicida e vítima: adultos da mesma faixa etária, entre os 41 e os 60 anos, “de origem caucasiana, de nacionalidade portuguesa e profissionalmente empregados”.
Estes são os dados do relatório publicado recentemente, Homicídios nas relações de intimidade - Estudo dos Inquéritos investigados pela Polícia Judiciária (2014 a 2019), em que se traça um retrato do crime ao longo deste período.
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Segundo se verifica no relatório da PJ, a percentagem de femicídios relativamente ao total variou consoante o ano: em 2019 atingiu os 20%. Mas foi em 2014 que a percentagem foi mais alta (22%), tendo descido nos anos seguintes para 17%, 13% e 8%, e voltado a subir em 2018 para 15%.
Para a Polícia Judiciária este peso percentual dos homicídios nas relações de intimidade, face ao número global de homicídios, “justifica a atenção da sociedade e das autoridades públicas”.
Mas onde e quando ocorreram os crimes? Quem foram as vítimas e os agressores? Eram ambos adultos da mesma faixa etária, entre os 41 e os 60 anos, “de origem caucasiana, de nacionalidade portuguesa e profissionalmente empregados”, refere o relatório. Os agressores pertenciam sobretudo ao grupo de trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices, e o mais comum foi o facto de terem baixa formação académica — 34% não passou do primeiro ciclo.
Em quase metade das situações vítima e homicida eram casados e em 66% coabitavam. Também tinham filhos (57% dos casos). O crime ocorreu em casa dos dois, sobretudo no primeiro trimestre do ano, durante a noite, entre as 20h e as 05h59. O homicida usou uma arma branca (33% dos casos) - sobretudo faca de cozinha - ou uma arma de fogo (31% das situações), como pistola ou caçadeira. “A incontestável maioria dos autores possuidores de arma de fogo utilizaram-na no crime e, ainda mais relevante: 68% destas estava em situação legal. Especificamente sobre a caçadeira, 67% das caçadeiras utilizadas para cometer o homicídio estavam em situação legal”, refere o relatório da PJ.
Cerca de 70% dos femicídios “ocorrem nos primeiros meses após a separação”
Lisboa com mais casos, Évora com maior taxa
De todos as zonas do país, foi em Lisboa e Vale do Tejo onde se deu maior incidência, com quase 30% dos casos, mas se olharmos para a taxa por 100.000 habitantes é no distrito de Évora que se registam mais femicídios (2,62), seguido de Bragança (2,41) e de Faro (2,28).
Em cerca de um terço das situações o homicida suicidou-se logo a seguir a cometer o crime.
Do relatório conclui-se ainda que em mais de metade dos casos o crime não foi cometido sem aviso prévio: antes houve ameaças de morte pela parte do agressor. Acrescenta-se ainda uma associação ao processo de separação e à existência de antecedentes policiais do homicida, com uma prevalência de ciúmes, perseguição e controlo (73% dos casos). “É notória a predominância de separações físicas de mudança de residência com tempo relativamente curto até o autor executar o crime. A separação física de residência, inferior ou igual a 2 meses, corresponde a 30% do total de ‘graus de separação’, ao passo que a separação física inferior ou igual a um ano corresponde a 42%.”
Em 66% dos casos o agressor tinha história de violência prévia, registada ou não - mas da registada, apenas 27% era por violência doméstica. A PJ destaca o facto de 19 dos agressores terem “referência, exclusivamente, a antecedentes por violência doméstica” —e desses, oito tinham “mais do que uma referência”, o que indicia uma “prática reiterada”, conhecida pelas polícias, referem. Sobre os factores de risco de consumo de álcool, estupefacientes e medicamentos o relatório refere que em mais de metade das situações não foi possível apurar a sua existência — mas, dos que foi possível apurar, 55% dos agressores consumia.
Nos casos que foram julgados, a maioria das penas aplicadas medeiam entre 15 e os 20 anos (acontece em 54%) - em 32% das situações a pena foi de entre 20 e 25 anos.
A PJ traça assim o retrato do fenómeno: “Um casal, heterossexual, casados, caucasianos, de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 41 e os 60 anos, em coabitação, com filhos e ambos empregados. Poderão existir problemas financeiros ou pobreza. O autor, do sexo masculino, com escolaridade até ao ensino básico, poderá desempenhar profissões no âmbito dos trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices. Poderá ter registo de antecedentes policiais e consumir substâncias, particularmente álcool, exibindo comportamentos de ciúmes, perseguição e controlo, chegando a exercer violência física e a proferir ameaças de morte contra a esposa. A esposa decide ou manifesta vontade de separação, podendo mudar de residência. O marido, eventualmente no primeiro trimestre do ano, premedita o cometimento do seu homicídio, possivelmente ainda em coabitação ou no primeiro mês de separação. A situação culmina na execução do crime, porventura no período da noite, recorrendo a arma branca ou à arma de fogo legalizada que possui.”