10.11.20

Mais de 100 mulheres mortas em seis anos pelos companheiros

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Relatório da Polícia Judiciária que abrange o período de 2014 a 2019 mostra que 16% do total de homicídios ocorridos em Portugal verificaram-se em relações de intimidade. E traça retrato-robot de homicida e vítima: adultos da mesma faixa etária, entre os 41 e os 60 anos, “de origem caucasiana, de nacionalidade portuguesa e profissionalmente empregados”.

Em seis anos, 16% do total de homicídios ocorridos em Portugal verificaram-se em relações de intimidade. E, do total de 128 mortes nesse contexto, a esmagadora maioria das vítimas — 111, ou seja, 87% — eram mulheres. Isto é, entre 2014 e 2019 foram assassinadas em média mais de uma mulher por mês em Portugal em contexto de violência doméstica.

Estes são os dados do relatório publicado recentemente, Homicídios nas relações de intimidade - Estudo dos Inquéritos investigados pela Polícia Judiciária (2014 a 2019), em que se traça um retrato do crime ao longo deste período.

Vinte mulheres assassinadas e 25 tentativas de femicídio desde o início do ano, diz a UMAR


Segundo se verifica no relatório da PJ, a percentagem de femicídios relativamente ao total variou consoante o ano: em 2019 atingiu os 20%. Mas foi em 2014 que a percentagem foi mais alta (22%), tendo descido nos anos seguintes para 17%, 13% e 8%, e voltado a subir em 2018 para 15%.

Para a Polícia Judiciária este peso percentual dos homicídios nas relações de intimidade, face ao número global de homicídios, “justifica a atenção da sociedade e das autoridades públicas”.

Mas onde e quando ocorreram os crimes? Quem foram as vítimas e os agressores? Eram ambos adultos da mesma faixa etária, entre os 41 e os 60 anos, “de origem caucasiana, de nacionalidade portuguesa e profissionalmente empregados”, refere o relatório. Os agressores pertenciam sobretudo ao grupo de trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices, e o mais comum foi o facto de terem baixa formação académica — 34% não passou do primeiro ciclo.

Em quase metade das situações vítima e homicida eram casados e em 66% coabitavam. Também tinham filhos (57% dos casos). O crime ocorreu em casa dos dois, sobretudo no primeiro trimestre do ano, durante a noite, entre as 20h e as 05h59. O homicida usou uma arma branca (33% dos casos) - sobretudo faca de cozinha - ou uma arma de fogo (31% das situações), como pistola ou caçadeira. “A incontestável maioria dos autores possuidores de arma de fogo utilizaram-na no crime e, ainda mais relevante: 68% destas estava em situação legal. Especificamente sobre a caçadeira, 67% das caçadeiras utilizadas para cometer o homicídio estavam em situação legal”, refere o relatório da PJ.

Cerca de 70% dos femicídios “ocorrem nos primeiros meses após a separação”

Lisboa com mais casos, Évora com maior taxa

De todos as zonas do país, foi em Lisboa e Vale do Tejo onde se deu maior incidência, com quase 30% dos casos, mas se olharmos para a taxa por 100.000 habitantes é no distrito de Évora que se registam mais femicídios (2,62), seguido de Bragança (2,41) e de Faro (2,28).

Em cerca de um terço das situações o homicida suicidou-se logo a seguir a cometer o crime.

Do relatório conclui-se ainda que em mais de metade dos casos o crime não foi cometido sem aviso prévio: antes houve ameaças de morte pela parte do agressor. Acrescenta-se ainda uma associação ao processo de separação e à existência de antecedentes policiais do homicida, com uma prevalência de ciúmes, perseguição e controlo (73% dos casos). “É notória a predominância de separações físicas de mudança de residência com tempo relativamente curto até o autor executar o crime. A separação física de residência, inferior ou igual a 2 meses, corresponde a 30% do total de ‘graus de separação’, ao passo que a separação física inferior ou igual a um ano corresponde a 42%.”

Em 66% dos casos o agressor tinha história de violência prévia, registada ou não - mas da registada, apenas 27% era por violência doméstica. A PJ destaca o facto de 19 dos agressores terem “referência, exclusivamente, a antecedentes por violência doméstica” —e desses, oito tinham “mais do que uma referência”, o que indicia uma “prática reiterada”, conhecida pelas polícias, referem. Sobre os factores de risco de consumo de álcool, estupefacientes e medicamentos o relatório refere que em mais de metade das situações não foi possível apurar a sua existência — mas, dos que foi possível apurar, 55% dos agressores consumia.

Nos casos que foram julgados, a maioria das penas aplicadas medeiam entre 15 e os 20 anos (acontece em 54%) - em 32% das situações a pena foi de entre 20 e 25 anos.

A PJ traça assim o retrato do fenómeno: “Um casal, heterossexual, casados, caucasianos, de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 41 e os 60 anos, em coabitação, com filhos e ambos empregados. Poderão existir problemas financeiros ou pobreza. O autor, do sexo masculino, com escolaridade até ao ensino básico, poderá desempenhar profissões no âmbito dos trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices. Poderá ter registo de antecedentes policiais e consumir substâncias, particularmente álcool, exibindo comportamentos de ciúmes, perseguição e controlo, chegando a exercer violência física e a proferir ameaças de morte contra a esposa. A esposa decide ou manifesta vontade de separação, podendo mudar de residência. O marido, eventualmente no primeiro trimestre do ano, premedita o cometimento do seu homicídio, possivelmente ainda em coabitação ou no primeiro mês de separação. A situação culmina na execução do crime, porventura no período da noite, recorrendo a arma branca ou à arma de fogo legalizada que possui.”