Ana Henriques, in Público on-line
Mouraz Lopes sorri quando se lhe pergunta qual é a solução para o problema da corrupção em Portugal: “Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Se eu tivesse a resposta estava rico.” Falsa modéstia: na obra Corrupção – O Labirinto do Minotauro, lançado esta semana pela Almedina, este juiz traça, ao longo de mais de uma centena de páginas, um retrato desassombrado das políticas de combate ao fenómeno e lança alguma luz sobre os caminhos a seguir, numa altura em que o Governo submeteu a discussão pública um plano estratégico.Há oito anos no Tribunal de Contas, onde a contratação pública é escrutinada com uma minúcia que nem sempre agrada aos visados pelas auditorias dos juízes, Mouraz Lopes já apontou à ministra da Justiça, num debate público sobre o tema, não entender por que razão áreas de risco como as autarquias locais e o financiamento partidário ficaram de fora do documento que o Governo submeteu a discussão pública.
O autor do livro acha que criminalizar o enriquecimento ilícito não faz falta nenhuma, por já existirem soluções legais para obrigar quem tenta escapar às malhas do fisco a entregar aquilo que é devido. “Levou-se muito tempo a tentar contornar os obstáculos constitucionais, quando o problema ficará mais fácil de resolver com maior efectividade do sistema fiscal”, observa. “Há vários tipos de presunções [de rendimentos] no âmbito fiscal que são suficientes para tratar da disfuncionalidade entre o património que se tem e aquele que se aparenta ter ou não ter.”
Considerar crime um leque cada vez mais alargados de comportamentos, aumentar as molduras penais ou ainda reduzir os direitos de defesa dos suspeitos são opções que não só não resolvem nada, defende, como comportam riscos. “A corrupção é um domínio onde, numa fase mais recente, parecem fervilhar as correntes populistas”, escreve, aludindo a uma espécie de cruzada estribada num discurso securitário que serve sobretudo os propósitos políticos dos seus protagonistas. “O que está em causa no populismo penal é o exacerbar da procura de segurança pública através de respostas punitivas que emergem por via de um apelo à emoção social, essencialmente sustentadas no sentimento de medo que é transmitido aos cidadãos.”
Leis não faltam
Não é por falta de legislação penal que os resultados concretos falham, assegura, remetendo para as magras taxas de condenação em tribunal por este tipo de criminalidade. “Deve questionar-se se fará algum sentido, em muitas áreas, continuar a desenvolver um direito penal sustentado em leis que, ainda que não configurem um carácter meramente simbólico, não têm qualquer eficácia e, pelo contrário, permitem enovelar ainda mais o sistema de justiça penal”, aponta, para em seguida esboçar uma solução: há delitos que podem ser penalizados através de mecanismos sancionatórios de natureza administrativa, obrigando por exemplo o infractor a repor o dinheiro público mal gasto ou aplicando-lhe uma multa – caso se prove que o infractor não agiu em proveito próprio. “As infracções financeiras são muito mais fáceis de investigar do que os crimes. O procedimento é mais rápido”, sublinha o magistrado. Encaminhar a investigação para um lado, para o outro ou até para ambos é uma decisão que cabe ao Ministério Público.
As estatísticas revelam que muitos dos processos-crime ou nem sequer chegam a julgamento ou vêem, com frequência, diminuir o número e a gravidade dos crimes na sentença. Motivos do sucedido? As dificuldades com que o sistema de justiça se debate na investigação deste tipo de criminalidade, impedindo a produção de provas robustas. Uma situação que “deslegitima a justiça e lança sobre ela uma suspeição: a sua incapacidade ou falta de vontade em acusar e condenar os agentes desta criminalidade, em regra, pessoas socialmente poderosas”. Para o fracasso contribui ainda o recurso, por parte dos criminosos, a especialistas exclusivos, capazes de transformar determinado comportamento aparentemente ilícito numa mera situação de risco, justificável à luz de alguns dos padrões do sector financeiro.
“Deve exigir-se um outro papel aos reguladores financeiros no domínio da prevenção da corrupção e patologias conexas”, tal como de resto já sucede no que diz respeito à prevenção do branqueamento de capitais, preconiza Mouraz Lopes, para quem as inspecções-gerais do Estado podem assumir uma missão crucial neste combate, dado o conhecimento detalhado que possuem dos sectores em que actuam.
Governo quer criar agência para multar quem não cumprir medidas anticorrupção
Porém, estão nesta altura exauridas de recursos materiais e humanos. Mais de metade destas entidades “dispõem de menos de dez inspectores/técnicos superiores afectos ao controlo da actividade financeira do Estado”, refere um relatório oficial, dando conta da “diminuição de competências técnicas em domínios estratégicos, como o controlo financeiro e a contratação pública, face à desvalorização das suas funções pelos sucessivos governos”.
“Poderes elas têm. Mas por falta de meios ficam muito aquém da sua capacidade de intervenção”, observa Mouraz Lopes, criticando a falta de coordenação entre as diferentes entidades com competências em matéria de prevenção e repressão. “Nem têm capacidade de trocar informação entre elas. É trágico”, observa. Por outro lado, continua, é preciso mudar a tramitação do processo de aplicação de coimas por parte das entidades reguladoras às empresas de sectores como a energia, a banca ou a concorrência – sob pena de, apesar dos seus valores elevadíssimos, prescreverem todas durante os recursos das visadas.
Mouraz Lopes não crê que Portugal seja um país de corruptos. Acha até que, por comparação com os seus congéneres europeus, o país está em melhor situação que muitos outros países, com um nível médio-baixo de práticas indesejáveis. Mas não escamoteia que os dinheiros públicos parecem agarrar-se mais às mãos de quem dirige ou negoceia com determinados sectores – construção civil, energia, transportes, defesa e saúde –, em linha com o que se passa também noutros países europeus.
A incapacidade das instituições de controlar as fraudes com os fundos comunitários não é, também, um exclusivo português – mas ganha nova relevância à medida que se aproxima a chegada dos dinheiros europeus destinados a minorar os efeitos da pandemia. “A sua utilização tem de ser acompanhada permanentemente em tempo real – o que hoje em dia é possível fazer, para não sucederem os grandes problemas do final dos anos 80”, avisa o autor de O Labirinto do Minotauro. “As pessoas esquecem-se de que o dinheiro público não cai do céu. Vem dos impostos que pagamos todos – e não é pouco”, remata o juiz.
A bonita lei das incompatibilidades dos titulares de cargos políticos
“O que é que nos interessa ter uma lei muito bonita se não a aplicamos? Esse é o problema”, declara Mouraz Lopes quando fala do regime de incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, mas também da fiscalização das contas partidárias. “A entidade que fiscaliza estas contas não tem capacidade de verificar em tempo útil a contabilidade de todos os partidos”, alerta, explicando que há casos em que as irregularidades detectadas acabam, por essa razão, por prescrever. Para este perito no fenómeno são evidentes as fragilidades na detecção e impedimento de comportamentos ilícitos que envolvam donativos, quotizações ou outras ilegalidades, todas elas susceptíveis de porem em causa a transparência do processo democrático.
Por outro lado, a lei que proíbe, por exemplo, os ministros, em determinadas circunstâncias, de exercerem funções em empresas da sua área governativa durante três anos permite que os ex-governantes sejam contratados na qualidade de seus assessores e consultores. “Estou a deixar entrar pela janela o que a porta proíbe. É uma das fragilidades da legislação”, observa o juiz do Tribunal de Contas, para quem têm de ser criadas condições para o cumprimento da lei. Porque o grande problema, defende, é sobretudo quando se sai do cargo para ocupar um lugar no sector privado. “É um direito que toda a gente tem, mas é preciso criar um período de nojo efectivo. Tem de haver uma entidade que fiscalize isso, doa a quem doer – e tem haver uma auto-responsabilização das próprias empresas”, defende Mouraz Lopes. A.H.