16.11.20

Os “jovens” de 90 anos que continuam a ser inspiradores

Carla Soares, in Visão

É a primeira vez que há tantos nonagenários física e mentalmente ativos na História da Humanidade. Existências mais longas resultam, confirma a Ciência, da evolução social, impondo uma mudança de paradigma. Reunimos seis histórias de quem entrou nesta década e tem algo em comum: sentir-se bem na sua pele, nutrir entusiasmo pela vida e inspirar outros, sem temer os desafios deste tempo

“Envelhecer é um processo extraordinário, em que nos tornamos na pessoa que devíamos ser.” David Bowie, que não chegou aos 90, viveu no presente “o seu tempo”. Abrir-se ao novo dia e dar-lhe valor acrescentado torna-se mais claro à medida que se avança no caminho, sem se saber quando ele termina. Em 2030, segundo as estimativas das Nações Unidas, Portugal será o terceiro país mais envelhecido do mundo, a seguir ao Japão e à Itália. Hoje, quase um em cada 100 residentes tem entre 90 e 99 anos (um em cada 95, se incluirmos os centenários).

Nunca se ouviu falar tanto deles, os nonagenários: desde o início da pandemia, muitos queixam-se, legitimamente, de estarem a ser infantilizados e sem voz. Nos anúncios publicitários televisivos, progressivamente posicionados para as faixas etárias mais avançadas, eles observam: “Velhotes não, maiores”, como que a exorcizar rótulos com cunho pejorativo. Velhos, seniores, inativos. Porém, essa não é a história que conta quem não se define pelo cartão de identidade, pautando-se por uma coerência assinalável, feita de escolhas e potenciada pela combinação de circunstâncias genéticas, culturais, socioeconómicas e afetivas.

Na casa de Ivone Melo, no concelho de Loures, há uma varanda que parece um jardim, um altar com fotografias de gente querida, uma cadela e vários pássaros. Viúva há mais de quatro décadas e a morar sozinha há 25 anos, Ivone vai mostrando a sala com livros, peças de arte africanas e sofás forrados por ela. “As falhas de visão (degenerescência da mácula) já não permitem trabalhos de minúcia”, observa a antiga costureira que celebrou, em maio, 96 primaveras na companhia de filhos, netos e bisnetos. Fazia-lhes bolos, roupas, bordados e álbuns fotográficos. Agora fala com eles diariamente e continua a surpreendê-los. O amor pelo Benfica, o desejo de andar de mota, recentemente satisfeito pelo namorado de uma das netas, e saltar de paraquedas, a prenda que pediu no aniversário e que não obteve consenso familiar.Vida boa aos 96 O amor pelo Benfica, os pássaros e a família. A superavó Ivone Melo já andou de mota e até entrou num filme Foto: Diana Tinoco

Ao longo dos anos, Ivone continua a levar “uma vida normal” e explica: “Não sou de estar a comer e a ver televisão, quando não há o que fazer, invento.” Lembra-se de ser criança e de subir às árvores, de pregar partidas e de pedalar entre Queluz e a Amadora, e do namoro não aprovado pela família que a enviou para o Norte por uns tempos. A troca de correspondência após responder a um anúncio, “por brincadeira”, acabou com aliança no dedo e “tempos muito felizes” em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique. Esteve lá há dois anos, com uma das filhas, e chorou quando teve de regressar. “Quero lá voltar quando chegar aos 100!”

Aos olhos dos seus, Ivone é uma mulher com fibra e uma “pândega”. A neta, Mónica Fernandes, conta como a “superavó Bá” foi parar à curta-metragem de Margarida Lucas, Sagrada Família (2019): “A equipa colocou uma nota à porta do prédio a fim de alugar casa para filmagens; viram o sorriso dela, as aves e os cachecóis do Benfica e convidaram-na para ser a dona Laura.”

Autónomas e ativas
A vida de Ivone exemplifica a realidade de muitas mulheres: elas representam 73,7% dos nonagenários no nosso país e, não por acaso, nota a demógrafa Maria João Valente Rosa, “até agora a única palavra pronunciada no feminino era ‘avós’”, o que espelha esta maioria esmagadora. A viuvez representa, com frequência, um ponto de viragem e uma oportunidade de reinventarem-se, de forma autónoma e não necessariamente solitária.

“A idade cronológica não nos define”, afirma a demógrafa Maria João Valente Rosa

Maria Helena Braga tem 91 anos e uma vida dedicada à família: seis filhos, 16 netos e 15 bisnetos. O marido, diabético, morreu há 20 anos, já ela se tinha iniciado na prática de ioga, por sugestão da terceira filha. Gostou tanto que optou pela profissionalização, deixando inacabado o curso de enfermagem. Hoje dá aulas a pessoas com mais de 65 anos num centro de dia privado, em Lisboa. Dá-lhe saúde e propósito: “O ioga preenche-me brutalmente, e ajudar os outros dá-me gozo; sem isso não sei como seria a minha vida.” A interrupção forçada pela pandemia implicou ajustes: exercita-se em casa, dia sim, dia não, e o convívio com amigas e alunas é feito por telefone. Custou-lhe regressar mais cedo do que o previsto da viagem ao Brasil para celebrar os 90 anos de uma amiga, em março, e viu-se privada dos concertos de ópera da Gulbenkian, de que é frequentadora assídua.

Os seus dias são ocupados a fazer tricô, a cozinhar e a atualizar-se: “Livros e jornais não podem faltar cá em casa.” Dois dos filhos que moram no prédio trazem-lhe as compras. Das suas rotinas fazem parte a habitual volta ao quarteirão, as idas ao cabeleireiro e à missa, na igreja da Encarnação, Lisboa. E aprecia as temporadas no Norte. “O carro que eu tinha já foi, uso o comboio, mas agora os filhos levam-me e trazem-me”, adianta. ”Problemas, todos temos”, dirá mais tarde, sobre os contratempos da vida. “Quando morreu o meu marido, senti-me muito só, mas tenho fé”, assegura. “Estou grata pelo que vivi e procuro tirar partido do que tenho, sem me fixar no que acabou.” Apetece parafrasear Jorge Palma: “enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”. Quão longe podemos ir?

Ativos pelo mundo

Sete figuras públicas que são a prova viva de como a idade cronológica não nos define


Clint Eastwood 90 anos Com quatro Oscars no currículo e vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes pela sua carreira, o icónico ator, produtor, compositor e realizador não pensa na idade e preserva a imagem de “duro” e sedutor, qual bom vinho que melhora com a passagem do tempo. Pai por oito vezes, pratica meditação, tem uma alimentação saudável e faz exercício físico

Planear tempos longos
“Não somos imortais, mas também não sabemos qual o tempo máximo de vida”, afirma Maria João Valente Rosa, autora do livro Um Tempo sem Idades (€13,90, Tinta-da-china). Apoiando-se nas projeções do Instituto Nacional de Estatística (Cenário Central) – em 2040, as pessoas com 90 e mais anos poderão vir a ser 239 mil (sendo hoje cerca de 94 mil) –, salienta que o aumento do tempo médio de vida deve ser entendido como mais tempo para se viver (em vez de se ser velho por mais tempo). O paradigma social tem de mudar. “Envelhecer é um processo diferencial que ocorre antes dos 90, 60 ou 50; estaremos a distorcer a realidade se não olharmos a heterogeneidade e as cambiantes sociais das pessoas mais velhas.”

A demógrafa refere-se às várias idades: a psicológica (como nos sentimos subjetivamente) e a biológica, que pode regredir com mudanças no estilo de vida e que é influenciada pelos tempos. “No futuro, as pessoas serão mais qualificadas, conectadas, próximas da tecnologia, com menos descendência e consumos mais diversificados.” Para a docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, “a idade cronológica não nos define”. De resto, as sociedades mais envelhecidas foram as que mais avanços fizeram no combate às doenças e na planificação de tempos longos, como o Japão. “Estar entretido não dá sentido, valor social ou reconhecimento na comunidade, algo que só poucos conseguem”, diz.

É a altura de mudar classificações assentes na idade da reforma

Em sociedades pouco preparadas para este cenário, a reforma pode ser um fator de risco: “Adormece-se ativo, acorda-se inativo e não é aos 65 anos que se começa a planear.” Há outro problema, adverte o sociólogo e investigador Manuel Villaverde Cabral: mais de metade dos “seniores” são iletrados informáticos e têm menos acesso às atividades próprias do envelhecimento ativo que pressupõem atividade física e uma socialização não circunscrita à família e à residência. “Quem chega à quarta idade (a partir dos 80) está ao nível dos 70 anos”, elucida Renata Benavente, coordenadora do Grupo de Trabalho de Psicogerontologia da Ordem dos Psicólogos. Chegou a altura de “mudar classificações assentes na idade da reforma, cujo alargamento é um tema sensível”.

O que diz a Ciência
No livro Homo Deus, o historiador israelita Yuval Noah Harari afirma que “os seres humanos morrem devido a uma falha técnica”. A meta da Ciência moderna é encontrar soluções para essas falhas. Há 40 anos não era óbvio o impacto negativo de um sono pobre, má nutrição, doença cardiovascular e, até, da depressão, fator de risco para a doença de Alzheimer. “Pela primeira vez, em 2015, registou-se uma redução no número de novos casos”, confirma Luísa Lopes, neurocientista do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), em Lisboa.

Estar bem na nona década de vida implica “manter a atividade física, mental e social que se tinha em idades prévias” e contar com a ajuda dos “amigos” do cérebro. “Os estudos epidemiológicos, também em Portugal, mostram que a toma diária de dois a três cafés protege o funcionamento e a saúde dos neurónios.” Na pesquisa em curso no iMM estão a “testar a saúde das sinapses e as propriedades cognitivas e antienvelhecimento da cafeína, que tende a normalizar a excitabilidade neuronal”.

Se o envelhecimento não mata, os processos inflamatórios sim. Vencedora do prémio Sartorius & Science 2019, a investigadora Joana Neves descobriu que as proteínas produzidas pelas células imunológicas tinham um papel-chave na redução da inflamação em moscas-da-fruta. No iMM, Joana Neves lidera com Pedro Sousa-Victor o Grupo de Envelhecimento e Reparação de Tecidos. “Vamos apurar se o uso de proteínas específicas do sangue (fator neurotrófico derivado de astrócito mesencefálico ou MANF) aumenta a eficácia de tratamentos com células estaminais.” A meta é contribuir para desenvolver fármacos com fins de rejuvenescimento, pois os benefícios do uso de sangue de animais jovens em animais envelhecidos foram demonstrados, há 15 anos, por investigadores norte-americanos.

Estar bem na nona década de vida implica manter a atividade física, mental e social que já se tinha

No ano passado, a equipa portuguesa publicou um artigo na revista Nature Metabolism, com resultados inovadores: “Os níveis de MANF na circulação decrescem com a idade; no nosso estudo, verificámos que a suplementação da proteína em organismos velhos era suficiente para rejuvenescer o fígado”, afirma Joana Neves. A pesquisa liderada por Alana Horowitz, publicada na revista Science, em junho, foi ainda mais longe: injetar plasma de animais de meia-idade exercitados em cobaias idosas revelou-se um substituto do exercício físico, promotor da neurogénese cerebral e das capacidades cognitivas. O segredo parece estar num fator mediador do plasma (fosfolipase D1).

Elixir da juventude? Os chamados senolíticos, ou moléculas que combatem a senescência, são já utilizados no tratamento do cancro para induzir a morte seletiva de células envelhecidas, mas o seu campo de atuação pode ser alargado. Joana Neves afirma: “A ideia é conseguir drogas para prevenir ou reverter doenças que têm o envelhecimento como fator de risco.”

A força das escolhas
Envelhecer não é um processo homogéneo: ocorre a ritmos diferentes, em cada pessoa e nos seus vários órgãos, numa equação complexa. “Estudos em gémeos demonstraram que a genética contribui em apenas 25% para a longevidade, enquanto a influência ambiental e o estilo de vida têm um peso da ordem dos 60%”, avança o médico Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia. “Os fatores socioeconómicos, a alimentação saudável, o exercício físico e não fumar nem beber em excesso são preditores do envelhecimento são.” A ausência de incapacidades e doenças, a manutenção das funções físicas e mentais e o envolvimento ativo com a vida, a par da medicina curativa e preventiva, permitem idades avançadas em melhores condições: “Em rigor, o que está a aumentar não é a velhice, mas a meia-idade.”Natureza imparável Aos 97 anos, Adriano Moreira lançou mais um livro, trabalha em casa para a Academia de Ciências, mantém-se no Conselho da Escola Naval da Marinha e escreve para revistas e jornais. “Se eu não tiver isto tudo para fazer, e faço-o com gosto, morro!”

“Em rigor, o que está a aumentar não é a velhice, mas a meia-idade”, diz o médico Manuel Carrageta

Um dos casos mais emblemáticos que ilustram estas evidências é o de Adriano Moreira que fará 98 anos, em setembro. Nascido em Grijó, Macedo de Cavaleiros, o antigo ministro, deputado e ex-líder do CDS acaba de lançar o livro A Nossa Época – Salvar a Esperança, que mereceu elogios rasgados do Presidente da República. “Uma sorte”, brinca, aludindo ao facto de ter sido em vésperas do confinamento.

Agora trabalha em casa para a Academia de Ciências, mantém-se no Conselho da Escola Naval da Marinha (que lhe ofereceu a Espada de Honra de Almirante) e escreve para revistas e jornais, com o Mensageiro de Bragança a ocupar um lugar especial no seu coração, ou não fosse a sua terra, onde já está feita a instalação para a sua biblioteca, além de “tanta gente inteligente com projetos de solidariedade” (iniciativa do Politécnico, de apoio a estudantes africanos). Até ao ano passado, fez parte do Conselho de Estado e, enquanto mostra a varanda da residência, no Restelo, nota: “Está a ver aquele pinheiro ali? Vou ter de cortá-lo, não vá uma rajada de vento cair sobre a casa do vizinho.” Sempre acompanhado pela mulher, Mónica, que a brincar chama “chauffeuse” por ser ela a conduzi-lo nos passeios a Sintra, vê nela o seu pilar e acrescenta, com humor: “O meu encargo foi sempre a família, desde aquela submissão de apaixonar-me.”

Seis filhos, 15 netos e o ritual diário de partilhar fotos por WhatsApp. “Veja esta, logo pela manhã, pronto para mais um dia ativo”, orgulha-se Mónica. Uma alegria, sobretudo depois do “grande susto” no ano passado, uma queda monumental a descer a escada que os levou a passar o Natal no hospital. “Sempre tive boa saúde”, faz saber o homem que fumou vários maços por dia, durante 40 anos. “Deixei de um dia para o outro, quando estive 24 horas sem fumar para uma cirurgia à coluna.” Nunca está só – a sua fé e os seus, os amigos e os projetos profissionais: “Se eu não tiver isto tudo para fazer, e faço-o com gosto, morro!”

Interditado pelo médico de andar de avião, lamenta não ter estado na cerimónia de homenagem que lhe organizaram e, comovido, afirma: “Dei a condecoração ao neto que tem 5 anos e o meu nome.” Não podia faltar, ainda, a reflexão sobre o estado do mundo: “A Peste Negra levou à Guerra dos Cem Anos; se ganharmos a batalha da saúde, a ordem internacional tem de ser reinventada, com coração e responsabilidade.”

Ao encontro da satisfação
Chegar aos 90 num mundo veloz é um exercício criativo. O escritor luso-holandês José Rentes de Carvalho vive, há mais de seis décadas, em Amesterdão. Autor do blogue Tempo Contado (título do livro publicado em 2010), onde se apresenta como “patrão da barca”, aceitou o desafio da VISÃO e, via email, discorreu sobre os seus dias passados “sem gerência ou planeamento, antes num descansado deixa andar, daí ser mínimo o espaço para que eu me aborreça ou me deixe aborrecer”. É assim há 30 anos, após a reforma. No registo irónico a que nos habituou, diz limitar os contactos sociais à família e a um número reduzido de amigos, o que “desagradaria a quem gosta ou precisa de agitação”.

Viciado na leitura, dedica-lhe entre três e quatro horas por dia e é pouco dado a passatempos. Assume-se um “sedentário, de facto um preguiçoso”, mas caminhar é outro dos seus prazeres: “Com um passeio quase diário de quatro a cinco quilómetros, no magnífico parque aqui ao pé da porta (Gaasperpark), alivio o cérebro e mantenho um mínimo de forma física.” Por falar nisso, “é um bocado aborrecido constatar que na muita idade o corpo deixa de ser uma máquina obediente e se torna um companheiro refilão”.

Às vezes, diverte-se a desempenhar o papel de idoso: “Se me dou conta de que o interlocutor espera que não me mostre demasiado ativo nem saudável, sou capaz de queixar-me do que não sofro.” Na verdade, sobe e desce os 13 degraus na casa de dois andares “dezenas de vezes ao dia”. O premiado jornalista e romancista adianta que lhe é essencial a amizade, a ternura, a franqueza e a camaradagem, além do “descanso que é encontrar satisfação no que tenho, não ambicionar mais do que aquilo que a vida e o destino me dão e poder olhar para o passado sem medo nem vergonha”.

Fazer o que se gosta
O dramaturgo irlandês George Bernard Shaw dizia que envelhecemos porque paramos de brincar. Presença incontornável no teatro, televisão e cinema, a atriz Eunice Muñoz completou 92 anos, a 30 de julho. Introvertida assumida, surpreendeu todos com a sua entrada em direto no Instagram (com a ajuda da neta) na edição especial de Como É Que o Bicho Mexe?, do humorista Bruno Nogueira, na madrugada do 25 de Abril. “Não organizo o meu dia, as coisas que me aparecem, eu faço-as; as coisas que me apetece fazer, faço-as.” Lê muito, gosta de trabalhos de cozinha, “não a grande cozinha porque não sei fazer”, e de momentos de contemplação: “Acho que estou na idade de olhar profundamente para cada objeto, dá-me um imenso prazer.”

Estar bem na nona década de vida implica manter a atividade física, mental e social que já se tinha

Sempre que possível, continua em palco: “É agradável ir à televisão e fazer um pequeno papel, enfim, uma amostra do que eu poderia fazer se tivesse outra idade.” A palavra “desafios” poderá assustar muita gente, mas não a ela: “Escute, eu toda a minha vida fiz mudanças, a minha própria profissão é uma mudança constante; portanto, mudanças são de uma vida inteira e de quase 80 anos de carreira.” Aqui chegada, atribui importância a coisas nem sempre valorizadas quando se é jovem: “Agora sou capaz de parar para ouvir os pássaros e dar-lhes de comer. Dou muito mais importância à Natureza, desde que tenho esta idade.”

Esta idade é, também, o que fazemos dela até lá chegar. O cirurgião António Gentil Martins, 90 anos, pioneiro na cirurgia de separação de pares de gémeos siameses, não duvida de que “fazer o que se gosta” é essencial para se chegar aos 90, entre outros fatores: “O primeiro terá sido a genética, a chamada ‘boa cepa’, seguindo-se a forma como levámos a juventude até à idade adulta.” E os valores transmitidos na educação, da solidariedade ao respeito pelos outros, passando pela “defesa intransigente daquilo que sinceramente acreditamos ser verdade” e a união familiar.Boa cepa Os genes ajudam; cultivar bons hábitos de saúde, também. Aos 90, o cirurgião e antigo atleta olímpico António Gentil 

Tem bons hábitos de sono, nunca fumou e já não pratica as modalidades desportivas em que se envolveu (ténis, badmínton e tiro com pistola automática a 25 metros, que o levou aos Jogos Olímpicos de Verão, em 1960). Deixou de andar de bicicleta e a cavalo, e raramente conduz. Em fevereiro, o ex-presidente da Ordem dos Médicos e da Associação Médica Mundial “fechou a loja” no IPO e no consultório. “Como dizia um célebre Nobel, já não sou suficientemente novo para saber tudo!” A vida é limitada, não se pode perder tempo. “A prioridade é registar no papel ideias inovadoras e publicar trabalhos sobre técnicas cirúrgicas originais, pois o que não fica escrito será esquecido.”

Nunca é tarde
Se depois de tudo isto ainda pensa que a vida não reserva surpresas, nesta fase do campeonato, vale a pena conhecer a inspiradora história do norte-americano Kenneth Felts, do Colorado, divulgada recentemente no Washington Post: aos 90 anos, saiu do armário e está a escrever as suas memórias. Desde os 12 que sabia ser homossexual, mas, sendo cristão, manteve secreta essa parte de si. A pandemia e o confinamento fizeram-no voltar ao passado, a Phillip, o amor da sua vida, que conheceu na Califórnia aos 29 anos. Ano e meio de vida em comum na clandestinidade. O Ken heterossexual venceu: casou-se, foi pai, divorciou-se e, quando a filha Rebecca, hoje com 48 anos, lhe revelou ser lésbica, reagiu mal por temer a discriminação social e laboral.

O linfoma detetado no final do ano passado e o novo coronavírus levaram-no a enfrentar a sua verdade. Anunciou-a, à filha e ao mundo, via Facebook, pondo fim a tanto tempo de culpa e de sofrimento. Curado da doença e com muitas mensagens de apoio, quis reencontrar Phillip. Descobriu que ele morrera dois anos antes. Ficou devastado, mas havia algo que ele podia, ainda, fazer: tornar público o romance. Mudou o roupeiro, comprou uma bandeira do orgulho gay, em junho foi à marcha LGBTQ. Moral da história: nunca é tarde para abraçar quem se é (e motivar os outros a fazer o mesmo). Kenneth vive cumprindo a “profecia” de Bowie: envelhecer pode mesmo ser um processo extraordinário.


5 segredos da longevidade ativa

1 – Envolvimento
Ter uma função na comunidade, na igreja ou no clube dá sentido à vida e conforta tanto como realizar projetos adiados.

2 – Mobilidade
Caminhar, subir e descer escadas, bem como fazer exercício regular adaptado à condição física, até mesmo a passear o cão.

3 – Parcimónia
Aplica-se à alimentação (menos sal, carne, álcool, açúcar), aos aditivos, à medicação e aos hábitos e relacionamentos nocivos.

4 – Relaxar
Se os hábitos de sono se alteram, a solução é deitar-se cedo e aproveitar o tempo de vigília sem pressas.

5 – Socializar
Fazer o que dá gozo, com familiares, amigos e vizinhos, e ter por perto uma lista de contactos para o caso de ser necessário