Helena Bento e Tiago Soares, in Expresso
Em abril, o Governo libertou 2155 reclusos para evitar o contágio nas prisões. Muitos acabaram sem apoios e a dormir nas ruas. “Não sabia para onde ir”. Nesta segunda onda, não haverá novas libertações. Apesar de o vírus ter chegado em força às cadeias
Na prisão, perguntaram a Francisco Fonseca, 48 anos, se tinha onde ficar. Ele disse que sim, mas estava a mentir. “Saí às seis e tal da tarde, sem dinheiro, sem nada. Senti-me desesperado, porque não sabia para onde ir.” Dormiu duas noites na rua e à terceira foi a casa de um amigo que conheceu no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Fumaram, “mas só uma ganza”, beberam uns copos, “mas só cerveja”. Sentiu-se melhor, mas por pouco tempo.
Entrou num autocarro e começou “a sentir o corpo a desligar”. Pediu ao motorista para chamar o 112, mas ele não acreditou e fê-lo sair na última paragem. Francisco obedeceu, deu uns passos e caiu no chão. Os bombeiros chegaram pouco depois.
Francisco — cujo crime pelo qual foi condenado o Expresso não divulga, seguindo a prática das associações que trabalham na área — viu a sua pena perdoada a 14 de abril, três dias depois de entrar em vigor o regime que determinou a libertação de reclusos nas prisões nacionais. Saíram mais de duas mil pessoas: 1415 perdões parciais da pena, 726 saídas administrativas (281 das quais resultaram em liberdade condicional) e 14 indultos presidenciais. O objetivo era criar espaço nas cadeias e evitar surtos de covid-19, mas várias associações ouvidas pelo Expresso garantem que muitos reclusos ficaram sem apoios e habitação durante a pandemia.
“Muitos disseram que tinham apoio cá fora, quando não tinham. Só assim podiam sair da prisão”, conta José Brites, presidente da associação O Companheiro, que apoia reclusos e ex-reclusos e onde Francisco foi acolhido. A saída implica “provas eficazes de que o recluso tem quem o apoie no exterior”, mas desta vez não houve tempo para isso.
Outra fonte de uma associação é perentória: “Saíram ao calhas. Foram libertados de um momento para o outro, foi uma desorganização, tudo feito à pressa. Abriram simplesmente as portas da prisão e os reclusos foram deixados ao deus-dará, sem dinheiro, sem terem para onde ir.”
Ao Expresso, o Ministério da Justiça e a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) fazem um balanço “positivo” da aplicação do regime de flexibilização de penas. Dos 2155 reclusos que viram as penas perdoadas, 70 regressaram à prisão por novos crimes. Também regressaram 84 dos reclusos com licença administrativa, por incumprimento das regras, 11 não consentiram na renovação da licença, 11 regressaram voluntariamente e 14 não viram a licença renovada por parecer desfavorável dos serviços prisionais.
LIVRES, A DORMIR NA RUA
“Situações de emergência obrigam a respostas de emergência”, diz José Brites, reconhecendo que “poderia ter havido um acompanhamento mais específico. Alguns reclusos ficaram sem acesso a medicação depois de serem libertados. Também foram interrompidos programas de substituição de metadona”.
O Ministério assegura que as pessoas libertadas “levaram consigo receitas para se dirigirem a farmácias e adquirir medicamentos”. Sobre o processo de libertação, que, de tão repentino, terá impedido uma saída organizada das prisões, sublinha que “a libertação dos reclusos é feita em função dos mandados de libertação recebidos dos tribunais e tem execução imediata”.
Rui não largava o rádio na prisão, mas acabou por ser surpreendido pelo vírus quando saiu. “Eu sabia da pandemia, mas não tinha noção do problema. Não me disseram nada lá dentro.” Tem 53 anos, foi libertado de Caxias em abril: saiu sem dinheiro, era fim de semana, os bancos estavam fechados. Ficou sem saber para onde ir e pedir ajuda à família não era uma hipótese: não sabem sequer que esteve preso.
Francisco Chaves, presidente da Desafio Jovem, que apoia pessoas com problemas de dependência, lamenta não ter podido acolher um ex-recluso, que acabou “a dormir na rua, sentado num banco de jardim em frente à prisão”. Um guarda que o conhecia deu-lhe comida durante a noite. “Era domingo e já muito tarde. Se fosse buscá-lo, estaria a violar as normas da DGS.” Descreve o processo de libertação como “caótico”. “Foram colocados não sei quantos reclusos nas ruas sem articulação com as diferentes instituições.”
Celestino Cunha, da Comunidade Vida e Paz, que distribui comida nas ruas de Lisboa, encontrou alguns deles, “entre 20 a 30”, nas suas rondas pela cidade. “Logo depois de ter sido anunciada a libertação, começámos a encontrar mais ex-reclusos. Diziam-nos que tinham acabado de sair e não tinham para onde ir.”
Vários acabaram por recorrer à Unidade de Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Foram 33, entre 14 de abril e 7 de maio. “Nunca tivemos um boom assim”, diz Marisa Melo, assistente social, admitindo que não houve qualquer contacto por parte da DGRSP para agilizar os processos, como está definido. “Ninguém saiu daqui sem ser alojado”, garante Celeste Brissos, diretora da unidade.
No Grande Porto, as equipas de ajuda a sem-abrigo (NPISA) tiveram conhecimento de 30 ex-reclusos nesta situação. Fernando Paulo, vereador da câmara e coordenador do NPISA no distrito, lamenta que o processo tenha sido “atabalhoado”. Destas 30 pessoas, 12 foram referenciadas e acompanhadas pelo Instituto da Segurança Social entre 12 e 17 de abril, “o período mais crítico, porque súbito”. Aqueles “sem retaguarda familiar ou sem condições económicas” tiveram alojamento e refeições.
No caso das precárias, “foi tudo feito com muito pouco critério e em alguns casos com uma injustiça atroz”, diz Gil Balsemão, advogado e membro do conselho consultivo da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR). “Houve decisões completamente absurdas. Foi uma questão de timing. Os primeiros casos que os estabelecimentos prisionais mandaram para a DGRSP tiveram sorte. A partir da terceira semana não saiu mais ninguém”, diz o advogado. E não voltará a sair. “O Governo não pensa apresentar mais nenhuma proposta para libertar pessoas em contexto de emergência”, afirmou a Ministra da Justiça esta semana no Parlamento.
“REINSERÇÃO SOCIAL É CARA”
Elisabete conseguiu uma saída precária através do regime excecional. Foi para casa da mãe, no concelho de Oliveira de Azeméis. “Estou a fazer tudo como manda a lei. Não saio nem para pôr o lixo.” Tem 43 anos e cumpria, desde setembro de 2016, uma pena de sete anos e meio na prisão de Santa Cruz do Bispo. A pandemia aumentou a incerteza, a notícia da libertação de reclusos duplicou-a. Preenchia os requisitos, já tinha tido dez precárias e todos os relatórios de comportamento positivos. “Sofremos bastante. Foi tudo muito confuso. Um dia diziam que íamos sair, no outro tiravam-nos o tapete de debaixo dos pés. Algumas guardas faziam pressão psicológica. Diziam ‘vocês pensam que a cadeia vai ficar vazia, que se vão embora?’.” Esteve quase um mês sem saber.
“Saíram ao calhas. Foram libertados de um momento para o outro, foi tudo feito à pressa”
Saiu num sábado e as precárias de 45 dias foram sendo renovadas. No final de setembro, tinha cumprido cinco sextos da pena: ficou em liberdade condicional. Mas podia ter sido mais cedo. Em maio, a audiência chegou a estar marcada, mas foi adiada devido à covid-19. “Por tão pouco tempo, podiam ter-me dado a liberdade condicional, se não como é que vou reintegrar-me na sociedade?”
“A reinserção social é cara”, disse o diretor da DGRSP, Rómulo Mateus, numa audição parlamentar em julho. “Mas compensa: cada euro investido na reinserção tem frutos sumarentos”, acrescentou. O responsável apontou para a “emergência” do país em rever as carreiras e investir nos técnicos de reinserção social, envelhecidos e insuficientes. “Os juízes são muito relutantes em conceder a liberdade condicional, porque sabem que não há acompanhamento na ressocialização”, escreveu Licínio Lima, ex-subdiretor da DGRSP, no “Observador”.
Jorge, 35 anos, também saiu da prisão em abril, mas com a certeza de que voltará a ser preso. “Sem um bocadinho de estabilidade é difícil. Se preciso de dinheiro para comer e não tenho outra opção, claro que vou fazer a única coisa que me vai safar.” Começou a consumir muito novo, ficou viciado, passou a vender droga para alimentar o vício. Tem no cadastro quatro detenções — percebeu que queria mudar de vida no final da primeira.
“Quando finalmente os reclusos ficam em liberdade, não arranjam meios para uma vida digna, e mais cedo ou mais tarde voltam ao crime”, lamenta Almeida Santos, presidente da associação Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos. “O estigma de ser ex-recluso torna muito difícil a entrada no mercado de trabalho”, assegura Marisa Melo.
Devido a problemas de saúde, Rui não pode trabalhar, mas é demasiado novo para ser acolhido num lar. Elisabete recebeu a liberdade condicional a 27 de setembro e continua à procura de trabalho. Jorge ainda não voltou à prisão. Francisco perdeu entretanto o emprego. Está a dormir na rua há várias semanas.
COVID CHEGA EM FORÇA ÀS PRISÕES
Já há dois grandes surtos nas prisões portuguesas. Esta quinta-feira, foi revelado que há 59 reclusos e um guarda no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) que testaram positivo à covid-19. Os serviços prisionais determinaram que os presos que estão infetados, “genericamente assintomáticos”, fiquem numa única ala da cadeia onde permanecerão em isolamento, separados da restante população prisional. Toda a população do EPL, entre reclusos (900) e trabalhadores (240), vai ser testada nos próximos dias. A cadeia com mais casos continua a ser o Estabelecimento Prisional de Tires, que tem neste momento 148 reclusas com covid-19, duas crianças que se encontram com as suas mães e oito trabalhadores. A direção dos serviços prisionais garante que nos próximos dias haverá nova testagem das prisioneiras de Tires que agora deram negativo. A Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados alertou entretanto para a violação de alguns direitos destas reclusas. No início da semana, a ministra da Justiça anunciou que não vai apresentar um novo regime excecional de libertação de reclusos, semelhante ao efetuado em abril. No total, há agora 227 casos positivos de reclusos e 81 de trabalhadores. E receia-se que os números escalem nos próximos dias. HUGO FRANCO