1.3.21

Ex-inquilinos da Fidelidade continuam a receber cartas de despejo

Luísa Pinto, in Público on-line

Apesar de ter sido renovada a suspensão de despejos e dos prazos de oposição à renovação de contratos, NeptuneCategory continua a mandar cartas aos antigos inquilinos da Fidelidade com a intenção de ver os fogos livres. Alguns estão desocupados deste Setembro de 2019

Carlos Rodrigues (nome fictício) vive na mesma casa, no centro de Lisboa, desde 1975, altura em que regressou de Angola, e ele e a mãe foram viver para casa de uma tia. Dez anos depois (ainda antes de Carlos ir à tropa) a tia tinha saído daquela casa e ele fez novo contrato com o senhorio em que passou a titular. Por ser um contrato assinado antes de 1990 foi daqueles casos que a chamada Lei Cristas, publicada em 2012, na sequência da intervenção da troika em Portugal, veio actualizar. E liberalizar. Os contratos de Carlos passaram a ter prazos de cinco anos e, em Julho de 2019, deveria terminar o seu. Mas nessa altura, já o anterior senhorio, a Fidelidade, tinha vendido um vasto conjunto de imóveis a empresas-veículo criadas pelo Fundo Apollo, e a correspondência passou a ser feita com a NeptuneCategory.

Foi correspondência quase sempre num sentido. Porque Carlos nunca obteve resposta às muitas cartas que enviou a pedir para renovar o contrato, ou para comprar o imóvel (exercendo o direito de preferência que a lei lhe dava). Mas agora recebeu uma missiva a avisar que tinha 15 dias para sair do imóvel onde vive há 45 anos.

“Obviamente, já reclamei!”, esclarece ao PÚBLICO. Na verdade, fez o que lhe permite a lei, apresentou uma “oposição à pretensão” anunciada pela NeptuneCategory, que fez chegar ao Balcão Nacional de Arrendamento. A consequência vai ser aguardar a marcação de uma audiência em tribunal, confirmou o PÚBLICO junto do advogado de Carlos.

A notificação de despejo acontece numa altura em que ainda está em vigor a legislação que suspendeu os efeitos dos prazos de caducidade e não renovação dos contratos de arrendamento. Esta lei foi aprovada pela primeira vez em Março do ano passado, no início da pandemia. “Quando pedimos às pessoas para estarem em casa recolhidas, não é seguramente um momento para andarem à procura de casa”, argumentou então o primeiro-ministro. O primeiro prazo de vigência era Setembro do ano passado. Depois foi prolongado para Dezembro. E, em Dezembro, foi prolongado de novo até Junho de 2021.

A situação excepcional imposta pela pandemia mantém-se, e as “acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada” ficam suspensos quando o arrendatário, “por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria”, lê-se na Lei 1-A/2020.

Não ter para onde ir

“Eu não tenho nenhum sítio para onde ir. Fiquei viúvo, recebo a pensão da minha mulher e continuo a fazer uns biscates no ramo dos seguros”, avisa Carlos. Mas nem foi a situação de fragilidade por falta de habitação própria que invocou na oposição entregue no Balcão Nacional de Arrendamento. Para este inquilino, e para advogado que o representa, o contrato não caducou e continua em vigor. “Tenho as rendas todas pagas desde Julho de 2019, e eles nunca as devolveram nem nunca reclamaram. O contrato foi renovado”, asseverou Carlos Rodrigues.

Para sustentar o seu argumento, Carlos apresenta a carta que lhe foi endereçada ainda pela Fidelidade, em Junho de 2018, e onde esta mostrava disponibilidade para renovar o contrato de arrendamento, e disponibilizava um contacto para chegarem a um acordo sob essa renovação. Carlos Rodrigues respondeu que sim, queria negociar a renovação do contrato, mas nunca mais teve resposta. As cartas que começou a receber foram outras: que o imóvel ia ser vendido, que a NeptuneCategory passaria a ser a proprietária. A Neptunecategory é uma das quatro empresas veículo criadas pelo fundo Apollo, e controladas a partir das ilhas Caimão, com quem foi feita a escritura das propriedades.

A Fidelidade comunicou a venda do imóvel a 8 de Setembro de 2018. Em Janeiro de 2019, Carlos Rodrigues escreveu à nova senhoria para renovar a manifestação do seu interesse em negociar a renovação do contrato de arrendamento e solicitando a indicação das correspondentes condições. Não teve resposta. Se o contrato caducou em Julho desse ano, nunca foi avisado de nada. E a renda, a rondar os 600 euros, continuou a ser pagar todos os meses.

“O contrato está automaticamente renovado”, insiste Carlos Rodrigues, dizendo aguardar com expectativa o desfecho do seu processo judicial, mas também de um outro que alguns dos seus vizinhos também interpuseram em tribunal. Querem que seja definido um valor para aquele imóvel para conseguir exercer o direito de preferência que lhes foi vedado aquando da venda – foi invocado o facto de a venda ser em lote, com 271 prédios espalhados pelo país, e o direito de preferência só poderia ser exercido se alguém se propusesse a adquirir a totalidade do portefólio.

A venda deste lote de imóveis foi muito polémica, não só por ter impedido o exercício do direito de preferência de inquilinos e municípios que o pretendessem (a Câmara do Porto continua a discutir o assunto em tribunal) mas também por ter ficado isenta do pagamento do Imposto Municipal sobre Transacções (IMT). Esta isenção foi atribuída porque estas empresas inscreveram no seu objecto social a revenda de imóveis. O comprovativo de venda de uma arrecadação com cinco metros quadrados, numa cave de um prédio em Vila Nova de Cerveira, serviu para o fundo americano conseguir escapar ao pagamento de cerca de 25 milhões de euros de IMT, como confirmou o Ministério das Finanças.

Entretanto, as quatro empresas controladas pela Apollo a partir das ilhas Caimão foram mudando de arquitectura, a NeptuneCategory foi transformada em sociedade anónima e, em final de 2019, foi parar às mãos da Axa. Este grupo francês anunciou ter investido 200 milhões de euros e que pretendia fazer obras de intervenção nos imóveis.

Pedro Farinha, um inquilino que tentou exercer o direito de preferência, foi instado a sair de sua casa, por caducidade do contrato em Setembro de 2019 – antes de eclodir a pandemia. A casa tem estado desocupada desde então.