3.3.21

Quem dá trabalho a um cidadão cigano?

Ângela Roque, in RR

Pergunta é deixada pela Comissão Nacional Justiça e Paz, que alerta para a situação de “pobreza extrema” em que muitos ciganos estão a viver. Organismo católico lamenta estereótipos e preconceitos, muitas vezes incentivados por quem tem responsabilidades públicas.

A Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) denuncia, nesta terça-feira, as condições de miséria em que continuam a viver muitas comunidades ciganas em Portugal. “Sabe-se que um número significativo, aproximadamente metade, permanece numa situação de pobreza extrema e exclusão”, indica o comunicado divulgado por este organismo da Igreja católica.

Apesar de reconhecer que a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas já teve “alguns impactos positivos”, a CNJP considera que é preciso reforçar a “implementação das políticas públicas de inclusão social”, nomeadamente “nas áreas da habitação, da educação e do emprego”. Políticas que, apesar de se destinarem a todos, “tardam a ser integralmente aplicadas a este grupo de cidadãos. Basta pensar em decisões institucionais que permitiram que o direito à educação das meninas ciganas não se realizasse em nome da ‘identidade cultural’”, recorda o comunicado.

Maria do Rosário Carneiro, vice-presidente da CNJP, diz à Renascença que a situação é preocupante e que, apesar do esforço que tem havido ao nível das políticas públicas, o preconceito é generalizado, como se vê na hora de dar trabalho.

“Na nota que hoje emitimos perguntamos: quem é capaz de afirmar, em boa verdade, que dará trabalho a um cidadão cigano? E este é um dos grandes dramas, porque frequentam cursos de formação profissional e depois não encontram trabalho. E sem trabalho, como é que alguém pode ser autónomo?”, interroga-se a responsável, para quem há muito a fazer em termos coletivos, “um trabalho de todos nós, não ciganos e ciganos, de remoção desta forma cristalizada e estereotipada com que nos olhamos”.

“Temos de nos olhar como iguais, na total dignidade humana, e este é um trabalho que tem de ser feito e promovido, naturalmente por quem tem mais responsabilidade, que são as instâncias políticas”, defende a vice-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz e antiga deputada.
Há “preconceito” e é alimentado pelo “desconhecimento”

Na nota divulgada nesta terça-feira, a CNJP lamenta que a população cigana em Portugal continue “refém de estereotipias e preconceitos”, e que a discriminação de que continua a ser alvo seja muitas vezes incentivada por quem tem responsabilidades públicas, com posições que só revelam “desconhecimento”.

E exemplifica: “classificar um grupo de pessoas, globalmente, como subsídio-dependentes, parasitas que não querem trabalhar, é injusto e infundado, revela desconhecimento acerca de uma realidade que é múltipla, complexa e diversificada, que permanece fechada num quase gueto de isolamento e discriminação”, lê-se.

Maria do Rosário Carneiro não esconde que a crítica se dirige a quem, no plano político, mais tem atacado a comunidade cigana, como o líder do Chega, com um discurso “discriminatório, inaceitável, sobretudo porque faz generalizações que nem sequer são assentes em pressupostos reais”.

“É um discurso que assenta no preconceito, e alimenta o preconceito. Diria mesmo que é esta estereotipia cristalizada, fortemente arreigada nas comunidades, que leva ao insucesso das práticas e ações decorrentes das políticas públicas”. Dá como exemplo o Rendimento Social de Inserção.

“O RSI não é um subsídio, é um instrumento poderoso de inclusão, de combate à pobreza, porque é contratualizador. Da atribuição do RSI resulta um contrato entre o Estado e os cidadãos, promotor do seu desenvolvimento e da sua inclusão, através da procura de trabalho, e da frequência da escola, dos serviços de saúde”, refere, sublinhando que a população cigana esbarra muitas vezes no preconceito, não arranjando trabalho.

A nota divulgada pela CNJP recorda que, em outubro de 2020, a União Europeia aprovou um novo quadro estratégico (2020/2030) para a igualdade, a inclusão e a participação dos ciganos assente em sete domínios principais: igualdade, inclusão, participação, educação, emprego, saúde e habitação.

A Comissão apela, ainda, ao reconhecimento e implementação do conceito de “cidadania plena” que o Papa Francisco tem sublinhado, desde a declaração sobre a Fraternidade Humana (fevereiro 2019), assinada em Abu Dhabi, à encíclica ‘Fratelli Tutti’ (outubro de 2020), lembrando que este é um conceito “inclusivo”, que “recusa estigmas e práticas discriminatórias e excludentes, que exige o conhecimento de cada parte e a sua aproximação, que é promotor da igualdade e da justiça”.