4.3.22

“Se interviermos na infância há uma grande chance de a criança não ser um adulto obeso”

Ana Maia, in Público on-line

Em entrevista ao PÚBLICO, Ana Rito, investigadora do Insa, diz que a literacia junto das famílias e das crianças em idades precoces tem sido um dos factores chaves para mudar estilos de vida. E serão esses que poderão evitar que crianças obesas se tornem adultos obesos.

Esta sexta-feira assinala-se o Dia Mundial de Combate à Obesidade. Em entrevista ao PÚBLICO, Ana Rito, investigadora do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa) fala do trabalho que Portugal tem feito e que numa década permitiu reduzir a prevalência de excesso de peso e de obesidade infantil. Mas ainda há muito a fazer, refere, temendo os efeitos que a pandemia possa ter tido nas famílias com menores condições socioeconómicas. A também directora do Centro de Estudos e Investigação em Dinâmicas Sociais e Saúde diz que a literacia junto das famílias e das crianças em idades precoces tem sido um dos factores chaves para mudar estilos de vida. E serão esses que poderão evitar que crianças obesas se tornem adultos obesos.

Entre 2008 e 2019, segundo os últimos dados do Cosi - sistema de vigilância nutricional infantil integrado no estudo Childhood Obesity Surveillance Initiative da OMS/Europa, coordenado pelo Insa -, Portugal reduziu a prevalência de excesso de peso e de obesidade infantil. Tem dados mais recentes?
Conseguimos no espaço de uma década reduzir 8,2 pontos percentuais em termos de excesso de peso e obesidade. Portugal foi dos países que se situou bem na Europa, não só em termos de promoção da saúde infantil, mas de prevenção de doença. Não temos mais dados, porque as rondas são feitas a cada três anos. Estamos no momento a avaliar cerca de 8 mil crianças nesta sexta ronda do Cosi Portugal. O Insa, como centro colaborativo para a nutrição infantil da OMS Europa, lidera também um estudo sobre o impacto da pandemia nos estilos de vida e no estado nutricional da criança. Certamente estes dois anos de pandemia terão tido algum impacto, ainda que não tão directamente no estado nutricional, em termos de práticas alimentares e de estilos de vida. Estamos a realizar este estudo com outros 27 países da Europa.

Na fase inicial do Cosi éramos o segundo país europeu com maior prevalência de excesso de peso e obesidade. Onde nos coloca a redução que aconteceu?
Neste momento, a meio da tabela. Estamos muito a par da média europeia. Mas estamos ainda muito longe dos que têm menos prevalência de excesso de peso e obesidade infantil, nomeadamente os países do Norte da Europa e da Ásia Central. Estudámos quais as variáveis que terão tido mais impacto nesta redução, sem dúvida foi a educação e a formação da mãe. As mães de 2019 são seguramente mais informadas que as mães de 2008 por todo este investimento que houve de traduzir o que é a ciência.

Mas ainda há uma enorme dificuldade em perceber se os produtos à venda são bons ou não em termos nutricionais. O que deve se feito?
Este trabalho só se consegue com um esforço conjunto. Se há organismos como o Insa, a DGS, e outros, que têm vindo a fazer um esforço para haver um diálogo maior com a indústria, para que esta aposte na reformulação dos seus produtos alimentares, é necessário que nutricionistas e outros profissionais sejam capazes de aumentar a literacia das pessoas que vão ler os rótulos. Depois é preciso ensinar a mãe, o pai, a criança, o adolescente quando chegar a um supermercado a perguntar o que hei-de escolher. Continuo a escolher os mesmos produtos, sabendo que estes alimentos têm menos açúcar, ou altero os hábitos alimentares? Acho que há muito a fazer no sentido de aumentar a literacia das pessoas para saberem o que estão a escolher.

Temos de ensinar estas crianças e famílias a mudar os seus hábitos alimentares. Depois, numa estratégia um pouco mais adulta, perceber que há uma série de produtos alimentares que podem preferir, mas que não devem consumir

Como é que isso se faz?
Com uma promoção, em primeiro lugar, de produtos no seu formato natural. É ir primeiro a uma bancada de frutos, de legumes. Esses [produtos] serão a base da sua alimentação. Naturalmente, olhar para uma roda dos alimentos e perceber onde estão os alimentos que são importantes para a nossa alimentação. A seguir, é conseguimos explicar à criança nestes ambientes escolares que trocar um produto embalado por um outro tipo de lanche mais saudável é completamente diferente em termos de aporte de açúcar e de gordura. Temos de ensinar estas crianças e famílias a mudar os seus hábitos alimentares. Depois, numa estratégia um pouco mais adulta, perceber que há uma série de produtos alimentares que podem preferir, mas que não devem consumir.

Portugal tem implementado várias medidas. Há o imposto criado sobre as bebidas açucaradas e um trabalho com a indústria para a reformulação de vários produtos. Devemos criar mais impostos ou o caminho é mais pelo diálogo?
A minha opinião é que o caminho é pelo diálogo. O imposto sobre as bebidas açucaradas foi criado em 2017, após termos conhecido em 2016 os dados do Cosi Portugal que mostrou que as crianças faziam um consumo acima dos 60% de refrigerantes açucarados e houve a necessidade de criar uma medida. É esta dinâmica que se faz. Nós mostramos os dados, onde estão os erros, e as entidades competentes, os decisores políticos, conseguem transformar isto numa acção política, naquilo que tem vindo a ser o diálogo com a indústria para a melhoria dos perfis nutricionais. Portugal tem sido exemplar nessa matéria. Há muitos outros países da Europa que não têm feito caminho algum, até mesmo pela pressão da indústria.

Há uma meta do que deveria ser o valor máximo de excesso de peso e obesidade?
O objectivo é sempre zero, é não termos obesidade ou excesso de peso. Isto só funciona por esta plataforma de gentes co-responsáveis por esta matéria. É a responsabilidade dos média, dos decisores políticos, dos investigadores que continuam a produzir dados actuais para que se faça algo em respostas. São programas a nível local, regional e nacional de combate à obesidade infantil, com os municípios à cabeça. Tudo o que se faz a nível local é muito importante, porque ninguém conhece melhor as suas comunidades do que os que vivem nelas.

Antes da pandemia falou-se muito de ambientes saudáveis nas cidades, com mais espaços verdes e melhor oferta alimentar. Abandonou-se esta ideia?
Houve uma aposta enorme ao nível dos espaços exteriores, que eram os espaços onde se podia conviver abertamente na altura em que vivemos mais sob as restrições da pandemia. A aposta das cidades nessa matéria continuou a existir. Talvez não se tenha falado tanto nisso.

Então a pandemia trouxe esse ponto positivo, que foi valorizar esses espaços.
Não tenho dúvidas. Por um lado, a pandemia melhorou os estilos de vida das pessoas que tinham melhores condições socioeconómicas. Essa utilização dos espaços exteriores, aumento da actividade física, o facto de cozinharem em casa, foi tudo um aspecto muito positivo. Mas piorou muito a das pessoas que estão no outro lado, pessoas que perderam brutalmente as suas condições económicas ao fim do mês. A preocupação não era tornarem-se mais saudáveis, era de alguma forma sobreviver a esta pandemia. A obesidade reside muito neste lado do espectro. É aqui que esperamos os piores resultados e temo que possa ter-se agravado a este nível. É aqui que a sociedade tem de reagir, ajudar estas famílias a superar aquilo que foi o impacto da pandemia nestes últimos dois anos.

Uma das preocupações com a obesidade infantil é a continuidade deste problema na vida adulta. Há alguma ideia de qual a percentagem de crianças com excesso de peso ou obesidade que se transformam em adultos com excesso de peso ou obesidade?
Ia dizer a maioria. É por isso que a nossa intervenção é o mais precoce possível, é antes da puberdade que devemos agir. Se essa intervenção for feita nessas idades, há uma grande chance desta criança não ser um adulto obeso no futuro. Se esta intervenção não existir, a grande probabilidade é que de facto grande parte desta população infantil com obesidade ou com excesso de peso perpetue esse seu estado nutricional, a sua obesidade, até à idade adulta. Depois depende muito de cada pessoa, da forma como cada um conhece a doença e o que a afecta ou não. Falamos mais disto em 2021 do que em 2005 e portanto é muito provável que qualquer pessoa já tenha ouvido falar das questões da obesidade e que uma criança com mais peso não é uma criança saudável.

Acho que a cada ano estamos melhor do que no anterior em termos de atenção à obesidade, que não deve de todo sair da agenda política de nenhum país, porque ainda nenhum conseguiu alcançar aquele objectivo zero

Os médicos também estão mais atentos ao problema?
Não tenha dúvidas. Estamos todos alinhados nessa matéria. Há um diálogo maior, há uma intervenção multidisciplinar que tem de ser feita e que acho que cada vez mais existe ao nível das unidades de saúde. Acho que a cada ano estamos melhor do que no anterior em termos de atenção à obesidade, que não deve de todo sair da agenda política de nenhum país, porque ainda nenhum conseguiu alcançar aquele objectivo zero. Temos todos de aprender uns com os outros e perceber como reagirmos, em cada país, às questões relacionadas com a obesidade, principalmente quando sabemos que muito provavelmente foi agravada nestes últimos dois anos.

Falta criar medicamentos para o tratamento do excesso de peso e obesidade ou para a área infantil isso não faz sentido?
Não faz sentido algum. A questão de medicalizarmos numa abordagem de obesidade infantil não existe. E muito menos cirurgia bariátrica. Não falta nada. O que falta é o aumento da literacia das famílias, olharem para os seus filhos e perceberem que eles têm uma doença quando têm obesidade. A infância é a altura ideal para se tratar a obesidade, porque é nessa altura que a criança está a prender, está mais apta para receber novas orientações, está mais atenta e ao mesmo tempo tem a seu favor o crescimento. Com o seu crescimento consegue de alguma forma ir ajudando na correcção da obesidade. Até aos 18 anos a obesidade é prevenível e tratável, no sentido de ser corrigida com uma mudança de estilos de vida. Queremos uma criança que abrace a sua vida futura de uma forma muito mais saudável.