10.3.22

Nesta escola, qualquer um pode ser “a voz dos estudantes”: “Tenho nove anos de coisas guardadas por dizer”

Liliana Borges (texto) e Matilde Fieschi (fotografia), in Público on-line

O projecto DeliberaEscola, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, promove a participação cívica dos estudantes através de associações e com base num sorteio, no lugar de eleições, para garantir que até os alunos tradicionalmente menos activos politicamente sejam desafiados a participar.

Na Escola Básica de Bucelas, em Loures, quem passa no corredor que dá acesso à biblioteca não adivinha que é numa sala onde toca a Feel Good dos Gorillaz que nas próximas três horas um grupo de 18 estudantes (12 efectivos e seis suplentes) irá discutir o presente e futuro da comunidade escolar. Entre colegas e muitas caras desconhecidas – escondidas atrás das máscaras – nove rapazes e nove raparigas entram introvertidos na sala de onde sairá, oficialmente, o novo Conselho de Alunos.

Ao contrário do modelo institucional das associações de estudantes, nenhum dos alunos se candidatou para ali estar. Foram escolhidos aleatoriamente, através de um sorteio, para garantir que até mesmo os alunos que não têm uma tendência de participação cívica mais activa são desafiados a integrar o projecto. Nas salas, além dos alunos, só entram a coordenadora e facilitadora do projecto. E os professores? Ficam do outro lado da porta, para garantir que os alunos “não sintam constrangimentos”, esclarece logo Mónica Barbosa, a facilitadora do projecto DeliberaEscola, promovido pelo Fórum dos Cidadãos.

O DeliberaEscola, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, arrancou em 2020 em três agrupamentos. Este ano lectivo já está em 11, incluindo o agrupamento 4 de Outubro, em Loures, que tem dois Conselhos de Alunos: um na escola-sede, a Escola Secundária Dr. António Carvalho Figueiredo, e outro na Escola Básica de Bucelas (a que recebe esta primeira sessão).

O objectivo das três horas seguintes é construir uma dinâmica de equipa que no final se traduza numa rotina – a definir pelos próprios estudantes – de encontros do Conselho de Alunos para discutir os problemas da escola e as respostas que podem ser exigidas à comunidade e direcção do agrupamento. “Vão ser os representantes e a voz dos alunos”, anuncia Mónica Barbosa.

Depois de um arranque tímido expectável por se tratar do primeiro encontro, as propostas proliferam. “Tenho nove anos de coisas guardadas por dizer”, desabafa Daniel, aluno do 9.º ano e um dos estudantes seleccionados para integrar o Conselho. “A comida da escola é terrível”, queixa-se Leonor, uma das primeiras alunas a falar. A facilitadora pergunta quem concorda e praticamente todos levantam a mão. “As quantidades de comida são insuficientes”, completa uma colega.

“As salas de aula não têm aquecedor”, exemplifica outro aluno. “Há salas com quadros que não dão para ler”, atira mais um. Nas casas de banho dos rapazes, além da falta de privacidade, falta também o papel higiénico e o sabão. “Repõem o papel higiénico de dois em dois meses”, conta Daniel. Também são mais as torneiras que não funcionam do que aquelas que estão operacionais, diz.
"Tem de existir uma real abertura das escolas"

Por integrarem alunos de diferentes turmas e anos, os encontros acontecem nos intervalos das aulas, fora do horário escolar – o que se revela desafiante. “Fica evidente uma limitação para a execução de qualquer projecto extracurricular”, assinala Paula Cardoso, coordenadora do DeliberaEscola.

Para que estes projectos durem e se cumpram até ao fim, “tem de existir uma real abertura das escolas para receber a proposta, algo que nem sempre é fácil de assegurar”, completa antes de destacar o “fantástico apoio” da Direcção-Geral da Educação na identificação dos agrupamentos disponíveis para esta ideia.

Maria da Trindade Castro, professora de Português e Cidadania, é quem acompanha os alunos da Escola Secundária Dr. António Carvalho Figueiredo (a escola-sede) – mas fica no corredor. Ao PÚBLICO, explica que, enquanto coordenadora dos projectos do agrupamento, ficou responsável por acompanhar este projecto.

“Temos tradição de participar no Parlamento dos Jovens”, um projecto criado em 1995 pela Assembleia da República para promover e incentivar o trabalho democrático aos alunos do Ensino Básico e Secundário. Para complementar essa participação – voluntária e restrita a um curto número de alunos por escola, o agrupamento 4 de Outubro decidiu que “seria bom seleccionar os alunos de forma aleatória”, vista como a “grande vantagem deste projecto”, envolvendo “aqueles que normalmente não se disponibilizam”.

A primeira sessão termina com muitas ideias e entusiasmo no ar. Afinal, os alunos descobriram que é possível ser-se civicamente activo “sem formalismos” e sem “muitos papéis”. O próximo encontro do grupo irá já discutir propostas para os problemas identificados.

Artigo corrigido: Acrescenta que o Fórum Cidadãos é a entidade promotora do projecto e esclarece que Mónica Barbosa é facilitadora e não coordenadora do projecto.