16.3.22

"Transmissão intergeracional é uma das características determinantes da pobreza em Portugal"

Leonídio Paulo Ferreira, in DN

Desigualdade e pobreza no século XXI é a oitava e última conferência do ciclo Sociedade no Século XXI: Desafios Sociais, Geracionais, Políticos e Económicos, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. Palestra de Carlos Farinha Rodrigues, professor de Economia no ISEG , pode ser vista hoje às 18 horas por Zoom.

A pobreza em Portugal passa de pais para filhos, significando que o elevador social não funciona?
A transmissão intergeracional da pobreza é uma das características determinantes da pobreza em Portugal. Um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos em que participei (Faces da pobreza em Portugal) demonstrou que grande parte dos indivíduos em situação de pobreza cresceu num contexto mais ou menos continuado de privação, o que condicionou, à partida, as suas oportunidades de vida, nomeadamente contribuindo para antecipar a sua saída da escola e a entrada precoce no mercado de trabalho, assim ingressando em empregos pouco qualificados. Muitas destas famílias convivem com a pobreza desde há várias ​​​gerações. Um outro estudo recente da OCDE demonstrava que a baixa mobilidade social existente no nosso país implicava que uma família portuguesa com baixos rendimentos precisava de 125 anos (cinco gerações) até que os seus descendentes atinjam um nível de salário médio. Termos portanto um elevador social que funciona no sentido ascendente com grandes limitações. Limitações que se agravaram recentemente com os efeitos socioeconómicos da pandemia. O afastamento das crianças e dos jovens do sistema de ensino por largos períodos de tempo em 2020 e 2021 vai ter efeitos muito significativos na igualdade de oportunidades que mais tarde ou mais cedo se traduzirão num agravamento das desigualdades económicas e num potenciar acrescido de fatores de pobreza e de exclusão social

É possível ter trabalho, salário fixo e mesmo assim ser pobre?
Os baixos salários, a desigualdade salarial, a generalização do trabalho precário desempenham um papel fundamental na manutenção das condições de pobreza. De acordo com os dados publicados pelo INE, em 2019, 444 milhares de trabalhadores encontrava-se em situação de pobreza. A taxa de working poor era de 9,6%. Os trabalhadores pobres representavam 33.6% do total da população pobre com 18 ou mais anos. Em 2020 a proporção de working poors subiu para 11,2%. Os jovens, no processo de transição do sistema educativo para o mercado de trabalho são particularmente afetados por formas desreguladas de funcionamento do mercado de trabalho. A relação entre a participação no mercado de trabalho e a situação de pobreza não depende exclusivamente dos níveis salariais auferidos. Depende também em muito da dimensão e da composição da família em que o trabalhador está inserido. Por exemplo, e tomando como referência o ano de 2020 um trabalhador que vivesse sozinho e que ganhasse o salário mínimo estava acima do limiar de pobreza. Mas se considerarmos um casal com dois filhos em que somente um dos elementos do casal aufere o salário mínimo, então os seus rendimentos do trabalho estão cerca de 30% abaixo do limiar de pobreza pelo que essa família, e esse trabalhador, são pobres.

Somos um país mais desigual do que os do resto da Europa?
Os últimos dados de que dispomos para comparar a desigualdade entre os vários países europeus remontam a 2019 não refletindo assim o agravamento das desigualdades provocados pelos efeitos socioeconómicos da pandemia. Em 2019, Portugal era o oitavo país mais desigual da União Europeia com um coeficiente de Gini de 31,2%, 0,2 pontos percentuais acima da média dos 27 países da atual União Europeia. A acentuada descida da desigualdade ocorrida no nosso país entre 2014 e 2019 justifica a aproximação dos níveis de desigualdade medida pelo índice de Gini em Portugal com o valor médio da União Europeia. Por exemplo, em 2014, o nível de desigualdade em Portugal era 3,2 pontos percentuais superior à média da UE. Os efeitos da crise suscitada pela pandemia foram profundamente desiguais e agravaram os níveis de desigualdade. Em 2020, o índice de Gini assumiu o valor de 33%, agravando-se 1.8 pontos percentuais.

Alguma razão para Madeira e Açores terem maior percentagem de pobres do que o continente?
As razoes que explicam que as regiões autónomas dos Açores e da Madeira sejam as regiões do país com maior incidência da pobreza são múltiplas e complexas. Os custos da insularidade, as taxas de participação no mercado de trabalho, os baixos níveis médios de rendimento quando comparados com o continente desempenham certamente um papel importante nessa incidência acrescida da pobreza nas regiões insulares. Mas existe um outro aspeto que gostaria de realçar. É igualmente nestas duas regiões que se verificam os maiores níveis de desigualdade. Que a desigualdade e a pobreza podem ser vistas como as duas faces da mesma moeda é facilmente verificado quando olhamos para a situação da Madeira e dos Açores. O que reforça a minha convicção de que não é possível combater a pobreza sem simultaneamente reduzir as desigualdades.

Redução da pobreza passa por aposta na educação ou tem de haver mais soluções?
Todos os estudos que conheço sobre a pobreza em Portugal reafirmam a ideia que o aumento dos níveis de ensino e das qualificações constitui o instrumento mais eficiente para, de forma estrutural, reduzir a pobreza no nosso país. A relação entre níveis de qualificação e maiores níveis de rendimento e menor incidência da pobreza é facilmente demonstrável. Em 2019, a incidência da pobreza entre os indivíduos com 18 e mais anos que possuíam o 1º ciclo do Ensino Básico ou menos era de 44%. Essa incidência reduzia-se para 12% para quem tinha o ensino secundário e para 5% para quem tinha alcançado um curso superior. Apesar destes números tem-se vindo a assistir nos anos mais recentes a alguma desvalorização da eficácia relativa da educação na redução da pobreza. Essa desvalorização é particularmente sentida nos jovens, que no seu processo de transição do sistema de ensino para o mercado de trabalho enfrentam dificuldades acrescidas (precariedade de trabalho, salários não correspondentes às suas qualificações, etc.) que é extremamente preocupante. Respondendo diretamente à questão a aposta na educação (quer dos jovens quer a requalificação dos adultos) continua a ser condição necessária para a redução da pobreza. Mas não é de todo condição suficiente. Se não for assegurado o verdadeiro potencial que uma formação acrescida representa, permitindo que ela se transforme em valor acrescentado para a economia e em valorização do fator trabalho os seus efeitos na redução da pobreza serão necessariamente mitigados.

Os partidos políticos quando assumem responsabilidades governativos têm dado passos efetivos para combater a pobreza em Portugal?
Nas últimas décadas temos assistido a flutuações acentuadas na forma como os vários governos priorizam a questão do combate à pobreza na sua agenda política. Se em dados momentos foi possível identificar o aparecimento de novas gerações de políticas de combate à pobreza (o rendimento social de inserção, o complemento solidário para idosos, etc.) em outros momentos assistiu-se a um retorno a políticas mais assistencialistas de eficácia reduzida no combate à pobreza. Mas de uma forma geral pode-se afirmar que a redução da desigualdade, da pobreza e da exclusão social foi sempre considerado como algo subalterno no quadro das políticas públicas e da política económica. Recentemente foi aprovada a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Esta estratégia pode vir a constituir um elemento de coerência das diferentes políticas públicas para priorizar e implementar uma efetiva politica de redução da pobreza. Mas a estratégia de combate à pobreza deve ser vista como um ponto de partida e nunca como um ponto de chegada. O combate pela redução e erradicação da pobreza somente ganha o seu sentido pleno se for, simultaneamente, um combate por uma economia ao serviço das pessoas, que preserve a casa comum que todos hoje habitamos e onde novas gerações irão habitar no futuro e que assegure um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo.

Algum país europeu tem sido bem-sucedido no combate à pobreza e na redução das desigualdades?
Também a nível europeu os avanços e os retrocessos no combate à pobreza tem estado muito associados à prioridade que as políticas comunitárias atribuem a esse objetivo. Se em determinados momentos foram implementados mecanismos e recursos para uma efetiva redução da pobreza e para a construção de uma Europa mais social (Os Planos Nacionais para o Combate à Pobreza, os Planos Nacionais para a Inclusão, etc.) nos anos mais recentes foi predominante a existência de políticas que claramente desvalorizavam este tipo de preocupações. O plano de ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, recentemente aprovado durante a presidência portuguesa da UE, poderá vir a ser um elemento estruturante para recolocar as questões sociais na agenda europeia. Mas a existência de um quadro mais favorável a nível europeu não é suficiente para o sucesso da redução da pobreza nos países da Europa. Ser-se bem-sucedido no combate à pobreza implica que cada país faça da redução da pobreza um desígnio nacional, um instrumento de redução das injustiças sociais, do fortalecimento da coesão social e do fortalecimento da sua economia. Se não for assegurado o verdadeiro potencial que uma formação acrescida representa, permitindo que ela se transforme em valor acrescentado para a economia e em valorização do fator trabalho os seus efeitos na redução da pobreza serão necessariamente mitigados.

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