João Ruela Ribeiro (texto) e Adriano Miranda (fotografia), in Público on-line
Nas praças da cidade são feitas malhas de camuflagem, centros de exposições funcionam como armazéns logísticos de mantimentos. Lviv está segura, mas nem por isso se ausenta do conflito.
em Lviv2 de Março de 2022, 22:35
Percorrendo as ruas empedradas de Lviv, enquanto se admiram as fachadas de estilo clássico do centro histórico que mais lembram Viena do que qualquer outra cidade ucraniana, por estes dias é frequente encontrarem-se grupos de pessoas espalhadas ao longo de grandes estendais. Cada uma está concentrada na sua tarefa, consciente do papel, por mais pequeno que pareça, para a desejada vitória final contra a Rússia. Estão a dar os nós para construir uma grande malha de camuflagem, um equipamento essencial para prevenir ataques aéreos.
Quando a guerra bate à porta há um jornal mobilizado
A informação mais importante sobre a invasão da Ucrânia estará aberta nos próximos dias
A resistência dos ucranianos constrói-se das formas mais diversas. Lviv, uma das maiores cidades que, por ora, se mantém a salvo da invasão, tem concentrado grande parte dos esforços que têm unido a nação. O ambiente transpira optimismo. A expressão “Slava Ukraini”, “Glória à Ucrânia”, é hoje o cumprimento por defeito. Nas portas de alguns restaurantes são afixadas as baixas do inimigo, com actualização diária.
Ninguém contempla, por um momento que seja, baixar os braços ou ficar em casa a ver a guerra pela televisão. Ana, uma estudante de 20 anos, está a entrelaçar tecido na rede de camuflagem há já duas horas e prepara-se para aqui ficar enquanto não “congelar”. Admite que este é um “pequeno passo”, mas acredita que qualquer acto de voluntariado cumpre a sua parte no contexto geral da resistência. “Todos estão à procura de uma forma de ajudar”, explica. À sua frente, na praça Rinok, está uma estátua de Diana, a deusa grega que leva consigo o arco e flecha; num edifício próximo ouvem-se pessoas a entoar cânticos patrióticos. Não há como não resistir.
Se o trabalho afincado de Ana é apenas um pequeno passo, no Palácio das Artes de Lviv está um dos grandes motores da máquina de solidariedade montada em Lviv. Tinham passado pouco mais de três horas dos primeiros ataques russos, na madrugada de 24 de Fevereiro, quando este edifício, que habitualmente alberga exposições de arte e recebe concertos, foi transformado num enorme centro de operações, explica o seu director-geral, Iuri Vizhniak.
A efervescência começa logo à entrada. Dezenas de pessoas amontoam-se à espera de entrar, até que um membro da organização, de colete amarelo, sai para pôr ordem: “Duas filas: à esquerda quem precisa de ajuda, à direita os voluntários. Precisamos de homens com experiência para descarregar mercadorias, os restantes aguardem por outras tarefas.”
No aparente caos há uma ordem e nesta ordem está a chave para que aquilo que seria um pesadelo logístico seja levado a cabo eficazmente. Daqui saem todos os dias dezenas de toneladas de mantimentos para as Forças Armadas espalhadas em praticamente todos os pontos do território. Na véspera, seguiu um carregamento de 40 toneladas para Odessa e outro de dez para Kherson, diz Vizhniak. “Também ajudamos os refugiados que aqui vêm com comida, roupa de criança e sacos-cama”, acrescenta.
O edifício de vários andares divide-se entre zonas específicas para guardar material médico, alimentos, roupa de adulto e de criança ou material de higiene. Andar por aqui é um exercício que exige perícia para fintar dezenas de pessoas que andam constantemente de um lado para o outro com caixotes de todos os tamanhos, ladeados por montanhas de vários metros de papel higiénico, fraldas ou sacos de batatas. Uma sala de concerto é hoje o local dedicado para armazenar roupas quentes; uma divisão onde antes estaria arte moderna está tomada por caixotes cheios de embalagens de bolachas.
Aqui chegam carregamentos com doações vindas de todo o país e de grande parte da Europa. Iuri diz que na véspera recebeu um camião da Polónia e está agora a aguardar outro da Lituânia. Faz questão de mostrar os registos com todas as entradas e saídas de produtos: tudo é auditado, garante. O trabalho pode ser voluntário, mas a organização é profissional.
Nota-se alguma preocupação com questões de segurança. Toda a carga é verificada assim que um camião chega, há um sistema de videovigilância e difusão de informação sonora. Cada pessoa que entra no recinto tem a sua mala revistada. Iuri diz que na véspera receberam uma informação de que poderia haver um dispositivo explosivo numa das cargas, mas o alarme revelou-se falso.
“Não temos medo, lidamos com isso. Vamos ganhar, porque a verdade está do nosso lado, trata-se apenas de segurança”, afirma, sem nunca abandonar o registo de gestor eficiente.
O músico e o funcionário
Andrei está no seu primeiro dia de trabalho voluntário no Palácio das Artes. Tem andado a receber caixotes de camiões para depois separar por categorias de mantimentos. Em tempos de paz é funcionário público e admite que este tipo de actividade é cansativo. “Mas não há alternativa”, acrescenta em seguida. “As pessoas estão a trabalhar 24 horas”, observa.
Considera importante aquilo com que irá ocupar as próximas horas, até se aproximar a hora do recolher obrigatório fixado às 22h. “É triste que nos mandem ajuda e depois isso se perde”, justifica. Andrei inscreveu-se nas Forças de Defesa Territoriais, o braço de voluntários das Forças Armadas ucranianas, e irá continuar a trabalhar como voluntário enquanto não for chamado. “Não podia ficar em casa sentado.” Explica que nunca pegou sequer numa arma de fogo e reconhece ter “um bocadinho” de medo. “Mas tenho mais medo pelo meu país”, justifica.
Não muito longe do anónimo Andrei está Oleksandr Bozhik, um célebre violinista ucraniano a quem foi dado um colete amarelo para coordenar as entradas e saídas do Palácio das Artes. Este é também o seu primeiro dia e o músico diz-se preparado para desempenhar qualquer tarefa. “Posso fazer tudo, que isso não vai prejudicar as minhas mãos”, afirma, entre dois sorrisos.
Depois do início da invasão, Bozhik diz que ainda tentou compor alguma coisa, mas aquilo que antes lhe era natural agora revela-se impossível. “Não posso criar nada sabendo que um rocket pode atingir o meu prédio”, lamenta. O trabalho artístico terá de esperar até à vitória desejada por todos os seus compatriotas. Por agora, diz, “o nosso Exército não precisa de inspiração, a motivação é extremamente elevada”.
Encostado a uma parede perto da porta está um piano de cauda, provavelmente retirado da sala de espectáculos, e que, em tempos de guerra, terá a função de uma mesa. A resistência implica adaptações.
Não há vidas intocadas pela invasão russa, mesmo na segurança oferecida até agora por Lviv. “Hoje não levamos uma vida normal”, diz o vice-presidente da Câmara Municipal, Andrei Moskalenko, numa rara pausa entre reuniões e telefonemas. A cidade de mais 700 mil habitantes tem hoje várias funções cruciais para o esforço de guerra da Ucrânia. Ao mesmo tempo que se tornou num ponto de passagem para os muitos milhares que fogem aos combates, é também um importante centro de apoio logístico para as forças que defendem o território.
“Os últimos dias foram muito duros para o nosso país e hoje não estamos divididos entre residentes de Lviv, Kharkiv, Kiev, Kherson, ou outras cidades, hoje somos todos ucranianos”, afirma Moskalenko. O município tem tentado assegurar os serviços essenciais, como o fornecimento de água, electricidade e aquecimento, bem como de limpeza de ruas e segurança urbana, ao mesmo tempo que procura formas de atender a situações causadas pelo conflito.
Um dos exemplos é a organização de locais para que as pessoas deslocadas possam passar algum tempo, sendo reservadas para esse feito quase todas as escolas e universidades – as aulas estão suspensas desde o início da guerra.
Apesar do optimismo inabalável dos ucranianos, o progresso das forças russas sobre Kiev traz o fantasma da queda da capital política do país. Nas vésperas da invasão, várias embaixadas e organizações internacionais, entre as quais a NATO, mudaram as suas sedes para Lviv. Na eventualidade de uma ocupação de Kiev e de grande parte do território pela Rússia, seria a maior cidade do Oeste uma potencial capital da “Ucrânia livre”?