21.3.22

"O modelo de desenvolvimento vigente só tem possibilidade de se manter à custa da pobreza e da desigualdade"

Leonídio Paulo Ferreira, in DN

Biodiversidade e sustentabilidade é a terceira conferência do ciclo Diversidade Biológica, Desertificação e Sustentabilidade organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A palestra de António Domingos Abreu, cátedra Unesco em biodiversidade e conservação para o desenvolvimento sustentável, pode ser hoje vista às 18 horas por Zoom.

Os portugueses estão conscientes da necessidade de proteger o ambiente?
De um modo geral, creio que os portugueses estão ainda longe de uma consciência da importância que o ambiente assume enquanto pilar fundamental do desenvolvimento. Com certeza que se regista uma evolução muito importante ao nível do conhecimento e da sensibilização para as questões ambientais mas ainda insuficiente. As preocupações ambientais situam-se muitas vezes num nível simbólico, distante da realidade quotidiana num manto difuso que não permite uma mudança de atitude e comportamental que ajude a promover o ambiente como seria desejável. Por outro lado, nota-se uma vontade de fazer mais pelo ambiente mas, ao mesmo tempo, alguma incapacidade prática, uma dificuldade material em concretizar essa consciência ambiental. Um cidadão comum, mesmo alertado e consciente para as questões ambientais, encontra invariavelmente muitas dificuldades em empreender ações concretas. Por exemplo, em relação à biodiversidade, um cidadão comum, consciente e informado sobre a degradação geral do ambiente natural, da perda de habitats e ecossistemas, da extinção de espécies, questiona-se, o que, como e onde pode fazer alguma coisa concreta e objectiva para ajudar a resolver ou mitigar essas situações. Não encontra oportunidades nem espaço de actuação ou então, não dispõe de condições materiais, económicas ou disponibilidade para contribuir porque também tem de acudir a outras necessidades. O elevado grau de pobreza que ainda persiste em Portugal, as dificuldades que uma grande parte da população ainda enfrenta para resolver questões básicas do seu dia a dia solicitam a atenção dos cidadãos para questões mais imediatas e individuais ou familiares em detrimento de temas de interesse comum, estruturantes, como o é o ambiente.

Tem havido da parte das autoridades portuguesas passos concretos para lidar com a ameaça do aquecimento global?
Ao nível do Estado, das políticas e da ação governativa em matéria de ambiente e alterações climáticas, Portugal é hoje muito diferente do que foi no passado. Acompanhamos todas as dinâmicas associadas à crise climática global, a nível internacional e temos até sido capazes de estar na linha da frente em algumas das áreas de intervenção, como é o caso das energias renováveis. No entanto há ainda um trabalho imenso a fazer no domínio do ordenamento e gestão do território e dos recursos de que dispomos, que possa ajudar a eliminar contradições e anacronismos incompreensíveis e que poderiam ajudar a reforçar as capacidades de adaptação do nosso território e das nossas comunidades. Promover uma conservação da natureza e biodiversidade que assegure os serviços de ecossistema fundamentais, que suportam a paisagem e muitas das nossas atividades socioeconómicas mais importantes, é tão vital como apostar nas energias renováveis.

Pode apontar alguns bom exemplos em Portugal de gestão do ecossistema?
Portugal é um país com uma grande e importante diversidade biológica e ecossistemas, incluindo as regiões autónomas que são verdadeiros hotspots de biodiversidade endémica, ou seja exclusiva. Apesar de todas as limitações e conflitos tem sido possível conservar uma parte desse património numa lógica preventiva e de interdição o que, de algum modo, também limita a capacidade e alcance da própria conservação da natureza e biodiversidade. Casos de sucesso ao nível da recuperação de espécies como o lince ou o lobo marinho, são assinaláveis e constituem bons exemplos. Mas para melhorar a conservação e utilização sustentável da natureza e biodiversidade em Portugal era importante apostar mais no conhecimento e na utilização do mesmo na gestão dos espaços naturais, protegidos ou não, no fomento do envolvimento dos cidadãos, no aumento da responsabilidade das empresas, criando um quadro cooperativo menos agarrado a regulamentos que ninguém compreende e aproveitando oportunidades que também se podem constituir como elementos de valorização territorial e das suas comunidades.

Os limites do planeta estão em vias de ser ultrapassados?
Os limites planetários estão já ultrapassados no sentido em que o modelo de desenvolvimento vigente só tem possibilidade de se manter à custa da pobreza e da desigualdade entre seres humanos. Vivemos num planeta fantástico sob uma governação global injusta e desigual. Não existem recursos suficientes para que todos os seres humanos possam disfrutar de um padrão de vida igual ao dos que desperdiçam, degradam e contribuem para a deterioração e exiguidade de recursos. Para muitos seres humanos, há muito que vivem no pós-desastre ambiental, sem acesso a água, energia, alimentação, educação, saúde na qualidade a que têm direito. Não havendo mudança, em breve os que ainda usufruem desses "luxos" também passarão à situação de pobres.

Teme que a crise internacional criada pela invasão russa da Ucrânia afaste as atenções da necessidade de combater as alterações climáticas e até prejudique a cooperação internacional nessa matéria?
A guerra, seja na Ucrânia, na Síria ou em qualquer outro lado do planeta é uma calamidade que evidência o pior da natureza humana. O foco, na guerra, é sempre o interesse individual, o ignorar do bem comum e da necessidade de cooperar. A guerra distrai sempre a atenção no sentido do que interessa a cada beligerante e seus aliados mais próximos, em detrimento do que deveria ser o interesse comum. E mostra que ainda estamos longe de entender que todos dependemos uns dos outros, que estamos num mesmo barco. Certamente que esta e qualquer outra guerra constituem um retrocesso e uma desaceleração para com as preocupações e ações em favor do ambiente e das alterações climáticas. A que acresce a imediata reação, até da União Europeia, em aumentar o investimento no sector da guerra.

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