25.3.22

CNIS defende um imposto para financiar setor social

Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia), in RR

Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, o padre Lino Maia sugere, também, a “revisão do regime fiscal das instituições de solidariedade” e que parte das receitas dos jogos sociais deveriam ser canalizadas para este setor.

O presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade Social (CNIS) defende “a consignação de um imposto para este setor”. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, o padre Lino Maia sugere, também, a “revisão do regime fiscal das instituições de solidariedade” e que parte das receitas dos jogos sociais deveriam ser canalizadas para este setor.

O sacerdote quer que “a sociedade se volte para os que precisam de mais apoio”, pois receia pelo impacto da guerra na vida dos mais carenciados. O padre Lino Maia teme que a crise económica e social provocada pela pandemia, que está a ser agravada pela guerra na Ucrânia, possa provocar uma explosão de pobreza em Portugal.

Defende que “é preciso uma estratégia séria, consistente de combate à pobreza”, até porque “haver cerca de 20% de pessoas abaixo do limiar da pobreza”, com a possibilidade de o número aumentar face ao atual contexto, “é grave”.
O sacerdote sugere ao primeiro-ministro, António Costa, a criação do Ministério dos Assuntos Sociais, pois “a Educação, a Saúde e a Segurança Social têm de estar bem articuladas” e revela que não está na disposição de se recandidatar à presidência da CNIS, sendo que o reforço da sustentabilidade do setor “é a grande preocupação”.

A CNIS associou-se ao esforço de acolhimento de refugiados e foi recebendo das suas associadas a manifestação de disponibilidades. Tem ideia de quantas instituições particulares de solidariedade social (IPSS) já se disponibilizaram para o acolhimento?

Muitas. E eu digo muitas porque são de muitos distritos ou dioceses. Eu cito Braga com bastantes e também Castelo Branco, Faro, Guarda, Lisboa, Porto, Santarém, Viana do Castelo. Muitas instituições com muito tipo de respostas. Emprego, alojamento, coordenação porque estão sediadas em zonas que podem empregar pessoas. Portanto, uma grande disponibilidade. Já estão em curso até cursos de Português para refugiados. A adesão tem sido extraordinária.

"Eu tenho mais respostas para acolhimento do que pedidos de acolhimento"

No conselho geral da CNIS teve mesmo oportunidade de apelar e sensibilizar as instituições associadas a manifestarem as suas disponibilidades em termos de alojamento e de trabalho e as fazerem chegar à CNIS. A capacidade do setor social até onde pode ir?

É muito grande porque nós estamos a falar de um universo de associadas da CNIS de 3.048 instituições. Claro que nem todas podem acolher, mas particularmente aquelas que têm lares de infância e juventude, aquelas que têm centros de dia, ERPIS, empregam muitas pessoas e nós já estávamos até com dificuldade em recrutar trabalhadores e aqui temos uma janela de esperança.

Verificamos nas nossas reportagens que têm surgido muitos alertas para a dificuldade em contratar pessoal. Esta é também uma janela de oportunidade, para quem chega e para quem está?

Exatamente e nós temos visto e temos a experiência - porque temos bastantes ucranianos, sobretudo ucranianas a trabalhar nas IPSSs - de que são de grande adaptação, bom trabalho, não são problema, pelo contrário. Aliás, os trabalhadores nunca são problema nas instituições, e no caso concreto são uma mais-valia e, portanto, estas trabalhadoras ajudam à inserção dos refugiados e são também de algum modo uma garantia de que tudo vai correr bem.

Nós estamos a ver que a solidariedade em Portugal é transversal. O Alto Comissariado para as Migrações (ACM), articulado com o Instituto de Segurança Social, está a assegurar a distribuição de alojamento para os cidadãos ucranianos. O processo está a correr bem em Portugal?

Está a correr bem. Claro que nós fomos apanhados de repente e, às vezes, dá a sensação de que é um bocado o caos aquilo em que estamos. Mas os portugueses são bons nesse espeto.

Mas estamos a viver um pouco à custa do improviso?

É um bocado de improviso, mas eu diria que está a correr bastante bem, até porque nas comunidades, não apenas nas IPSSs, mas nas comunidades eu vejo uma grande movimentação para acolher. Eu tenho mais respostas para acolhimento do que pedidos de acolhimento.

Estão a surgir diversos alertas contra o tráfico de seres humanos. O facto de ter sido criada uma plataforma eletrónica para o registo de casos de menores ucranianos não acompanhados em Portugal ou em trânsito, vai garantir realmente a sua segurança e plena proteção?

Eu estou confiante que sim, até porque há uma ligação, sobretudo em Lviv e na Polónia, com estas famílias de ucranianos. Estão a surgir de facto iniciativas no sentido de serem pessoas creditadas a irem buscar diretamente as pessoas, sobretudo à Polónia. E claro que tem de haver uma atenção muito grande porque o risco existe, mas eu acredito que sabendo de onde vêm e para onde vão - e é isso que está acontecer - e vêm daquela zona e vão diretamente para instituições, passando algum tempo por um alojamento temporário, eu acredito que risco existe, mas que vai correr bem.

E o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) pode ajudar a atenuar eventuais problemas?

Atenua, atenua.

No seu editorial de março, recorda o conjunto de questões colocadas pelo setor social aos partidos antes das eleições. O reforço da sustentabilidade do sector é a sua grande preocupação?

É a grande preocupação. Eu mantenho os números que tenho vindo a apresentar. As instituições recebem do Estado em média cerca de 38% de financiamento dos custos que têm. Dos utentes recebem cerca de 33%. Há aqui 71%, ou seja, falta bastante, cerca de 29%.

Com a celebração do novo pacto de cooperação, que foi a 23 de dezembro passado e com uma abertura que tenho encontrado por parte do Governo, eu acredito que vão ser dados passos positivos no sentido da sustentabilidade. No pacto de cooperação garantia-se os 50% de comparticipação pública.

Esse é já um objetivo muito antigo.

Muito antigo. Eu diria que é desde o primeiro pacto, desde dezembro de 1996. Na altura era primeiro-ministro o engenheiro António Guterres. Dizia-se que o ideal era 60% e prometia-se que não devia descer dos 50%, e nós acabamos por cair nos 36, 38%.

Agora, têm que ser dados passos muito significativos. Eu penso que durante a legislatura - foi aliás uma espécie de quase compromisso que o Governo assumiu connosco - sejam dados passos no sentido de chegar aos 50%. Isto vai atenuar um bocado a situação das instituições e acautelar um problema que é de facto muito importante: As instituições têm que privilegiar os mais carenciados. Ora, na situação em que estamos podem cair na tentação de começar a olhar aquelas pessoas que podem pagar para serem admitidas. E essa não é a missão das instituições, por isso o Estado tem de cumprir as suas funções.

No final do ano passado alertou para as dificuldades de tesouraria que o aumento do salário mínimo nacional acarretava para as instituições. Tem registo de quantas pediram compensação pelo aumento do ordenado mínimo?

O número não tenho, mas foram bastantes até porque o salário mínimo é muito normal nestas instituições. Nós temos 56% dos trabalhadores nas IPSSs, que quando há um aumento do salário mínimo são atingidos por esse aumento. No valor que estava e no valor a que se chega, isto tem um impacto muito grande. Por exemplo, este aumento de 665 euros para 705 euros representa cerca de 3% no impacto, porque nós temos muitos trabalhadores nas IPSSs.

"Sou da opinião que haja a consignação de um imposto para este setor. Temos cada vez mais necessidades e é preciso que a sociedade se volte para isto"

Convém esclarecer que não está em causa o facto de as pessoas merecerem melhores salários. O problema é, muitas vezes, esse aumento do ordenado não é acompanhado pelo aumento das comparticipações.

Exatamente. Agradeço esse sublinhado. Nós achamos que os trabalhadores deviam receber muito mais do que recebem. Aliás, eu costumo dizer que nós estamos a obrigar os trabalhadores a praticar a caridade, e sendo injustos com os trabalhadores. Porque as tabelas salariais das IPSSs são baixas, muito baixas. E depois está a haver um achatamento muito grande. O salário mínimo de 705 representa dois terços do salário máximo nas instituições, quando há 20 anos atrás era um terço. Está de facto a haver um achatamento.

Nós somos absolutamente a favor do aumento do salário, absolutamente a favor do aumento de todos os salários dos nossos trabalhadores, agora é evidente que não há receita, não é possível mais. Eu acredito que vão ser dados passos e quando eu insisto sempre nos tais 50% de comparticipação pública é exatamente para que possamos compensar os trabalhadores, ou melhor ser justos com os trabalhadores que estão nas instituições.

Há, portanto, necessidade de regressar a um salário médio também nas instituições. Não se está a valorizar demasiado o salário mínimo, desvalorizando a importância de um salário médio em Portugal?

Sim. Não apenas nas IPSSs, mas também no geral. De facto, nós temos o salário médio que é praticamente agora o salário mínimo. Isto desincentiva e não é justo. Claro que é muito importante que se aumente significativamente o salário mínimo. 705 euros para uma família não é suficiente.

O chamado compromisso de cooperação para o setor social e solidário terá nova atualização no final deste ano? O que vão reclamar as instituições?

Há passos que têm de ser dados, para além do aumento significativo da comparticipação pública – cada vez mais temos pessoas a precisar de mais apoios, com o aumento da esperança de vida, mas com a diminuição da natalidade temos cada vez menos pessoas a produzir riqueza. Estamos com problemas sérios. É muito importante que a sociedade se volte para a necessidade de aumentar os apoios, particularmente aos idosos, e a proteção social.

Eu penso que há coisas que têm de ser revistas, como o regime fiscal das instituições de solidariedade ou o destino das receitas dos jogos sociais, que devem ser canalizadas para este setor, em grande parte.

Há alguma parte já destinada ao setor?

Nalguns programas, eventualmente, mas não há um sistema de canalização de receitas, sistemático.

E a sua sugestão é que grande parte siga para as instituições?

Uma boa parte, sim. Aliás, sou da opinião que haja a consignação de um imposto para este setor. Temos cada vez mais necessidades e é preciso que a sociedade se volte para isto.

Essa seria uma forma de poder chegar às pessoas mais carenciadas e que não podem comparticipar os custos?

Sem dúvida. Repito: a sociedade, em geral, tem de pensar nos mais carenciados, nos que precisam de mais apoio. Temos de criar instrumentos para que sejam atendidos.

Portugal está a registar uma tendência crescente de novas infeções por Covid. A situação nos lares é hoje controlada, ou receia pelo aumento de casos?

Tem havido algum aumento de casos, mas sem grande gravidade. As pessoas estão todas vacinadas, praticamente todas receberam a terceira dose. Devo sublinhar que Portugal, neste aspeto, se pode orgulhar – ressalvando que, desde que haja um óbito, choramos uma morte e sofremos com um doente -, porque é dos países em que tem havido menos morbilidade nos lares. Está, neste momento, em 26,6% de óbitos, em lares; o país a seguir é o Reino Unido, com 33%, e depois a Alemanha, com 38%.

E isso deve-se a quê?

Há várias razões, mas para mim a grande razão é que, normalmente, nos lares, há uma grande proximidade. Os dirigentes e os trabalhadores estão nas instituições, houve casos fabulosos, horas e horas, dias e dias, meses, a fazer do lar a sua residência, para acompanhar bem e não para estarem em movimento, que era essa o grande problema.

A crise social e económica provocada pela pandemia está a ser agravada pelo cenário de guerra. Teme uma explosão de pobreza em Portugal?

Sem dúvida. Está a ter grande impacto, já, o aumento dos combustíveis, dos cereais e da alimentação. Já se nota na vida das instituições.

Dando um exemplo: o aumento dos combustíveis na Santa Casa da Misericórdia de Mogadouro, associada da CNIS, que por dia percorre 910 quilómetros para atender os utentes do apoio domiciliário. Isto é muito duro, muito duro…

A situação já era bastante delicada, com o aumento das despesas por causa da pandemia…

E agora aumenta significativamente. Isso obriga-nos a desmultiplicar-nos, é preciso tomar medidas. Vejo que o próprio Banco Alimentar já se queixa de ter menos capacidade de resposta e as Instituições vão sofrer, de facto, estão a sofrer neste momento.

Estamos perante uma espécie de tempestade perfeita?

Sim. Este século está a ser muito duro, desde 2001, mas particularmente desde 2008, com a crise financeira. Ainda não estávamos totalmente livres dessa crise, apareceu a pandemia e agora a guerra. Isto é complicado, muito, e tem repercussões muito claras na vida das pessoas e no aumento da pobreza.

Quando entramos neste milénio, as perspetivas eram de que, até 2010, se descesse a taxa de pobreza para um dígito, abaixo dos 10% - na altura estávamos em 20%. Houve uma diminuição na primeira década, deste milénio, mas de 2008 voltou a haver um aumento da pobreza, não muito grande, mas um aumento. Passamos de 18,6% para os 21%, agora.

Tem alguma esperança para o combate da pobreza, em curso?

É preciso uma estratégia séria, consistente de combate à pobreza. Nós temos três pobrezas, digamos assim: a hereditária, dos que herdaram a pobreza e a vão legar; a conjuntural; e depois a pobreza persistente, diria, daqueles cujos rendimentos não são suficientes para as necessidades. Temos de ter uma estratégia em que tudo isto esteja bem presente, com um aumento significativo dos rendimentos e uma aposta na Educação, na habitação.

Essa persistência de ciclos de pobreza e a pobreza de quem trabalha, mas não consegue deixar esse limiar, é um sinal do fracasso das políticas até agora?

Sim. Eu diria das políticas, mais do que dos políticos. Não tem havido mesmo uma estratégia de luta contra a pobreza, tem havido fogachos, experiências, iniciativas, muito interessantes algumas, mas temos de encontrar uma estratégica eficaz.

Haver cerca de 20% de pessoas abaixo do limiar da pobreza – e temo que isso aumente, agora – é grave.

A nível da coordenação do Governo, também é necessária uma ação mais integrada?

Para mim, há três ministérios que têm de estar mais articulados. Eu vou defendendo que precisaríamos de um Ministério dos Assuntos Sociais. A Educação, a Saúde e a Segurança Social têm de estar bem articulados, têm de ser “apanhados” para esta estratégia. Há outros, mas estes três têm de abater as paredes que foram erguidas entre si, para conseguirmos uma boa estratégia.

É uma sugestão a fazer ao novo Governo, a criação de um Ministério dos Assuntos Sociais?

Eu tenho insistido um pouco nisso – não me quero meter em áreas que não me dizem respeito, mas julgo necessário e vejo que há sensibilidade, da parte do primeiro-ministro, para que alguns passos sejam dados nesse sentido. Não me compete e não queria adiantar muito mais, mas vejo que há reconhecimento de que é preciso dar estes passos.

Entrou no último ano de mandato. Pode antecipar se está no seu horizonte recandidatar-se?

Não, não está no meu horizonte. Muito embora note que haja uma pressão para que reconsidere.

Eu gosto muito deste setor, que faz muito e muito bem, mas são precisas caras novas. Não está no meu horizonte eternizar-me – parece que já estou eternizado -, apesar das pressões que estão a acontecer para que reconsidere. Acho que é bom dar lugar a outros.