2.3.22

“Há redes mafiosas que têm o objectivo de explorar o trabalhador em Portugal”

Ana Dias Cordeiro ( texto) e Daniel Rocha ( fotografia), in Publico on-line

Carlos Graça, director da unidade da ACT que fiscaliza o trabalho agrícola na zona de Odemira, diz que os fenómenos de exploração laboral agravados pela entrada em cena das empresas intermediárias, prestadoras de serviço, estão presentes em muitas outras partes do país.

Na unidade da ACT do Litoral e Baixo Alentejo, que dirige, tem uma equipa de 15 inspectores. Como são realizadas as inspecções?
De várias formas e em várias perspectivas. O concelho de Odemira é o maior do país mas estes fenómenos circunscrevem-se a três freguesias do concelho. Temos fenómenos idênticos em todo o distrito de Beja, em toda a zona de intervenção da Unidade Local do Litoral e Baixo Alentejo, porque mesmo em Tróia, Alcácer do Sal, existem estes mesmos fenómenos. A única diferença é a concentração. Em Odemira temos uma concentração que chegará a atingir 15 mil pessoas. Em regra, não desencadeamos acções com cariz mais musculado, verificador da conformidade sem desenvolvermos acções com cariz pedagógico, informador, e isso foi feito, nos últimos anos. Em 2021, a inspecção desenvolveu uma acção pedagógica, no âmbito da pandemia. Mas em Maio, como uma parte significativa não estava a cumprir, começámos a desenvolver uma actuação muito mais objectiva. Em articulação com o SEF, a GNR, o Ministério da Saúde, a Segurança Social e, outras vezes, o ACT sozinho. Passámos a desenvolver uma acção de verificação e de controlo muito mais efectiva.

Como se faz essa verificação mais efectiva?
Nós direccionamos a actuação para a identificação das pessoas e para a verificação das suas condições de trabalho. Para isso, são necessárias acções conjuntas, nomeadamente com a GNR, com uma actuação muito mais musculada. O campo é todo circunscrito, os trabalhadores são trazidos a um ponto central, onde são identificados comprovadamente através de documentos. Temos a percepção in loco do contacto com os trabalhadores dos problemas que os afectam nas suas relações de trabalho, das suas questões sociais, e de alojamento.

Mas muitas vezes, as inspecções são realizadas sem que os trabalhadores sejam ouvidos. Porquê?
Quando é necessário, os trabalhadores são ouvidos em declarações. Ouvimo-los em declarações.

E confirmam as irregularidades ou têm medo de represálias?
Não temos dúvidas de que os trabalhadores estão muitas vezes condicionados e principalmente os que estão ao serviço de prestadores de serviços, não aqueles que têm contratos directos com as empresas agrícolas. Se não usamos tradutores, é quase impossível, e mesmo quando usamos tradutores, eles fecham-se. A condicionante é constante – até porque as represálias não se exercem só sobre eles. Exercem-se muitas vezes, infelizmente, sobre os familiares que estão no país de origem. Tivemos o caso de uma pessoa que era preciso levar para uma casa-abrigo em Lisboa. Ela estava em risco, mas não queria ir, porque dizia que se fosse embora, iriam matar o pai e a mãe no país de origem. E há uns anos tive conhecimento do caso de um trabalhador a quem ameaçaram matar a filha. E mataram mesmo.

Num caso desses, o que pode fazer a ACT de imediato?
Articula com as forças, com os órgãos de polícia criminal (OPC). A ACT age nos limites das competências que tem. Quando entramos em matéria crime, articulamos com os OPC [GNR, PJ ou outros]. Temos canais privilegiados. Eu dou conhecimento da situação. Isto é uma constante, e não é só em Odemira. Passa-se em todo o Alentejo e transversalmente mesmo em todo o país. Eu já actuei em Santarém e tive casos similares, também no Algarve, em toda a zona costeira a norte de Lisboa, Torres Vedras, e agora até mais a norte, até Bragança. O modus actuandi é o mesmo: atrás e em torno deste processo produtivo, há redes que são autênticas redes mafiosas e que utilizam a mão-de-obra, que trazem para Portugal com fins que não são lícitos e têm o objectivo de explorar o trabalhador. Não é o El Dorado que ele sonhava mas mesmo assim é bom, por ingrato e por quase macabro que seja dizer ainda acaba por ser muito bom para ele, comparativamente à situação que tinha no país de origem.

"Em 2021, a inspecção desenvolveu uma acção pedagógica no âmbito da pandemia. Mas em Maio, como uma parte significativa não estava a cumprir, começámos a desenvolver uma actuação muito mais objectiva."

Qual o tipo de empresa que recorre a esses prestadores de serviços?
Os agricultores muitas vezes têm que recorrer a essas empresas prestadoras de serviços porque não têm alternativas [para continuar a colher o fruto no momento certo em que este está apetecível e para não haver desperdício]. São agricultores com estruturas muito débeis, não têm quase ninguém como trabalhadores directos e contratam, só nas alturas em que precisam, os prestadores de serviços [que lhes colocam os trabalhadores nos campos]. Estas estruturas até aos 10 hectares correspondem a pelo menos 60% do total dos campos. Assim acabam por beneficiar de uma mão-de-obra substancialmente mais barata graças às prestadoras de serviços. Por trás destas, normalmente, estão redes que nem estão no nosso país.

Como é possível actuarem de forma generalizada, como diz, e há tanto tempo em Portugal?
Estas empresas desaparecem e voltam a aparecer com outro nome quando começam a ser investigadas. Acabam por ser extintas administrativamente nas conservatórias nacionais. Desaparecem num dia, porque deixam de operar, mas logo a seguir uma nova empresa é criada com outro nome. São as empresas unipessoais. Por outro lado, antes da alteração à lei da imigração de 2007, com a introdução do artigo 88, os processos de admissão e recrutamento dos trabalhadores estrangeiros eram feitos de uma forma totalmente diferente. Os pedidos eram apresentados através do IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional], eram tramitados com a nossa articulação e, por conseguinte, as pessoas quando vinham para Portugal já vinham com um visto de trabalho. A alteração teve a melhor das intenções, veio facilitar a regularização desses trabalhadores com base numa norma de excepção – o artigo 88 da lei de estrangeiros. O objectivo é extraordinário, é digno, mas veio facilitar a existência destes prestadores de serviços. O trabalhador acaba por ser legalizado passados três ou quatro anos. E nós precisamos deles. Eles são cruciais para o país. Temos que ter isso presente. E são vítimas de toda uma rede que está por detrás disso.

Os trabalhadores contratados directamente pelas empresas agrícolas também se sentem condicionados quando ouvidos pelos inspectores no âmbito de um processo?
Pode haver casos desses em que os inspectores também têm a percepção de que o trabalhador se sente pressionado mas não tem nada a ver com aquilo que nós sentimos nas empresas intermediárias.​

"Estas estruturas até aos 10 hectares correspondem a pelo menos 60% do total dos campos. Beneficiam de uma mão-de-obra substancialmente mais barata graças às prestadoras de serviços"