3.3.22

Estudantes têm quase 40 milhões de euros de propinas em atraso. Pandemia fez disparar dívidas

Samuel Silva, in Público on-line

Verbas por pagar aumentaram 35% face ao período anterior à covid-19. Estudantes que não têm acesso a bolsas de estudo são os mais afectados, segundo as associações académicas.

A pandemia fez disparar o número de estudantes que têm o pagamento das propinas em atraso. Há quase 40 milhões de euros em dívida, de acordo com dados disponibilizados por 17 das 29 instituições de ensino superior. A flexibilização dos prazos de liquidação dos custos de frequência dos cursos também pode ajudar a explicar o fenómeno. Em alguns casos, o valor em débito aumentou entre 50 e 70% nos últimos dois anos.

De acordo com os números disponibilizados ao PÚBLICO pelas universidades e institutos politécnicos, os estudantes ainda não pagaram acima de 38 milhões de euros de propinas. É um aumento de 35% – ou seja, quase dez milhões de euros – para o conjunto das mesmas instituições. A comparação é feita entre o final do ano civil de 2019, antes do início da pandemia de covid-19, e os primeiros meses deste ano.

Em muitos casos, o valor das dívidas dispara, neste período. Com aumentos que são de 40%, no Politécnico do Porto, e quase 30% na Universidade de Coimbra. Uma das instituições de ensino onde as propinas em atraso mais cresceram foi o Politécnico de Bragança. Entre o início de 2020 e os primeiros meses deste ano, o valor em dívida passou de 657 mil euros para 1,1 milhões. Um incremento de quase 70%.

“Entendemos que este crescimento se deve à pandemia”, avalia o presidente da instituição transmontana, Orlando Rodrigues. Até porque, prossegue o mesmo responsável, “nos períodos anteriores o valor de propinas em dívida mantinha-se estável”. Este aumento foi mais acentuado logo no primeiro ano da covid-19, subindo o total em dívida para 889 mil euros.

No Politécnico de Coimbra, o valor da dívida dos estudantes aumentou 55%, fixando-se agora em 1,8 milhões de euros. Esta variação será, “certamente, um efeito da pandemia”, avança a presidência da instituição, em resposta escrita enviada por correio electrónico. “O facto de os estudantes estarem menos presentes por força do ensino à distância também ajudará a um maior descuido no pagamento.”

Estes números são “coerentes” com os resultados de um questionário sobre o efeito da pandemia feito pela Federação Académica de Lisboa junto dos estudantes da capital. “Mais de um quarto viu os rendimentos das suas famílias serem afectados durante esse período”, sublinha o presidente da organização estudantil, João Machado.

Os valores de propinas em dívida podem, também, indicar um aumento do abandono escolar, prossegue o dirigente escolar. Muitos estudantes deixam de frequentar o curso, mas não cancelam a matrícula e, por isso, ficam a acumular dívidas, explica.

Os números mais recentes da Direcção-Geral do Ensino Superior apontam para um ligeiro aumento do abandono – nas licenciaturas, passou de 8,8 para 9,1% e, nos mestrados integrados, subiu de 3,4% para 3,7%. As associações de estudantes acreditam que os números oficiais escondem uma realidade “mais grave”.

O problema das propinas em atraso e do abandono afecta “sobretudo um grupo de estudantes que não usufruem de acção social escolar”, acredita a presidente da Federação Académica do Porto, Ana Gabriela Cavilhas, tendo em conta os resultados de inquéritos feitos aos estudantes da cidade. “São estudantes de classe média e média-baixa cujos rendimentos familiares ficam a muito pouca distância do valor definido para ter acesso aos apoios e que, por isso, não usufruem da bolsa de estudo.”

É provável que este aumento seja um efeito da pandemia, uma vez que nos últimos cinco anos a Universidade do Porto tinha registado uma tendência decrescente no valor de propinas em dívida. O ano de 2021 representou uma inversão desta tendência António Sousa Pereira, reitor da Universidade do Porto

O PÚBLICO recolheu estes dados directamente junto das universidades e politécnicos. Responderam à solicitação 17 das 29 instituições de ensino superior públicas. Fora destas contas estão, por exemplo, a Universidade de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa, que não responderam às questões enviadas nas últimas semanas.

Já na Universidade do Porto, o valor em dívida aumentou, no último ano, 5%. “É provável que este aumento seja um efeito da pandemia, uma vez que nos últimos cinco anos a Universidade do Porto tinha registado uma tendência decrescente no valor de propinas em dívida”, afirma o reitor, António Sousa Pereira. O valor dos débitos dos estudantes tinha baixado de dez milhões em 2017 para 8,5 milhões em 2020. “O ano de 2021 representou, assim, uma inversão desta tendência, sendo a pandemia e as dificuldades económicas provocada pela mesma as causas mais plausíveis.”

Na última década, o Tribunal de Contas e a Inspecção-Geral de Finanças chamaram a atenção de universidades e politécnicos em diferentes relatórios de auditoria, apontando a necessidade de serem criados mecanismos mais eficazes de cobrança de propinas junto dos alunos, face às elevadas dívidas existentes.

A partir de 2015, a generalidade das instituições de ensino passou a pedir que a cobrança aos estudantes em incumprimento passasse a ser feita pela Autoridade Tributária, equiparando-a a quaisquer outras dívidas ao Estado. A prática ajudou a reduzir os valores em dívida. Nos últimos dois anos, a maioria das universidades e politécnicos optaram por não emitir certidões de dívida para efeitos de cobrança junto das Finanças.

Esse relaxamento, motivado pelas dificuldades socio-económicas sentidas pelos alunos durante a pandemia, ajuda também a explicar o aumento das dívidas. Isso mesmo é assumido por instituições como a Universidade de Aveiro: “Em matéria de propinas, não houve nenhum tipo de interpelação formal aos devedores de propinas, pelos Serviços de Gestão Académica da Universidade de Aveiro, nos anos académicos de 2019/2020 e 2020/2021.”

Além disso, também por força da pandemia, o Governo flexibilizou, a partir do final do ano lectivo 2019/20, os mecanismos de regularização das propinas em atraso, permitindo aos estudantes diluir os pagamentos por um maior período de tempo. Esta medida também terá contribuído para o aumento do total em dívida, dado que resulta num valor acumulado maior que é contabilizado pelas instituições. Ou seja, apesar de a dívida total ser maior, isso não significa necessariamente que esteja descontrolada, uma vez que aumentou o número de estudantes com planos de pagamento activos.

A covid-19 é apontada por quase todas as instituições como justificação para o valor de propinas em atraso, mas há excepções. O Politécnico de Setúbal, onde o valor da dívida passou de 171 mil euros no ano lectivo 2019/20 para 292 mil euros no final do último ano civil – ou seja, mais de 70% de crescimento –, considera o impacto da pandemia no aumento das situações de dívida “ligeiro”. O Politécnico de Lisboa também diz não ser “identificável qualquer influência da situação pandémica, quanto ao aumento da dívida referente a propinas por pagar”.

Também a Universidade Aberta, a única instituição pública nacional especializada em ensino à distância, “não sofreu um impacto penalizador neste período pandémico”, apesar de um aumento de 18% no número de estudantes. No último balanço, no início de 2020, esta universidade tinha 3,9 milhões de euros de propinas em dívida.