Desigualdades. A pandemia despertou uma onda de solidariedade, mas Portugal continua um país desigual: temos 1,6 milhões de pessoas abaixo do limiar da pobreza. Terá a solidariedade sido mera circunstância?
Nos bancos de jardim, nas portas das casas, à entrada das farmácias. Um pouco por toda a parte, durante a pandemia, todos testemunhámos a onda de solidariedade que invadiu a sociedade portuguesa: houve quem se voluntariasse para levar alimentos aos mais desfavorecidos, para combater a solidão dos idosos em visitas domiciliárias ou ajudar as crianças mais pobres. Em três palavras: ajudar o próximo. Agora que se adivinha o fim de um drama que durou dois anos é preciso fazer contas ao passado e perceber que futuro se reserva à solidariedade em Portugal.
É neste contexto que os Prémios BPI Fundação “la Caixa” estão de regresso (ver caixa), este ano com um reforço financeiro de €4,6 milhões. Portugal é ainda um país profundamente desigual e cabe às instituições sem fins lucrativos — mas também à população — empreender esse combate por uma sociedade mais equilibrada e justa. A questão é saber se agora vamos voltar às nossas vidas como eram antes da covid-19. Seremos mais solidários? Será que a pandemia nos ensinou a olhar para os mais desfavorecidos e, sobretudo, a agir? Quais os grandes desafios da solidariedade e do terceiro sector?
Perante estas questões, o sociólogo António Barreto mostra-se cético. “Vivemos tempos sinistros. Há testemunhos e opiniões contraditórias. Muita gente pensa que as pessoas e as instituições, em geral, aderiram a uma reação de solidariedade, mas eu tenho dúvidas”, começa por dizer. “Houve, de facto, situações em que as pessoas se ajudaram, faltavam máscaras, testes, comida, vacinas. Mas concluir que as coisas estão diferentes é exagerado. Gostaria que assim fosse, que, a prazo, a sociedade se equipasse melhor para problemas de emergências e esforços de solidariedade, mas quem está a dizer que houve uma grande reação de solidariedade está a confundir a realidade.”
Distanciamento aproximou as pessoas?
Cientistas sociais contactados pelo Expresso consideram prematuro concluir que Portugal é um país diferente no período pós-pandemia. É certo que no nosso léxico social entraram palavras como ‘resiliência’ e todos batemos palmas, pelas 10 da noite, encorajando os profissionais de saúde que estavam na linha da frente. Um país comovido com um problema mundial, que projetou nos vizinhos mais idosos, nos pobres que pediam na rua e nos que mais sofriam de exclusão social a bondade e vontade de ajudar. Mas a verdade é que as vidas se retomam perante a exigência da normalidade. E a normalidade, infelizmente, é sinónimo de um regresso ao passado: o terceiro sector continua a precisar do apoio de todos.
“As pessoas que estavam isoladas, em solidão, continuam assim. Os problemas não desapareceram subitamente”, diz ao Expresso o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto. António Tavares, tal como o sociólogo António Barreto, considera que “não se podem banalizar as questões e os desafios da solidariedade”. “Temos problemas muito complicados para resolver em Portugal, como o envelhecimento e o problema demográfico. Hoje morrem mais pessoas do que nascem, dá a sensação de que existe pouca confiança no futuro, o que nos obriga a uma reflexão sobre se a pandemia nos fez solidários”, diz o provedor, enumerando uma série de desafios que as instituições de solidariedade enfrentam: “O combate à fome, à solidão, o envelhecimento saudável, a saúde mental e a transição digital para todos.” Admite que é preciso encurtar a pobreza, porque, mesmo com as transferências sociais, existe pobreza extrema. “Com a pandemia, percebemos que os mais fracos, os idosos, as crianças, continuam frágeis. Não existe uma política no apoio domiciliário, algo que leve às pessoas uma dinâmica afetiva e tecnológica que as torne mais próximas.”
Num tempo em que a tecnologia assumiu ainda maior preponderância — com o teletrabalho, a escola à distância, as consultas médicas por videoconferência —, muitos acabaram por ficar para trás. O provedor considera que não existe uma política consistente que leve os meios tecnológicos ao país real, ao interior, aos idosos, às crianças de famílias com parcos recursos. “É preciso capitalizar este sector, cujos custos são elevados e as receitas são baixas.” Só assim será possível enfrentar todos os desafios.
Prémios com reforço de €4,6 milhões
Ajudar quem ajuda. Este é o lema dos Prémios BPI Fundação “la Caixa”, que regressam em 2022 com o compromisso de construir “uma sociedade mais justa, equitativa e solidária, capaz de dar mais oportunidades às pessoas”. Este ano, o projeto conta com um reforço de €4,6 milhões. Destinados a apoiar financeiramente projetos de instituições privadas sem fins lucrativos que promovam a qualidade de vida e a igualdade de oportunidades de pessoas residentes em Portugal e em situação de vulnerabilidade social, os prémios tocam em quatro problemas-chave: autonomia de pessoas com deficiência ou doença mental (Prémio Capacitar), luta contra a exclusão social (Prémio Solidário), apoio ao envelhecimento saudável (Prémio Seniores) e ajuda a crianças em situação de pobreza (Prémio Infância). As candidaturas ao Prémio Capacitar já estão abertas e prolongam-se até 21 de março. Outras datas de candidaturas: Prémio Solidário (22 de março a 26 abril); Prémio Seniores (27 de abril a 23 de maio); Prémio Infância (24 de maio a 27 de junho). Desde 2010 foram distribuídos mais de €22 milhões a 781 projetos de inclusão social. Contribuíram para melhorar a vida de mais de 175 mil pessoas.
Combater a solidão
ISOLAMENTO
É um dos problemas sociais que exigem resposta urgente e que afeta sobretudo a população sénior. Em Portugal, 91% dos idosos seguidos em cuidados de saúde primários vivem em solidão. De acordo com um estudo feito para a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS), um terço destes apresenta “níveis graves” de isolamento, principalmente nos que têm mais de 80 anos. Um problema que exponencia o sofrimento e o risco de serem sobremedicados.
1,6
milhões de portugueses vivem abaixo do limiar de pobreza, o valor mais baixo desde 2000. Ou seja, dois em cada cinco agregados familiares vivem, no máximo, com cerca de €833 mensais. Em 2020, praticamente 10% da população empregada era pobre. Prevê-se que estes números se tenham agravado com a pandemia
António Barreto diz que a pandemia revelou a fragilidade das sociedades, mal equipadas para dar resposta aos problemas sociais. Exigiu-se um grande esforço aos hospitais, às polícias, aos bombeiros e instituições.
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milhões de portugueses vivem abaixo do limiar de pobreza, o valor mais baixo desde 2000. Ou seja, dois em cada cinco agregados familiares vivem, no máximo, com cerca de €833 mensais. Em 2020, praticamente 10% da população empregada era pobre. Prevê-se que estes números se tenham agravado com a pandemia
António Barreto diz que a pandemia revelou a fragilidade das sociedades, mal equipadas para dar resposta aos problemas sociais. Exigiu-se um grande esforço aos hospitais, às polícias, aos bombeiros e instituições.
O problema da fome
Alimentação Os números da pobreza em Portugal traduzem um grave problema de fome entre as franjas mais vulneráveis. As estatísticas do Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas, do Instituto da Segurança Social, mostram que em 2020, o ano mais severo da pandemia, o número de beneficiários duplicou, de 60 mil para 120 mil. Mas as listas de espera vão engrossando: a Santa Casa da Misericórdia de Almada, por exemplo, ajudava 278 pessoas. Depois da pandemia, passou a distribuir cabazes por 556.
257
mil pessoas receberam o Rendimento Social de Inserção (RSI) em 2020, o valor mais baixo desde 2006. Mais de metade são mulheres (52%) e mais de dois em cada cinco (41%) têm menos de 25 anos. Entre 2010 e 2020, o total de pessoas a quem foi atribuído o RSI decresceu 51%
Os cientistas sociais acreditam que os mais vulneráveis, idosos e crianças não conseguiram quebrar o ciclo de fragilidade. Foi, dizem, uma solidariedade de circunstância.
Textos originalmente publicados no Expresso de 25 de fevereiro de 2022