2.3.22

Com o fim da pandemia à vista, que futuro para o SNS e para a saúde em Portugal?

Ana Maia, in Público on-line

Vários ex-ministros da Saúde ouvidos pelo PÚBLICO consideram que este é o momento para se avançar com mudanças. Apontam a maior autonomia das unidades, os incentivos aos profissionais e o assegurar do acesso aos cuidados de saúde como questões fundamentais.

A 2 de Março de 2020, a ministra e a directora-geral da Saúde confirmavam, numa conferência de imprensa, os dois primeiros casos positivos de covid-19 em Portugal. Dois anos depois e com mais de 3,2 milhões de casos confirmados e mais de 21 mil mortes associadas à pandemia, o país vive uma nova fase. Com cada vez menos restrições, e uma elevada taxa de vacinação, a situação de emergência atenua-se e abre espaço para olhar o futuro da saúde e do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O que se aprendeu e o que é preciso mudar?

Para Adalberto Campos Fernandes, há movimentos que se iniciaram, ganharam força e já não voltarão para trás. Dá o exemplo da transformação digital, com a prescrição electrónica e o centro de contacto do SNS – o SNS 24 –, que “foi um instrumento poderoso” quer para a marcação de testes, quer na vacinação contra a covid-19. Também “dificilmente a telessaúde volta para trás”, assim como a hospitalização domiciliária, programa que considera “estruturante e reformista”.

Mas é da opinião que, “apesar da perturbação da pandemia”, teria sido possível “ir um bocadinho mais longe em algumas reformas estruturais”. “Foi possível dar maior autonomia aos hospitais durante a pandemia. Várias unidades responderam a mais autonomia com mais responsabilidade. Não descontrolaram as contas, não diminuíram a actividade, o que significa que não há razão objectiva para que as Finanças tenham esta preocupação tão grande com o processo de autonomia da gestão dos hospitais”, afirma.

“Quando há um incêndio, lançamos a água para cima das chamas para apagá-lo. Foi o que aconteceu na pandemia. Agora é preciso dizer que não temos mais tempo para não fazer essas alterações estruturais”, diz Adalberto Campos Fernandes. É nesta linha da organização que salienta a criação dos centros de responsabilidade integrada (CRI), modelo que “permite introduzir diversidade dentro dos hospitais, premiando o desempenho dos melhores”.

As estruturas do SNS têm de ser responsabilizadas pelos direitos de acesso. Ou conseguem responder ou têm de garantir acesso prestado complementarmente por alguém Adalberto Campos Fernandes

A reforma, continua o antecessor de Marta Temido no cargo, passa também “pelo capital humano”. O SNS “não conseguirá manter a sua vitalidade, nomeadamente através da retenção dos talentos, sem uma reforma das carreiras profissionais”, considera o ex-ministro, que aponta outro ponto nevrálgico que é preciso garantir: o acesso. “As estruturas do SNS têm de ser responsabilizadas pelos direitos de acesso. Ou conseguem responder ou têm de garantir acesso prestado complementarmente por alguém”, afirma, considerando que o direito ao acesso à saúde não pode ser limitado por ideologias.

Prioridade ao doente

Também para o ex-ministro da Saúde António Correia de Campos, o momento actual pode ser o ideal para avançar com reformas estruturais. Entre as várias medidas em que considera que é preciso apostar, estão a continuidade de reformas “em curso e que são certas”: cirurgias de ambulatório, a hospitalização domiciliária, a generalização dos CRI e completar a rede de cuidados continuados. Neste último caso, “sem perder o reforço do sector social e privado, completar a rede com unidades públicas de qualidade excelente que sirvam de referência”.

O ex-presidente do Conselho Económico e Social considera que é preciso dar prioridade ao doente, o que “significa reforçar os direitos dos doentes com programas de prevenção geral e prevenção secundária”, assegurando pontos de contacto que facilitem o acesso ao hospital sem ser pelo serviço de urgência. Na lista de prioridades está também o “retomar do planeamento da saúde”, que não deve ser apenas do sector público, mas também do sector privado e social, de forma “a evitar redundâncias e desperdícios”.

É preciso termos os recursos humanos planeados a 20 anos. Não podemos ter uma situação como a dos anos 1980/90 António Correia de Campos

Para Correia de Campos, é preciso também “articular o sistema de informação” de hospitais, cuidados de saúde primários e cuidados continuados, assim como “ampliar o número de consultas não presenciais e desenvolver apoio domiciliário remoto”. Os recursos humanos são também uma pedra basilar. “É preciso termos os recursos humanos planeados a 20 anos. Não podemos ter uma situação como a dos anos 1980/90”, afirma, acrescentando que “o Ministério da Saúde tem de retomar a capacidade de definir vagas de internato”.

Dá o seu exemplo, quando determinou o aumento das vagas para medicina geral e familiar numa altura em que a especialidade era pouco procurada. “Com as unidades de saúde familiar (USF) e a qualidade de formação, os jovens inscreveram-se. Neste momento está a recuar porque não vêem abrir USF modelo B. É preciso lançar mais destas USF que pagam incentivos proporcionais com o desempenho”, diz, considerando que os incentivos são fundamentais para premiar o bom desempenho dos profissionais de saúde e fixá-los no serviço público.
Uma reforma de fundo

Luís Filipe Pereira, ex-ministro da Saúde, considera que é preciso “uma reforma profunda, sem a qual irá manter-se o panorama que se tem hoje”, e refere que “há dados objectivos” que o demonstram. “Se todos temos direito a cuidados de saúde tendencialmente gratuitos, por que é que há quase quatro milhões de pessoas que pagam seguros de saúde e subsistemas? Porque o SNS não responde do modo e da forma que as pessoas querem”, afirma, referindo que a ineficiência leva a que os custos sejam superiores ao necessário.

Tem de se passar do conceito de SNS para o de sistema nacional de saúde. O Estado deve continuar a ter produção, mas pode contratualizar também com o privado e o social com a vantagem de pagar por resultados e aumenta a eficiência Luís Filipe Pereira

O antigo responsável pela pasta da Saúde do governo de Durão Barroso salienta o aumento das listas de espera entre 2015 e 2019 e que são as pessoas com menos recursos as que acabam por esperar mais por uma resposta. São motivos que o levam a falar da necessidade de mudanças de fundo, que “não é mudar o acesso tendencialmente gratuito”. “Tem de se passar do conceito de SNS para o de sistema nacional de saúde. A diferença é que no sistema entram todas as iniciativas. O Estado deve continuar a ter produção, mas pode contratualizar também com o privado e o social com a vantagem de pagar por resultados e aumenta a eficiência”, diz, justificando-a com uma forma diferente de gerir. “No privado existem incentivos e penalizações e no público não existem”, diz, considerando que este é um processo que deve existir no público, tal como financiamento associado a metas a cumprir.

O ex-ministro defende “um sistema com uma componente pública, social e privada”. “A privada e social é contratualizada. A componente pública, para a gerir tem de haver uma grande organização, um instituto público, com um CEO com competências definidas na lei, que gere do ponto do vista técnico e organizacional e responde ao Ministério da Saúde. Com a vantagem de o ministério poder dedicar-se cada vez mais ao lado preventivo”, diz.
Cuidados de proximidade

“Acho que tem de haver um reforço do SNS e que se deve definir para onde devemos ir e a relação que se tem com o privado e o social no contexto do sistema. Sempre existiu colaboração, mas as fronteiras têm sido muito difíceis de manter ou definir”, diz a ex-ministra Ana Jorge, que considera que “só pode haver uma boa resposta quando se tem um lado público com uma capacidade forte”. Afirma que não se deve ter receio de estabelecer contratualização com o privado e o sector social, até porque existem mecanismos fortes de monitorização, mas considera que este apoio não deve limitar a existência de um rumo bem definido a seguir.

Deve haver um aumento de enfermeiros nas USF para haver uma maior capacidade de resposta aos doentes crónicos que precisam de acompanhamento. E outros recursos técnicos – psicólogos, assistentes sociais, terapeutas Ana Jorge

E esse rumo passa pela aposta nos cuidados de proximidade, com aumento do número de USF e reforço das unidades de cuidados na comunidade. “Deve haver um aumento de enfermeiros nas USF para haver uma maior capacidade de resposta aos doentes crónicos que precisam de acompanhamento. E outros recursos técnicos – psicólogos, assistentes sociais, terapeutas. É preciso reforçar também o papel dos conselhos clínicos nos agrupamentos de centros de saúde e rever o modelo de contratualização das USF de forma a repensar os indicadores que devem ser mais importantes. É preciso dar resposta aos mais frágeis e isso nem sempre está contemplado nesses incentivos”, considera a ex-ministra da Saúde.

Também na área hospitalar, “os conselhos de administração têm de trabalhar com o corpo clínico” e “é importante” que estas unidades “tenham maior autonomia”. “É importante definir o que cada hospital faz melhor para fazer com que médicos e enfermeiros se mantenham. Não há SNS sem recursos humanos satisfeitos e compensados. Há um vencimento base e depois tem de haver incentivos e não se pode valorizar só o número de actos praticados. Existem especialidades muito importantes que não são mensuráveis em actos, como a medicina interna”, afirma, salientando a necessidade de valorizar também outra profissões na saúde que são fundamentais na construção de equipas multidisciplinares e na melhor resposta aos utentes.