30.3.22

Mais de 60% dos nascidos nos anos 90 não têm um vínculo laboral permanente

CÁTIA MATEUS E MARIA JOÃO BOURBON INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO, in Expresso

É A GERAÇÃO MAIS QUALIFICADA DE SEMPRE, MAS ISSO NÃO SE REFLETE NA ESTABILIDADE LABORAL, SALÁRIOS OU PROTEÇÃO SOCIAL. SÃO JOVENS E A SUA SITUAÇÃO LABORAL DIFERE, EM LARGA MEDIDA, DAS GERAÇÕES ANTERIORES: MAIS DE 60% DOS NASCIDOS NOS ANOS 90 NÃO TÊM UM VÍNCULO PERMANENTE, SITUAÇÃO QUE É DE APENAS 40% NA DÉCADA ANTERIOR


“Eu não consigo planear o futuro, porque vivo o dia a dia.” Esta é a resposta que hoje muitos jovens dão quando questionados relativamente a planos para o futuro. Precários, a saltar de contrato para contrato (com estágios, bolsas ou situações de desemprego pelo meio), muitos vivem numa sensação permanente de incerteza e com a perceção de que não saem do mesmo: a sua situação do ponto de vista de estabilidade e de salário não se alterou significativamente face há cinco ou dez anos.

“É importante que os jovens tenham direito ao futuro e ao tempo, o que não se verifica neste momento. Vivem muito o dia a dia e, em parte, também em sofrimento, porque não é o tipo de vida que desejam”, contextualiza o sociólogo Renato Miguel do Carmo, diretor do Observatório das Desigualdades e autor do livro “Retratos da Precariedade”, que a partir de testemunhos faz o retrato acima sobre os jovens. “Esta dificuldade em definir e projetar o futuro, precisamente porque se vive uma vida muito instável e incerta, decorre da precariedade laboral.” E a reprodução e persistência da precariedade assenta, em grande medida, numa sensação permanente de incerteza. “O presente é vivido com uma grande incerteza. O futuro é mais ou menos incerto e está-se constantemente a acionar um conjunto de estratégias para não se cair no desemprego ou numa situação de falta de rendimento.”

A elevada taxa de precariedade associada às populações mais jovens — que é um fenómeno com grande incidência no sul da Europa — é um dos fatores que contribui para agravar a desigualdade intergeracional no trabalho em Portugal. Como comparam as várias gerações presentes no mercado de trabalho em matéria de salários, qualificações, precariedade e proteção social?

OS CONTRATOS A PRAZO ENTRE OS JOVENS SÃO MAIS DO TRIPLO DAS GERAÇÕES ANTERIORES. TAXA DE CONVERSÃO DESSES CONTRATOS EM VÍNCULOS PERMANENTES NÃO SÓ É BAIXA (15%) COMO TEM VINDO A DIMINUIR

Pedro Martins, ex-secretário de Estado do Emprego, professor da Nova SBE e autor de um estudo sobre a equidade intergeracional realizado para a Fundação Calouste Gulbenkian — que durante esta semana esteve no centro do debate na conferência “O estado do futuro: um compromisso entre gerações”, organizada pela fundação —, conclui que a geração mais qualificada de sempre não está a ter o retorno da sua formação. Nem a nível salarial nem no que toca à estabilidade laboral. “Os contratos a prazo entre os jovens são mais do triplo das gerações anteriores” e só 15% desses contratos são convertidos em permanentes, permitindo um escape à precariedade, conclui o autor da investigação que analisou a evolução de diferentes gerações no mercado de trabalho em Portugal num período de 32 anos, entre 1986 e 2018.

Mais de dois terços dos nascidos na geração de 90 que trabalham em Portugal têm contratos a prazo, quase o triplo dos nascidos na década de 80. E a probabilidade de conversão desses contratos em permanentes também é baixa: 15%, percentagem que tem vindo a diminuir ao longo dos anos. “Há uma estabilidade pronunciada na utilização alargada dos contratos de trabalho a termo junto dos trabalhadores mais jovens”, vinca Pedro Martins, acrescentando que muitos nunca deixam de ser precários.

PRECÁRIOS AO LONGO DA VIDA

A situação é particularmente grave se considerarmos que, sinaliza o autor, “não há indicação de que este fenómeno se reduza de forma significativa, mesmo quando cada geração envelhece”. O que faz da precariedade entre os jovens “um desafio importante ao nível da equidade intergeracional”.

Na verdade, a baixa taxa de conversão de contratos a termo é um fenómeno pouco frequente, que se tem tornado “ainda menos frequente em anos mais recentes”. E é um problema que afeta transversalmente as várias gerações. Calculada a partir da probabilidade dos trabalhadores passarem de contrato a termo para um vínculo permanente no ano seguinte, a taxa de conversão recuou de 20% a 25% em 2003, para 10% a 15% em 2018.

Também no que toca aos salários parece haver uma “convergência forte” entre as várias gerações. O que não quer dizer que isto seja positivo. Porquê? Porque os salários estão a ser nivelados por baixo, pelo valor do salário mínimo nacional. Em particular nas duas últimas décadas, grande parte das gerações apresentam salários reais mensais de apenas €600. As novas gerações tendem a apresentar uma grande percentagem de trabalhadores (cerca de 30% ou mais) a auferir o salário mínimo nos seus primeiros anos de vida profissional. A grande diferença é que, enquanto na geração de 70 essa percentagem diminuiu para 10% passados cerca de 15 anos do início da carreira, entre os nascidos na década de 80, o peso dos trabalhadores com salário mínimo manteve-se em níveis elevados (20%) no mesmo período temporal. “Esta diferença poderá ser explicada pelos aumentos pronunciados do salário mínimo nos anos recentes, nomeadamente a partir de 2016”, explica o autor, acrescentando que a partir durante a segunda metade da década de 2010, “o peso do salário mínimo cresceu em quase todas as gerações de profissionais”.

Já no caso da proteção social, disparidade também é a palavra de ordem. Algumas prestações sociais — como o subsídio de desemprego — “tendem a ser utilizadas em grande medida por trabalhadores mais velhos, o que poderá afetar negativamente a equidade intergeracional”, realça Pedro Martins. Enquanto que os subsídios da Segurança Social — desemprego, doença, lay-off e parentalidade — recebidos pelos trabalhadores da geração de 1940 ao longo da década de 2000 corresponderam a 69% das suas contribuições, para as gerações nascidas nos anos 60 e seguintes são de apenas 22%.

Num contexto em que uma parte significativa das gerações mais escolarizadas de sempre têm dificuldade em encontrar correspondência para as suas qualificações no mercado de trabalho, a aposta na educação deveria ser revista e adaptada às necessidades do mercado de trabalho? “A escolarização continua a compensar”, nota Renato Miguel do Carmo. “Por exemplo, um jovem mais escolarizado está mais protegido face ao desemprego. E continua a existir uma relação entre níveis de escolaridade mais altos e maior nível salarial. Se tivéssemos jovens ainda menos qualificados estávamos numa situação ainda pior.”

Pedro Martins reconhece que é verdade que a educação continua a contribuir para remunerações mais elevadas e menores probabilidades de desemprego, mas sublinha que esse contributo é tendencialmente menor para as gerações mais novas. O prémio salarial associado à qualificação está a diminuir significativamente para os mais jovens. Nos mais de 30 anos analisados no estudo de Pedro Martins para a Gulbenkian, a escolaridade apresenta um crescimento muito pronunciado nas novas gerações, por oposição a níveis muito baixos nas antigas. Contudo, os dados apontam para uma tendência acentuada de redução deste prémio salarial, que é de 9,1% na geração de 50 e não chega a 5% na geração de 90.

Apesar das diferenças entre gerações, não é tanto o sector educativo que deve mudar e adaptar-se. “A questão está fundamentalmente na forma como o nosso mercado de trabalho se estrutura (ou desestrutura) e não valoriza devidamente as qualificações”, refere Renato Miguel do Carmo. “Há um modelo, que vem de trás, que assenta em baixos salários, em formas mais ou menos difusas de exploração, de contenção salarial e isso vai persistindo. E vai-se aprofundado. Tem de existir uma mudança estrutural. A aposta nestas gerações é, em grande medida, uma aposta na valorização do trabalho, dos contratos, dos salários”, acrescenta.

O PONTO DE PARTIDA

E como é que Portugal compara com outros países no que toca à equidade entre as diferentes gerações presentes no mercado de trabalho? A resposta não é fácil, já que escasseiam estudos sobre o tema. Sabemos que Portugal está entre os países da União Europeia com maior percentagem de trabalhadores com contratos a termo ou temporários e que os efeitos da pandemia — e agora da crise resultante do conflito na Ucrânia — “devem agravar ainda mais os problemas de equidade intergeracional” no país, admite Pedro Martins.

Na verdade, o ponto de partida e o momento de entrada no mercado de trabalho é decisivo e tem um impacto importante nos anos que se seguem. Os dados compilados mostram que trabalhadores que tenham entrado no mercado de trabalho numa altura de desemprego 5% mais elevado do que a média têm salários 5% mais baixos ao longo de toda a sua carreira. Ou seja, há uma penalização salarial associada à entrada no mercado de trabalho em contextos de crise económica, “com impactos mais negativos junto dos trabalhadores nascidos nos anos 90”, nota o ex-secretário de Estado. “É provável que o mesmo resultado se aplique aos jovens que estão agora a (tentar) começar a trabalhar.”

Porém, admite que é preciso ter em conta que o desemprego aumentou pouco durante a pandemia. “Com os valores elevados de emigração e com a duração longa do subsídio de desemprego, surgiram várias oportunidades de emprego para os mais jovens que poderão levar a efeitos ‘cicatriz’ das crises [sobre os que entram no mercado de trabalho] mais reduzidos.”

Ainda assim, o diretor do Observatório das Desigualdades, Renato Miguel do Carmo, reforça que os jovens foram os mais prejudicados pela crise pandémica, do ponto de vista laboral — e que uma parte deles enfrentaram duas crises económicas no espaço de poucos anos. “No primeiro confinamento, verificou-se um aumento do desemprego imediato, que afetou sobretudo as pessoas em situação precária: muitos foram despedidos, não viram os seus contratos renovados…” Além disso, nota, o desemprego jovem tem sempre uma proporção mais elevada face ao desemprego médio e esta diferença “acentuou-se”. “O que significa que há um grupo de jovens que está com grande dificuldade em regressar ao mercado de trabalho.”