por António Figueiredo, in Setúbal na Rede
As férias isolam-nos no descanso merecido. Não é fácil escrever uma crónica quando nos afastamos da sociedade que é notícia, pois corremos o risco de escrever sobre o que nos chega e não sobre o que vivemos. Mas ao chegar a férias vivi dois episódios que me permitem construir esta crónica.
Na primeira manhã no Algarve, sempre fiz férias cá dentro, a minha mulher preparava o pequeno-almoço na varanda quando se apercebeu que uma gaivota voara do telhado em frente para o beiral da varanda. Fixaram-se nos olhos e, diz minha mulher, que a gaivota olhava para a mesa como pedindo comida. Sem palavras, mas no pensamento, a minha mulher transmitiu à gaivota a mensagem de que se tens fome serve-te. Num ápice, com um pio de agradecimento, a gaivota saltou para a mesa e no bico levou um pão-de-leite. Regressou ao telhado alto de onde saíra, talvez saciando uns filhotes.
Três dias depois, numa manhã em que o sol não aparecia, estava madrugando na praia com a minha mulher e netos, quando uma gaivota voou da arriba com um piar de dor, sobrevoou os poucos veraneantes e poisou ali no meio de todos. Piava com tivesse sofrimento e, para os adultos estaria doente, pelo que uma senhora lhe fez festas que a gaivota aceitou! A senhora era acompanhada por uma filha que, perante o espanto dos adultos, disse à mãe que a gaivota tinha era fome! Pela mão, a criança levou a mãe ao chapéu-de-sol e recolheu um pão que esmagou em pequenos pedaços e ofereceu na mão à gaivota. A gaivota, sem magoar a mão da criança, bicou todo o pão até à última migalha, mas continuou a piar. Dá-lhe o bolo, disse a criança à mãe. A mãe não conseguiu convencer a criança de que era o seu reforço da manhã, pelo que a gaivota depenicou o bolo até ao fim. Saciada a gaivota roçou o bico a cabeça nas pernas da criança, abriu as asas e deu duas ou três voltas sobre nós como que agradecendo, partindo de novo para a arriba.
Dois quadros que nada diriam e não me dessem a matéria para esta crónica. Duas gaivotas, com fome, sem medo e sem vergonha, dirigem-se a um ser humano e pedem comida. Quantos seres humanos, pela vergonha de pedir um pão estariam no desespero naqueles momentos, agora e sempre? Quantas pessoas, abandonadas no seu próprio sofrimento e vergonha não se suicidam só porque não têm ajuda? A DECO revela, na sua última revista, que o número de novas pessoas em estado de falência no primeiro semestre deste ano já era superior ao total do ano anterior. As IPSS continuam a revelar que o número de família em situação de fome e em desespero continua a aumentar. O flagelo do desemprego ameaça continuar a aumentar e não nos surpreendamos se chegar aos 25% muito em breve.
Ainda vejo a criança impressionada com aquela gaivota que emitia um piar de angústia e diz à sua mãe que abdica da sua comida para saciar um ser animal. E que fazem muitos adultos quando olham para pessoas desesperadas, sem comida, sem uma mão amiga? Viram a cara porque não têm coração de criança… Se todos fossemos mais solidários chegaríamos aos mais carenciados e, sem salvar o mundo, torná-lo-íamos mais humano e justo.
Em férias procuro fazer as pazes com a imprensa escrita, que venho rejeitando por se ter vindo a transformar em jogos políticos partidários. Receio que não venha a alterar o minha decisão pois nada mudou na forma de (des)informar. Os problemas reais dos portugueses não vendem informação, pelo que continuam a não ser abordados. Os jornais noticiaram, com tibiez e comprometimento o escândalo da conclusão sobre as fundações. Não encontrei a informação que o público gostaria de conhecer, como a relação entre a comparticipação dos nossos impostos e os benefícios sociais processados. Seria importante dar a conhecer a composição dos quadros de administração, as suas mordomias e a relação política, pois cheira-me que muitas serviram de guarida a políticos pelos favores recebidos.
As revistas continuam a ser um manancial de promoção das grandes diferenças sociais. Permita-me o leitor citar alguns títulos, para poder pensar em como a imprensa vive para um mundo diferente.
* “Família inaugura casa de praia…moradia vale mais de 2 milhões de euros“. Mas nem uma palavra para o drama dos que perderam a casa pela pobreza extrema em que vivem.
* “Cerca de 150 mil assistiram em Algés aos vários concertos. A tenda VIP estava cheia“. Mas nem uma palavra para os mais de 150 mil que vivem em pobreza extrema e que se vão suicidando a um ritmo alucinante.
* “Rei do luxo festeja aniversário. O sultão do Brunei fez 66 anos e celebrou com festa em tons dourados”. Mas nem uma palavra para o genocídios que estes donos do petróleo praticam diariamente.
* “… sorri com o namorado milionário “. Acrescenta a notícia, que o namorado é ex-diretor do Barclays e que tem uma enorme fortuna. Mas não diz se a fortuna foi ganha na bolha financeira que poderá ter ajudado a criar e gerou a crise financeira que todos vivemos, menos os famosos.
* “ O novo luxo da Quinta do Lago. No mais caro resort do Algarve, os ricos estão a ser substituídos pelos superricos “. Mas nem uma palavra sobre a responsabilidade fiscal do resort que deveria gerar milhões de IVA e de IMI. Não será chocante saber que cada um dos condóminos pague de condomínio um valor que é mais de 12 vezes o salário líquido anual dum trabalhador? E este luxo todo não tem que pagar um imposto social extraordinário e pesado?!
É chocante ler, a abrir a longa reportagem sobre os super luxos da Quinta do Lago: “Os pobres não são os únicos para quem o mundo está a mudar rapidamente. Os ricos também estão com os seus dilemas.”. Dilemas que são extravagâncias e luxo, a febre dos carabineiros, o striptease e champanhe e as festas privada. Micael Pereira, autor do texto, deveria medir as palavras para não cometer o pecado do desprezo pelos pobres.
Mas na última semana das minhas férias uma notícia alegra o desalento que estava a tomar conta de mim. Assim:
* “Quem tem dinheiro tem o dever de chegar-se à frente e ajudar“. É assim que Paulo Paiva Santos responde sobre a doação de € 100.000 à Fundação “O Século, quando soube que, por falta de verbas, a fundação não levou crianças carenciadas à praia. Só tenho que expressar a alegria por um coração de oiro que não conheço.
No final de férias vou ficar com duas imagens: a das gaivotas e o desespero da fome e o papo cheio duns tantos que dificilmente olharão para a fome dos outros. Já pensaram os super ricos, que doando uma pequena percentagem da sua riqueza contribuiriam para a redução do sofrimento humano, tal como o fez Paulo Paiva dos Santos, que não quero, nem em pensamento, incluir na classe dos super ricos.