Por Kátia Catulo, in iOnline
Levantar da cama de manhã, correr para o trabalho, regressar à noite a casa e recomeçar tudo no dia seguinte. O que é preciso para quebrar o ciclo de rotinas sempre igual, tão dormente que impede ver tudo o resto à volta? Um polícia molengão, a rica vida de um europeu e um prisioneiro com cicatrizes. Foi o quanto bastou para Ana Alves Sousa, para Paulo Morais e para Duarte Nuno Vieira. A primeira quis mudar o bairro, o segundo o país e o terceiro um bocadinho em cada parte do mundo. Ana Alves Sousa é presidente da comissão de moradores do Bairro Azul, em Lisboa. Paulo Morais, vice- -presidente da Transparência e Integridade Associação Cívica. Duarte Nuno Vieira está à frente do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, em Coimbra, e há sete anos que trabalha como perito das Nações Unidas contra a tortura. A ambição deles tem um preço. Não é dinheiro que está em causa, mas é o tempo que escapa e que adia tudo o resto que gostavam de fazer. O i perguntou o que deixam para trás. E descobriu frustrações recalcadas, talentos reprimidos ou famílias ressentidas
Duarte Nuno Vieira. "Às vezes cansa, mas fazia mais se pudesse"
Ler do princípio ao fim o currículo de Duarte Nuno Vieira é de perder o fôlego: preside o Instituto Nacional de Medicina Legal, é professor catedrático na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, dá aulas de Ética e Direito Médico, liderou a Academia Internacional de Medicina Legal, com sede na Suíça, a Associação Internacional de Médicos de Polícia, em Hong Kong e, até 2015, vai estar à frente do Conselho Europeu de Medicina Legal, que tem a sede em Estrasburgo. É ainda vice-presidente da Confederação Europeia de Avaliação e Reparação do Dano Corporal, “entre outras coisas mais pequenas”.
E ainda arranja tempo para voluntariado internacional como consultor forense da ONU contra a tortura e do comité internacional da Cruz Vermelha para identificar vítimas em situações de catástrofes. Como é que este homem consegue fazer tudo ao mesmo tempo? “Sendo tudo na mesma área, uma coisa entrelaça-se na outra”, conta o homem em causa. Dito assim parece fácil, mas continua a ser difícil perceber como é que consegue encaixar tudo num só dia e tudo numa só vida: “Implica trabalho, mas, no essencial, passa por saber organizar o tempo e confiar na minha equipa o suficiente para delegar tarefas”, reconhece por fim.
Tudo isso é bonito, mas não tendo o dom da ubiquidade fica ainda complicado compreender por exemplo como é que o médico comunica em simultâneo com as várias partes do globo. Para começar, não é em simultâneo e, para rematar, sem as novas tecnologias Duarte Nuno Vieira ficaria por Coimbra e não iria muito mais longe. De manhã, entre as 7h30 e as 8h30 usa o Skype para se ligar a Hong Kong, onde já é final de tarde; à hora do almoço, entra em contacto com a academia sediada na Suíça (mais uma hora que Lisboa); ao fim da tarde fala para os EUA, quando lá a manhã está no fim. Videoconferências fazem aliás parte da rotina do presidente do Instituto de Medicina Legal que se reúne uma vez por semana com o conselho directivo composto pelos directores do Porto, de Lisboa e de Coimbra.
Duarte Nuno Vieira beneficia de quatro grandes desvantagens. Dorme pouco: “Cinco horas por noite chega perfeitamente.” Não goza feriados e há 15 anos que não tira mais de duas semanas de férias. E tem o telemóvel sempre ligado. Quem o conhece diz que é também um homem acelerado: “É verdade que faço as coisas muito depressa.”
Minuto a minuto Nada como descrever um dia típico para tirar as dúvidas: “São todos muito diferentes.” E hoje? (12 de Março) Levantou-se às sete e, durante o pequeno-almoço, reviu o artigo que escreveu para uma revista científica. Às 9h30 chegou ao Instituto de Medicina Legal e reuniu-se com o conselho directivo por videoconferência. Às 10h30 presidiu um júri para provas de mestrado de medicina legal e ciências forenses. Ao meio-dia deu uma aula de Ética. À uma despachou umas sandes. Às 13h45 voltou ao instituto para presidir ao júri de outra tese de mestrado. Às 15h15 teve uma reunião com dois doutorandos para orientar as suas teses. Às 16h15 outra reunião com directores de serviço do instituto da genética por causa de umas mudanças que aí vêm. Às 18 horas passou por casa para fazer a mala e seguir para Lisboa. Às 20h30 chegou ao hotel, junto ao Marquês de Pombal, e deu uma entrevista ao i. De seguida, foi para o quarto jantar e preparar a palestra que apresentou em Bruxelas no dia seguinte.
Mais alguma coisa? “Há dias que cansa, mas na maior parte das vezes, fazia mais se pudesse.” Falta ainda alguma coisa? Mais horas de voluntariado. É disso que gosta mais, além de dar aulas, claro. Enquanto consultor forense do Alto Comissariado dos Direitos Humanos para as Nações Unidas, o médico visita prisões, esquadras de detenção, estabelecimento de prisão de menores, internamentos psiquiátricos de todas as partes do planeta.
Nos últimos meses foi ao Cazaquistão, Nigéria, Paraguai, Papua Nova Guiné, Indonésia, Moldávia, Quirguistão, Marrocos, Tunísia e Grécia. Num só ano, fez 84 viagens e aterrou em 34 países, alguns deles mais do que uma vez - esteve por exemplo no Irão, Arábia Saudita, Marrocos, Tunísia, Kosovo, Turquia, EUA, Espanha, França, Bósnia-herzegovina, México e Jordânia. Foi à procura de sinais que deixam marcas nos detidos e que comprovam punições, tortura ou outros tratamentos cruéis: “Tenho visto o inferno na Terra. Encontrei presos políticos a viver em caves escuras sem espaço sequer para esticar os braços. Saio de lá a perguntar-me como é que a natureza humana aguenta tanto sem enlouquecer.”
E não pergunta como é que ele próprio aguenta? Depois de conhecer o “expoente máximo da maldade humana” é impossível ficar na mesma: “Hoje tenho muita dificuldade em estar numa festa, por exemplo, e não me lembrar que naquele momento há alguém a passar por situações absolutamente miseráveis - há cerca de nove a dez milhões de presos no mundo, muitos deles em condições piores do que os animais maltratados.”
recompensa Conhecer o lado negro da humanidade tira-lhe muitas vezes o sono, mas “dormir sempre bem é que é motivo para ficar preocupado.” A recompensa surge sempre. Por vezes são coisas que parecem sem importância como um cobertor, uma televisão, água fresca, um telefone que os guardas dão aos presos por desconfiarem que o relator especial e o consultor da ONU vão aparecer de surpresa.
Outras vezes, a retribuição é apenas o primeiro contacto com o detido. “Imagine o que é estar na prisão há 10 ou 20 anos sem ver ninguém, pensando que no mundo inteiro ninguém se lembra que ele está ali.” E de repente surge alguém a perguntar como se sente, se tem roupa, se comeu ou se foi visto por um médico: “Nasce neles uma esperança de que algo pode vir a mudar.” Por vezes, vale a pena ficar agarrado à esperança: “Sim, já recebemos agradecimentos de ex-prisioneiros por o seu caso já ter sido finalmente julgado e absolvido e, nesses momentos, temos a sensação que salvámos a vida a alguém.”
Perante esta recompensa, tudo o resto faz sentido, mesmo quando se tem a consciência que há duas filhas que entretanto cresceram quase sem ver o pai: “As coisas na minha vida aconteceram por acaso e acabaram por ganhar vida própria. Alguém tinha de fazer o que eu faço e calhou-me a mim. A minha esperança é que, um dia, elas possam vir a compreender melhor do que já compreendem que tinha de fazer isso.”
Ana Alves Sousa. "Então e você não faz nada?"
Por centímetros, o filho de Ana Alves Sousa não foi atropelado por um jipe. Ao fazer marcha atrás, o condutor não se deu conta de que um miúdo de três anos pedalava num triciclo em cima do passeio. A mãe correu, bateu na chapa do carro e evitou o pior. Após o susto, o primeiro impulso foi ralhar com o polícia que assistiu a tudo, mas não mexeu um músculo: “Então e você não faz nada?” A resposta que obteve de volta acendeu o rastilho que ainda está aceso: “O que quer que eu faça? É o progresso, minha senhora!”
O episódio aconteceu há quase 15 anos e foi o princípio de tudo. Ana meteu na cabeça que não é esse o progresso que quer para o Bairro Azul, em Lisboa. Até porque “esse progresso” já tinha feito demasiados estragos. No fim dos anos 90, escritórios e agências bancárias trouxeram carros em cima dos passeios e estacionamento em segunda fila. Havia prostituição na Escola Marquesa de Alorna e o alcatrão ainda não tinha chegado à rua da Mesquita de Lisboa. Com a inauguração dos armazéns El Corte Inglés, no início do milénio, o bairro foi então “definitivamente assaltado” pelos automóveis. Ana Alves Sousa e a amiga Rosário Nolasco andaram de casa em casa a recolher assinaturas para travar a investida do progresso. Depois de baterem a várias portas, concluíram que só com “acções individuais” não iriam a lado nenhum. Era preciso uma comissão de moradores.
O ponto de partida foi “abaixo do zero”, conta hoje a presidente da comissão. Para a câmara de Lisboa, o Bairro Azul não existia no mapa. As ruas Fialho de Almeida, Ressano Garcia ou Ramalho Ortigão não passavam de artérias para escoar o trânsito. Pode um bairro da década de 30, com gente a viver lá dentro resumir-se a zona de passagem automóvel? Tanto não pode que Ana e meia dúzia de moradores decidiram provar o contrário. Hoje, há sinalética a indicar como chegar ao Bairro Azul, tapete de alcatrão na rua da Mesquita, árvores na rua Fialho de Almeida, artérias fechadas ao trânsito de passagem e um bairro classificado como “conjunto urbano de interesse municipal”.
Contado assim, parece que foi tudo instantâneo. Só que, além de ter demorado uma década e meia, implicou que meia dúzia de moradores não desgrudasse do poder local enquanto não obtivesse aquilo a que achava ter direito. Implicou portanto ser cliente habitual de reuniões públicas da câmara, da assembleia municipal, da junta de freguesia, enviar emails e ofícios e nunca ficar satisfeito com respostas do género “… tomámos boa nota da sua reclamação que foi enviada ao chefe de divisão x do departamento municipal y”.
“É preciso um enorme esforço que, na maioria das vezes, é desproporcional aos resultados obtidos”, desabafa Ana. Uma queixa pode demorar anos ou mais de uma década a ser escutada. Ana sabe que as mudanças demoram tempo, mas só acontecem se alguém estiver disposto a ter trabalho. Bastará, aliás, olhar para trás e perceber que no bairro nada está igual. Nos anos 90, uma comissão de moradores era quase obra do demónio ou pior: “As pessoas tinham medo do que pudesse representar uma comissão de moradores. Só poderia ser “coisa de comunistas” ou de gente ligada aos partidos. Foi preciso tempo para ganhar confiança e ultrapassar também alguns lugares-comuns – “Não vale a pena fazer nada” ou “sempre foi assim, porque é que vai ser diferente agora?”. A mentalidade no Bairro Azul sofreu várias metamorfoses até “ganhar consciência de que a mobilização produz efeitos”, explica a presidente da comissão.
O obstáculo a ultrapassar é agora outro: “As pessoas mobilizam-se mais facilmente contra algo como o trânsito caótico ou a falta de segurança do que em torno de um projecto ou de um sonho.” E o percurso do Bairro Azul não terminou. Há outras ambições que já não passam por alcatroar ruas nem reivindicar jardins. Essa fase está arrumada. Ao Bairro Azul, já não interessa ser apenas um “conjunto urbano de interesse municipal”. A comissão está convencida de que tem direito ao estatuto de bairro histórico, um ponto de partida para trazer turistas e dinamizar o comércio local em agonia desde a abertura do El Corte Inglés.
O projecto está ainda a dar os primeiros passos e só avança se houver moradores dispostos a trabalhar. Neste aspecto, Ana Alves de Sousa, diz ter sorte ao conseguir um horário flexível na sua profissão ligada ao marketing do turismo. O que não faz de manhã no escritório faz à noite em casa e o que não acaba à tarde termina no dia seguinte. As tarefas do bairro vão tendo prioridade. Só assim foi possível colocar o Bairro Azul no mapa.
Paulo Morais. "Preciso de um sinal para não desistir"
A confidência surgiu numa noite fria, não há muito tempo. Paulo Morais disse à mulher que não vai andar muito mais tempo a lutar contra a corrupção. O dirigente da Associação Integridade e Transparência deu um prazo ao país para mudar. Não precisa de ser para já. Quem sabe, daqui a quatro ou cinco anos. Nem necessita de ser uma mudança radical. Basta os índices de corrupção recuarem um bocadinho. É o sinal para não desistir. Senão faz as malas, agarra na família e passa a ser mais um emigrante a tentar a vida lá fora: “Recuso-me a viver num país onde a corrupção mina tudo.”
A frustração não é de agora. Era ainda rapaz a estudar na escola primária quando deu de caras com a pobreza do Alto Minho. Viveu a infância em Viana do Castelo, mas teve oportunidade de viajar e perceber como vivia a Europa rica. Alguma coisa está errada, pensou. “Não sabia muito bem o quê, mas com a idade fui percebendo que o mal estava sobretudo na má organização do nosso país.” É a conclusão lógica para um adolescente que não encontrou outra razão para um país com sol e recursos suficientes continuar pobre.
Hoje pensa o mesmo, mas ainda não chegou o momento de desistir. Até porque Paulo Morais acredita que o sistema começa a mexer com esta crise e, “mais do que nunca”, o clima é favorável à mudança: “Estou triste com o estado do país, mas optimista com os resultados que poderemos vir a alcançar a médio e longo prazo.” Só poderia acreditar nisso para se dar tanto ao trabalho. O dirigente da Transparência e Integridade Associação Cívica (TIAC) descansa ao domingo. No resto dos dias é um escravo da agenda. “Tenho de ser muito rigoroso se não quiser perder o controlo do tempo.”
Ainda assim, tem direito a uns minutos de ronha na cama, entre as 7h15 e 7h30. Nem um segundo a mais. Às 8h, o matemático está na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde até ao início da tarde tem o tempo reservado à investigação científica. Depois do almoço segue para a Universidade Lusófona onde dá aulas de matemática e estatística a vários cursos. O final de tarde está destinado às iniciativas e trabalhos da associação cívica. Os debates e seminários acontecem, na maioria das vezes, ao início da noite.
Sábados são para balanços e planeamentos ou então para aceitar convites fora da cidade do Porto. Se as palestras forem em Lisboa, Paulo Morais vai de comboio, se forem no Algarve viaja de avião e se acontecem na sua cidade usa o automóvel. O fim da tarde serve para escrever as crónicas fixas que tem na imprensa e na rádio. Por volta das oito da noite, os motores começam a desacelerar. Domingo – de manhã até à noite – faz tudo o que não fez durante a semana: fica até mais tarde na cama, almoça com a família, janta com os amigos e pode “terminar o serão na Casa da Música”, dependendo da programação.
Há portanto lugar para tudo. Tudo não. Falta sempre tempo para hábitos que promete retomar a cada véspera de fim-de--ano, mas que ficam “quem sabe para o próximo ano”. Grandes passeios de mota pelo Alto Minho, ténis ao fim-de-semana ou um par de horas no sofá da sala agarrado aos livros de política ou de história: “Continuo a ler é claro, o ritmo é que é bem mais lento.”
A velocidade que a agenda impõe no dia--a-dia tem as suas vantagens. É um bom inibidor de velhas frustrações. Com todas as partes do dia ocupadas, não sobra muito espaço para remoer. E quando o tempo dá folga até parece que é pior. Há um certo desgosto que Paulo Morais recalca por não fazer tanta investigação como gostaria: “Embora tenha produção científica própria, olho para os meus colegas e vejo que têm mais tempo do que eu.” Não se trata de inveja. É antes uma espécie de tristeza que de vez em quando aperta, mas depois passa. Mas só passa porque o matemático se esforça por usar a razão no lugar do coração: “O meu estilo de vida é resultado de certas opções que tomei. Tendo consciência de que a corrupção destrói o país, aceito sem dificuldade que boa parte do meu tempo tenha de ser dedicado a combatê-la.”
As escolhas que fez custam o seu tempo, mas Paulo Morais tem trunfos que usa para não se perder nas rotinas que consomem os dias de muito boa gente. Morar no centro da cidade e não desperdiçar mais de 10 minutos para chegar a qualquer lugar é um deles. Ter um bom médico por “não ter tempo para ficar doente” é outro. Confiar num “bom advogado” para o desenvencilhar dos processos de difamação ou pedidos de esclarecimentos vindos, por exemplo, do parlamento é o último segredo para não desviar o tempo do essencial.