1.10.13

O Estado vai pagar o part-time dos pais. E as mães vão ganhar com isso?

Andreia Sanches, in Público on-line

Os estudos mostram que todos querem ter mais tempo para a família. Mas se a medida anunciada avançar, há quem diga que serão sobretudo as mulheres a ficar em casa, agravando-se as desigualdades


Expectativa e alguma surpresa. É assim que especialistas em políticas de família, e também alguns patrões, reagem à ideia de pagar com fundos comunitários aos pais que pretendam trabalhar a tempo parcial para poderem ter mais tempo para cuidar dos filhos.

A primeira vez que se falou do assuntou foi em Abril, mas o Governo não avançou pormenores. Como é que se faz? Quem vai ter direito a trabalhar em part-time ganhando o mesmo? Que impacto terá na carreira dos trabalhadores? Com a recente apresentação do anteprojecto das Grandes Opções do Plano para 2014 - em que se prevê "uma medida de conciliação da vida profissional e familiar através da flexibilidade de horário laboral e empregabilidade parcial dos progenitores" -, o tema voltou esta semana a ser debatido. Contudo, o Ministério do Emprego e Segurança Social, de Pedro Mota Soares, continua a dar apenas esta informação: "Uma mãe ou um pai pode vir mais cedo para casa, pode eventualmente vir a trabalhar apenas meio dia, que o Estado suporta o restante." O novo ciclo de fundos comunitários para 2014-2020 está a ser negociado com a União Europeia.

Os inquéritos europeus acerca das preferências dos cidadãos relativamente ao tempo de trabalho indicam que tanto homens como mulheres desejariam trabalhar menos horas. A maioria das pessoas quer ter mais tempo para a família, começa por dizer Sara Falcão Casaca, do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa. Aliás, em Portugal, a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas veio a público elogiar a intenção do executivo. Mas poderá haver um lado sombrio numa medida como esta?

"Este discurso aparentemente progressista (inclui pais e mães) é pouco consistente", diz a investigadora. Esta autora de vários estudos que comparam políticas seguidas em diferentes países recorda as palavras do ministro Mota Soares quando em Abril, numa audição da Comissão Parlamentar de Segurança Social, falou pela primeira vez do assunto: "Hoje, uma mulher que pretenda ser mãe, mais do que a disponibilidade financeira, reclama por disponibilidade para uma maior dedicação. Se tempo tivesse para os acompanhar, teria mais filhos." Com base nesta afirmação do governante, Sara Casaca conclui: "Ainda que sob o manto de um discurso progressista e igualitário, a empregabilidade parcial parece ser essencialmente associada a uma "opção" para as mulheres, colando-lhes a tradicional responsabilidade pela conciliação com a vida familiar."

E continua: "É provável que algumas pessoas adiram. Que adiram fundamentalmente as mulheres, porque é ainda fundamentalmente sobre elas que recaem as responsabilidades familiares... Mas esta situação poderia representar um agravamento das desigualdades de género." No trabalho, mas também na vida privada (com "um regresso ao modelo" do homem como disponível para a esfera pública em geral, e da mulher como a "principal provedora de cuidados", em casa).

Virgínia Ferreira, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, aponta virtudes e problemas a uma medida deste tipo. Virtude: "A conciliação entre as esferas da vida numa fase particularmente exigente do ponto de vista das responsabilidades familiares." O problema: o facto de ser previsível que tal como acontece noutros países "a utilização desse regime seja em grande parte feita pelas mulheres trabalhadoras, o que lhes traz enormes desvantagens - quer do ponto de vista das suas relações no seio da família quer do ponto de vista da sua situação no mercado de emprego".

Patrões "no escuro"

Sara Falcão Casaca acrescenta: "Está estudado, em vários países, que as pessoas que trabalham a tempo parcial têm menos oportunidades de integrar planos de formação, de progressão nas carreiras e de desenvolvimento profissional. Portanto, aquilo que surge aos olhos da opinião pública como um instrumento ao serviço da liberdade de escolhas/opções de mães e pais, do incremento da natalidade, do bem-estar das famílias e das suas crianças, pode bem ser uma armadilha." Seria, por isso, muito importante "uma discussão alargada" sobre o tema.

O Código do Trabalho português já prevê que um trabalhador ou trabalhadora com responsabilidades familiares possa requerer à entidade empregadora a passagem à modalidade de emprego a tempo parcial por um período que se pode estender até dois anos, desde que a criança tenha menos de 12 anos, ou, independentemente da idade, caso sofra de uma deficiência ou doença crónica. A novidade é o incentivo financeiro, que pode fazer toda a diferença e encorajar as pessoas, num país com uma percentagem de trabalhadores a tempo parcial mais baixa do que a média europeia, graças às mulheres. Na UE, 8% dos homens no mercado de trabalho e 32% das mulheres trabalham em part-time, enquanto em Portugal as percentagens são 8% e 14,6%, segundo dados de 2013.

A medida nunca foi, contudo, abordada pelo Governo com a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP). O vice-presidente do conselho geral da organização patronal, Gregório Rocha Novo, diz que está "no escuro". Considera importante tudo o que se destine a conciliar melhor a actividade laboral e a vida familiar. "Mas há dados que me escapam: pretende-se ir além do que está no Código do Trabalho? Ou incentivar a aplicação do que já está, porque alguns instrumentos no domínio da protecção da parentalidade são poucos usados? Não sabemos."

Se o que se quer é incentivar os trabalhadores a usarem mais o que existe, "é positivo", sustenta. Afinal, "as empresas não estão 100% desprotegidas": a lei em vigor prevê que, quando está em causa o seu funcionamento, estas possam recusar o pedido dos pais, tendo para isso que fundamentar a decisão e pedir um parecer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. A comissão faz saber que "são pouquíssimos os casos de queixa" de pais que viram negados os seus pedidos.

Originalidade portuguesa?

"O que já seria inaceitável", continua Gregório Rocha Novo, "seria que se descaracterizasse o quadro, já de si apertado", que existe.

Karin Wall, do Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, e coordenadora da rede de pesquisa em Sociologia das Famílias na Associação Europeia de Sociologia, diz que se explicou até agora tão pouco sobre o que se pretende que a medida surge "completamente descontextualizada" - não se percebe "como se encaixa com as medidas que já existem em Portugal", nem tão-pouco em que modelo de outro país europeu se inspira. "A possibilidade de trabalhar part-time existe em vários países, mas não significa manter o salário anterior. Também existe nalguns países o home care allowance - uma licença, quase sempre gozada a seguir à licença bem paga, em que a mulher recebe um subsídio (quase sempre fixo) se ficar em casa durante os primeiros anos de vida da criança. Será que estamos a falar de um subsídio?" A ideia do ministro também surge "descontextualizada" da "cultura" do país, onde, continua Karin Wall, o tempo parcial é pouco usado.

Sara Falcão Casaca remata: "O problema da baixa natalidade resolve-se com a melhoria das condições de trabalho e de vida, com combate efectivo ao desemprego e criação de emprego digno, com infra-estruturas públicas de apoio às famílias, com incentivos a novos modelos de organização do trabalho."